quinta-feira, 15 de agosto de 2024

É velho - e é isso o que fez meu!

Que se esclareça que estimação não é apenas aquela palavra que usamos quando nos referimos aos animais domésticos. Tenho, por exemplo, um short jeans da minha mais antiga e completa estimação, cujo preço não faço ideia (esqueci ao longo desses mais de 15 anos de convivência), mas cujo valor foi se agregando justamente com o passar do tempo. Não é um short em nada especial: como dito, é apenas um short jeans curto; nem é de nenhuma grande grife, mas de uma loja de departamentos de qualidade duvidosa. Já passou por pelo menos um ajuste na cintura, e graças à minha estimação por ele e à minha capacidade de equilibrar o peso, continua a me vestir até o presente dia. Ao longo de nossa trajetória, o shortinho encontrou detratores: um ex-namorado ciumento já ameaçou nossa relação (e esta pode ser uma pista sobre seu status de ex, posto que o short, este sim, continua em minha vida); e também minha mãe, que não acha seu comprimento apropriado (o que é ótimo, afinal, assim ela não pode usá-lo). E a quantos lugares fui, quantas pessoas conheci, quantas fotos já tirei com esse short específico. Sim, houve até um outro, que em anos mais recentes ameaçou seu posto, mas em uma certa situação foi avariado de maneira aparentemente irreversível. O que conheço é a permanência do shortinho jeans sobre as circunstâncias, o que por si só já lhe insufla certo ânimo fantástico, um ar aventureiro. 

Me voltei para o tal short porque andei pensando no conforto que só as peças que já conhecem tão bem o formato do nosso corpo nos dão. Moro no Rio de Janeiro, e por aqui, mesmo o mais ameno dos invernos costuma fazer o carioca bater o queixo pela falta de costume, e o que pode haver de melhor, nessa ocasião, que aquele velho moletom no armário para ser nosso campeão nessa guerra térmica? Só uma peça que já conhece os segredos das nossas dobras, pele e caimento nos defende adequadamente não só nessa, mas também em situações que requerem coragem para encarar o não navegado mar cheio de criaturas extraordinárias de um primeiro encontro, por exemplo. Ousadia e destemor são necessários se nos propomos a desbravar um caminho diferente, mas sem segurança e um mínimo de conforto e provisão, é certo que não se vai muito longe. 

Essa sequer é uma percepção isolada, ou mesmo inovadora. Há alguns bons séculos, o maior dos frugais já dizia que reis e rainhas que usavam uma roupa apenas uma vez, apesar de confeccionadas pelos mais talentosos costureiros, não poderiam experimentar o conforto de uma peça que realmente aderia, por uso, às linhas do corpo. Que as nossas roupas do dia-a-dia se assimilam a nós, assim recebendo a marca de quem as usa, até que decidamos, um belo dia, pô-las de lado. O pensador em questão ainda recomendava cuidado com as empreitadas que exigiam roupas novas ao invés de um novo Eu para os ditos eventos. Imagina que revolucionário se fôssemos para um encontro com um possível interesse afetivo não com uma roupa nova, mas com uma cabeça nova? Esse é o conselho, válido até hoje, de ninguém menos que o velho Thoreau, que valorizava mais o simbólico de um retalho em uma roupa velha à falta de personalidade em uma roupa nova. Quantos vestidos você já deixou de usar por pequenos furinhos aqui ou ali; quantas peças de roupa você já aposentou porque a vitrine de hoje insiste em dizer que elas ficaram velhas? Se pensarmos nisso, entra um detalhe importante. 

 A frugalidade thoreauriana ainda, e principalmente hoje, tem muito a nos ensinar sobre consumo, acabando por se revelar uma resposta involuntariamente anticapitalista. O que pode ser mais ameaçador ao mercado consumidor, de qualquer segmento, que um cliente satisfeito? Aquele que, por entender que tem o que precisa, não é atingido pela sedução barata do supérfluo? Assim colocada, apesar de parecer um tanto lógica e algo simplista, é evidente que esta não é a solução mais simples de pôr em prática, justamente por demandar uma educação realmente filosófica em relação à atitude humana, sua postura e seu status em sociedade. Não é à toa que, enquanto discurso, o upcycling tem enorme popularidade na comunidade da moda, e ainda mais surpreendentemente nos círculos de brechós por parecer uma alternativa moderna e descolada, mas quando se trata de vivê-lo filosoficamente, tem-se aí um esvaziamento total justamente porque sua implicação direta é o estacionamento da esteira capital que movimenta estes mercados. O hoje maior fast fashion online do mundo, a Shein, juntamente com a Temu, tem seu consumo baseado, sobretudo, no tédio - o que, por si só, nos devolve à uma perspectiva que deveria olhar mais filosoficamente para este tipo de consumo. Tem quem evite olhar para o político nas coisas, mas imagine só se a gente considerasse, aqui, a memorabilia soviética, não é? 

Infelizmente - ou não, também - mais razão tem o Marcelo Jeneci, quando diz que a gente é feito pra acabar, e que isso nunca vai ter fim. Se isso é verdade sobre o humano e sua formidável capacidade de criar, que dirá do nosso vestuário. Meu short jeans, por exemplo, tem um franco rasgo na nádega esquerda, e um que está se formando na direita, ambos por uso. Me deixa um pouco triste que sua vida útil esteja possivelmente chegando ao fim, mas você é capaz de se lembrar da sensação justa de conclusão de uma peça de roupa que você precisa jogar fora por ter cumprido totalmente seu tempo de função? Ou mais comum tem sido observar, penduradas em seus cabides, roupas sensacionais nunca usadas envelhecendo sem uso? Quanto a mim, escolho a finitude dessa peça - na ilimitada janela de peripécias que já me deu.  

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