domingo, 13 de maio de 2018

Pra desfilar na Mangueira

Não sei de onde veio esse delírio. Sequer passei pela Tijuca, faz tempo não volto os olhos para o pombal à esquerda da saída da estação do Maracanã onde você morava em condição tão solteira: o colchão de casal gasto no chão, alguns livros guardados em caixotes de madeira, outros espalhados por um quarto no qual, na ausência de um armário, você organizava suas peças de roupa em uma arara de metal simples herdada da exposição de um amigo. Meias seriam um problema se você usasse. Falando nisso, percebi que você até tentava manter alguma ordem na disposição linear discreta dos sapatos no canto esquerdo do quarto, mas porque precisava trabalhar e ir à praia e ir a outros lugares que nunca saberei, o jeito desconectado como se encontravam parecia dar continuidade inanimada à tortura dos seus passos. Na pequena sala, uma bagunça sem fim e becks por toda parte. Também havia um aparelho de som, herança de outro amigo, você contou que quem tinha amigo não morria pagão. Daquele dia nesse apartamento, herdei o zumbido da final do Flamengo contra o Fluminense e dos 3 álbuns do Pixies que ouvimos em sequência (enquanto produzíamos, nós dois, nossa própria orquestra sob a franja do som ao redor.) Nada digno de nota, só fui tentando remontar algumas das horas mais recentes que passei contigo para entender de onde veio o delírio. Entender o delírio, veja só. Nunca disseram que seria simples a emoção do ponto de vista de quem nasce sob a lua em exílio. Gosto de pensar (ainda) que o horóscopo e Shakespeare explicam nosso desarranjo. Melhor dizendo, meu desarranjo contigo. Melhor dar descarga. O horóscopo tá na moda, por isso todos os dias vemos resumos das nossas vidas em colunas nos jornais que parecem prateleiras. E Shakespeare é moderno, usava brinco na orelha, como você. Vocês dois, culpados.

Eu vi você desfilando ao meu lado na ala dos compositores da Mangueira num carnaval em suspensão: não aconteceu e não acontecerá. Apesar de nunca ter demonstrado, não tenho dúvidas que você sabe sambar. Há mais malevolência nos atos que julga nossa vã filosofia, e fosse na preparação de um drink, de um prato ou de uma sinfonia, lá, cravejado, estava o samba que você deixava escapar. Você, no delírio, gingava, botando pra gemer essa voz extrema abafada no calor da cozinha industrial dos dias comuns -- há algo fundamental escondido no silêncio dos seus sonhos fervidos -- e quanto a mim, fui beneficiada pelo sangue. Sambar na avenida não é tão misterioso assim. A imagem é bonita, acredite sem muito critério: sapato bicolor, chapeuzinho vagabundo, calça branca e camisa verde-e-rosa, os dois na avenida, pra desfilar na Mangueira em um delírio enrolado em cetim barato. Talvez pra não azedar a beleza da imagem com hipóteses mais dramáticas, essa foi a única cena que o delírio me deu. Sem discussões anteriores sobre desfilar no Salgueiro, conforme talvez eu quisesse; sem discussões entre a escalação do Flamengo após a saída do Muralha e uma possível diferença de desempenho e resultado na Libertadores no caso de uma melhor direção do Vasco, sem discussões sobre o mistério -- esse sim, o maior deles -- do que acontece contigo entre março e novembro. Nós dois, sapato bicolor, chapeuzinho vagabundo, calça branca e camisa verde-e-rosa, os dois na avenida, pra desfilar na Mangueira em um delírio enrolado em cetim barato. No recuo, Shakespeare, enfim, nos espera num púlpito. A gente aceita.

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