terça-feira, 11 de julho de 2023

O vácuo da imagem


Death of an Image n.5, Andrea Galvani, 2006

como a geração brasileira que adolesceu na primeira década dos anos 2000 pode ter sido a última a não ter imagens de si própria neste intervalo - e de que maneira isso permite sua reinvenção  


Existe um intervalo entre o fim do analógico e o início do digital que foi percebido de maneira peculiar por uma classe média que não podia fazer uma viagem por ano para a Disney. Essa classe média, valores inflacionários corrigidos, nominalmente a classe C, que se espremia entre pagar a mensalidade do colégio particular (isso quando, muitas vezes, não inseria seus filhos no ensino público), água, luz, bens de consumo e pôr a comida na mesa era aquela que, diante dessa transição tecnológica, não tinha dinheiro sobressalente  para custear os primeiros celulares com uma câmera - e mesmo as câmeras de qualidade só surgiriam no fim da primeira década dos anos 2000, quando acontece a ascensão do IPhone e com ela a implementação definitiva do sistema Android, permanentemente desbancando o império escandinavo-gêrmanico da tríade Sony Ericsson-Nokia-Siemens, até hoje lembradas pela durabilidade de seus aparelhos de então. Neste período, correspondente aos dez primeiros anos da década de 2000, quem não podia Nova Iorque ia de Madureira: era, para esta classe, a era da câmera digital (que já era popular entre as classes A e B nos últimos anos da década de 90). E aqui mora a peculiaridade.

Para a geração brasileira da classe C que entrou na puberdade no início dos anos 2000, era comum um certo bordão num programa de TV que dizia "Agora vamos falar de coisa boa, vamos falar de TekPix!". Teria sido o Juarez da TekPix, anunciante do produto, o primeiro meme brasileiro? É possível. TV FAMA, o programa em questão, numa era pré-smartphones e pré-internet como conhecemos, gozava da mesma popularidade que outros contemporâneos, encabeçados por Pânico na TV e seguidos por demais programas de auditório distribuídos por canais abertos. Depois das novelas, estes eram os programas mais populares, mas se nas novelas a merchandising é, até hoje, relativamente velada, nesses programas ela era estridente. Ocorre que o anúncio desse tipo de câmera, feito em programas com uma vultuosa audiência, surtia um interessante efeito de vendas. Se a propaganda cria o desejo, e se em cada época existe um bem de consumo supérfluo que captura o zeitgeist (como foi o Discman nos anos 80, seguido pelo Bip nos anos 90), o desejo do trabalhador brasileiro em 2002 era adquirir uma TekPix. A essa altura, as câmeras analógicas mais práticas (aquelas, que o meu pai e o seu tinham, não a Leica do filho do patrão deles) já estavam saindo de circulação. 

Estabelecidos os supracitados critérios de classe, quem nasceu no fim dos anos 80 teve, durante a infância, certa intimidade com o analógico. É claro: a relação das pessoas com câmeras varia bastante, mas isso não importa muito durante a infância, pois seus primeiros detentores de direitos de imagem são os pais. Para muitos destes, que tinham crianças em casa nos anos 90, as fotos poderiam ser abundantes. E tome fotos em aniversários, em viagens pro sítio, pra casa de praia (em Iguaba), no trabalho da mamãe, no passeio da escola, do cachorro. Toda família certamente continha ao menos um membro que tinha alguma relação com o ato do registro, o que, desde as pinturas rupestres, é a atividade mais genuinamente humana da qual se tem notícia. Foi o último momento em que reinou absoluta a Kodak, subestimando a ameaça que já surgia com o desenvolvimento das primeiras câmeras digitais, ainda na década de 90. Em seu conforto e garantia monárquicos, não anteviu a própria queda.

Mas de que maneira isso afeta a adolescência do grupo em questão? Voltemos ao início do texto.

A transição dita provoca uma vacuidade de registros que, em 2023, já não é possível, salvos estejam os eremitas digitais. Se aqueles que foram adolescentes nos anos 70 possivelmente tiveram sua infância e adolescência fotografadas em câmeras analógicas (sempre sendo considerado aqui um parêntese socio-econômico), os nascidos em 1988, a exemplo de quem vos escreve, experimentaram uma suspensão temporal de, aproximadamente, 7 anos no mínimo, a 10 anos no máximo, que foi o tempo que durou essa transição. É improvável que estejam preservados, por exemplo, registros feitos, em 2005, por um Motorola V3, em meio a tanto lixo digital. Nesse período, este era considerado um super-celular, e tremendo sonho de consumo para a classe C. Quem não poderia comprar um, apelava para TekPixes ou similares (parceladas em até 12x sem juros). 

A isso, some-se a questão da funcionalidade e portabilidade. Em 2023, já não há mais quem diga que "celular é pra falar", por menos íntimo que seja de redes sociais ou mesmo que se abstenha delas por completo. A menos que você fosse um fotógrafo (ou aspirante a um), não seria muito comum carregar uma câmera digital na bolsa - principalmente se você fosse um adolescente. Desse modo, a câmera digital continuava com status de pequeno luxo, sendo reservada às ocasiões pontuais já comentadas anteriormente. Além disso, havia certo trabalho em transferir as fotos de uma câmera digital para um computador, para que pudessem ser visualizadas em uma tela maior, uma vez que revelá-las não seria a ideia - e mesmo falar em "revelação", aqui, sequer faz sentido, pois este é um termo intimamente ligado à mecânica do aparelho analógico. A ideia do digital era sua conexão com um computador pessoal, necessariamente. Retomando o recorte socio-econômico aqui feito, não era toda família da classe C que tinha um em casa há vinte anos atrás. Havia, ainda, o risco de perda: câmeras digitais poderiam ser perdidas. Uma coisa era perder uma câmera analógica que já teria seu filme revelado; a outra era perder uma com todas as fotos dentro. Tudo isto posto, calcule: quão seguras estavam as fotos desta época? Abra o baú das suas fotos físicas. Quantas fotos digitais deste período você tem? Os primeiros celulares com câmera miraram justamente esta lacuna, e como se vê, encontraram aí um nicho tecnológico sem precedentes econômicos.

Mas com o desenvolvimento deste nicho surgem problemas que não poderiam sequer ser calculados.

Não há dúvida que o suicídio sempre tenha sido uma constante na história da humanidade, mas o surgimento das redes sociais cria uma relação entre ele e o cyberbullying, sendo o primeiro caso documentado em 2006, quando do suicídio da jovem americana Megan Meier, aos 13 anos, vítima de uma difamação que tomou proporções trágicas. Deste momento até aqui, há um crescimento exponencial de suicídios que têm alguma origem no cyberbullying. A geração Z é a maior vítima, justamente por ser aquela conhecida como nativa digital. Sua adolescência se dá a partir da primeira década dos anos 2000, pouco mais de dez anos atrás, momento em que a internet já está assentada como conhecemos. Por mais nativos digitais que sejam, falta aos membros dessa geração o desenvolvimento da sensibilidade para lidar com aquilo que, antes, se restringia ao tempo e ao espaço da escola, e que assim sendo, permitia rotas de fuga. Em lugar desse desenvolvimento, o que tem-se é uma supressão violenta, que reveste esses adolescentes de uma casca emocional frágil que, quando se fratura, tem potencial arrasador, quer para o ofendido, quer para os ofensores. O aumento dos ataques em massa em escolas também pode ser observado como um desdobramento desse fenômeno. Se antes você tinha, ao menos, o direito a um mano-a-mano na saída da escola (e não que isso tenha acabado), hoje o tipo de vingança mais comum é a exposição indevida de alguma foto ou vídeo conseguidos ilicitamente e replicados a perder de alcance. O poder da imagem é implacável. E a internet não esquece.

É muito provável que a geração nascida no fim dos 80 seja a última com direito real ao esquecimento do período que costuma ser o mais problemático para todo ser humano. Geralmente é na adolescência que surge a vergonha, a sensação de ser ridículo por alguma coisa, a timidez e tudo o mais que caracteriza esta fase. Se uma imagem vale mais do que mil palavras, as fotos da adolescência de alguém podem ter o poder de cristalizar todo esse momento, reduzindo o sujeito a uma imagem estereotipada que pode ser simplesmente passageira. Experimente contar quantos artistas mirins seguiram na indústria e estabeleceram carreiras sólidas crescendo diante das câmeras. Entre outros fatores, é mais do que comum a constatação de que muitos sucumbiram à pressão das expectativas criadas sobre eles, voltando para o anonimato no melhor dos casos. Em um ensaio revelador de 2019, a escritora Nausicaa Renner reflete sobre a premissa contida no livro de Kate Eichhorn, O Fim do Esquecimento: Crescendo nas Redes Sociais, de 2015. Neste, a autora defende que a facilidade com a qual crianças hoje geram e administram a própria imagem no mundo virtual pode prejudicar sua capacidade de filtrar as memórias que realmente desejem reter, e que isso viria a impedi-las de reinventarem-se ao longo da vida. 

Renner menciona que, segundo Eichhorn, todos se beneficiam da experimentação na adolescência. Em um dos pontos centrais de seu ensaio, ela chama atenção para o que postulou o psicanalista Erik Erikson. Ele acredita que, durante este período, nós vivemos no que ele intitulou de "moratória psicossocial", um estágio no qual oscilamos entre "a moralidade aprendida pela criança e a ética a ser desenvolvida pelo adulto". A moratória é um período de tentativa e erro em que a sociedade deixa livres os adolescentes, a quem permite correr riscos sem o medo das consequências, na esperança de que, agindo assim, eles irão construir o núcleo de sua personalidade - um senso pessoal do que dá sentido à vida. A internet interrompe a privacidade dessa era, com a tendência de escalar pequenos deslizes a erros monumentais que constarão em uma espécie de ficha permanente. Se delimitarmos a questão por gênero, as coisas podem tomar proporções dantescas. Por exemplo, na minha adolescência tive uma amiga que namorou com um rapaz durante algum tempo. O namoro terminou quando ele gravou e divulgou um vídeo íntimo dos dois na internet. Requintando a falta de caráter, foi capaz de gravar um DVD e vendê-lo no camelódromo no centro da cidade. A menina deixou a escola e, no boom do surgimento das primeiras redes sociais, como Orkut e Facebook, ela nunca fez um perfil pra si, tamanha foi a repercussão do caso. Havia se tornado um fantasma de si mesma. Era o primeiro revenge porn do qual eu tinha notícia. Desabrochando em sua vida sexual, ficara marcada definitivamente. Por quanto tempo não terá carregado esse trauma para outras relações? De que maneira o crime que foi cometido contra ela não tornou-se a imagem mais forte de sua adolescência, até para si própria? Após algum tempo mudou-se, e nunca mais tive notícias dela. Como dito, a internet não esquece.

O vácuo da imagem sentido pelos que podem ser chamados de late millenials, ou simplesmente aqueles nascidos no final da década de 80, permite a eles uma melhor capacidade de seleção da memória, o que faz com que valorizem as experiências boas em detrimento das ruins, de modo que essa agência crie uma personalidade menos suscetível a provocações e ao bullying feitos internet adentro. Quem aprendeu a se defender na vida real e cresceu tendo sua privacidade relativamente preservada tem mais chances de sobreviver nesta espinhosa selva de informação. Assim sendo, será mais fácil lembrar de como o Luizinho ainda tinha cabelo naquele passeio para Petrópolis em 2002 e das risadas naquele dia, ou mesmo recriar, mentalmente, um primeiro beijo que nunca aconteceu enquanto o ônibus voltava da serra. Já nos dizia Waly Salomão: a memória é uma ilha de edição. A magia que amplia a criatividade humana acontece no ato de recontação - uma sorte que, depois da exatidão inflexível do Google Photos, pode estar perdendo o seu encanto. 

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