quarta-feira, 9 de maio de 2018

Sei lá, essa afirmação metafísica

A associação instintiva que fazemos entre as palavras velam filosofias secretas sob a desatenção, ou sob a urgência da comunicação, naturalmente. Aqui, valho-me de um desses pequenos brilhantes sob a poeira da funcionalidade da linguagem para demonstrar o que digo: a expressão 'sei lá'.

Sei lá, essa afirmação metafísica em si, e também metatemporal por supuesto. É uma das mais corriqueiras expressões em português, transitando tranquila entre todos os estratos sociais. Qualquer brasileiro ou brasileira conhece seu contexto e uso, mas rompo com o vício pragmático para dar vazão a uma despretensiosa divagação.

Sua noção registra, no presente, uma espécie de consciência sobre uma razão ainda desconhecida por nós que, para isenção inconsciente da ignorância, lançamos mão. Assim, dizer "sei lá" não é o mesmo que dizer  "não sei": enquanto este afirma a negação do conhecimento, o outro de certo modo o adia, não dando o braço a torcer. Também é diferente o uso de "vou saber (lá)" em relação a "sei lá", a começar pelo fato de que a primeira se trata de uma expressão com posição e contexto claros, também reconhecíveis por todos os falantes de língua portuguesa. Desmerecidamente, o contexto no qual se aplica "sei lá" pode vir imbuído em algum desdém, o que pode (quem sabe?), refletir nosso incômodo com nosso presente estado de ignorância e inveja do tempo em que sabemos. Com relação ao advérbio locativo, o "lá", o palpite é de que sempre seja uma referência ao futuro, e não ao passado, como sua abertura semântica pode nos levar a considerar. Porque, se sabemos de alguma coisa, usaremos esse conhecimento na resolução de algum problema -- essa é uma das funções da experiência -- e o que contrapõe o uso entre "sabia lá" e "sei lá". Por este motivo quando, diante de um problema, respondemos "sei lá", estamos dizendo que a resposta está no futuro, e que nós já a conhecemos. Uma coisa meio A chegada, filme de Denis Villeneuve.  

"Sei lá" é saber em outro tempo, e o reconhecimento de que sabemos disto agora, o que me provoca e me convida a uma revisão na linearidade do tempo. A literatura científica é prolífica quanto a possibilidades de viagens transtemporais, mas não há notícia, até o momento, de sua factibilidade. Avanços científicos podem provocar grandes mudanças na língua, mas o balé semântico que existe nela -- e seu crescimento exponencial -- é suficiente para gerar constrangimento à mais avançada das ciências.

É algo injusto que as palavras sejam surdas para si mesmas ao mesmo tempo em que podem produzir tanta coisa de modo inerente. Me perco pensando num velho cantor de blues surdo-mudo a mendigar por centavos enquanto desencrava, do silêncio, as mais belas canções; ele mesmo não podendo ouvir os próprios acordes não que aprendera a tocar, mas que (como se fosse possível) sempre soubera.

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