terça-feira, 14 de agosto de 2018

Nemesis

Nosso assunto começa na boca.

Se teu ofício te encarrega de deliciar o que entra por ela, improcedente não seria dizer que o meu me responsabiliza pelo deleite que o que sai da minha pode provocar. Sim, aqueles que visamos encantar pela boca, devemos impressionar considerando nossas então diferenças quase fundamentais. Tu precisas colecionar essas bocas, em criar e aprisionar matemático dentro delas para assim traduzir nelas o que é o gosto do afeto; elas vão descobrir teu dote na adivinhação molhada das línguas. Tu entras. Meu movimento é inverso, é de expulsão. Preciso aprender, cada dia o primeiro sendo, como concentrar a força, de que maneira pesar cor e tom de cada palavra escolhida, que uma vez fora de mim, não me pertence mais.

Somos terminantemente cientes: o ponto errado (coisa de tempo a mais, ou a menos) avaria o resultado. Mas até falar nisso é complicado: seja tu nos estômagos, ou eu nos ouvidos, só algum aspecto sacerdotístico para nos nomear conquistadores máximos em nossos (a)fazeres. Precisamos languidamente, cada um à sua moda, descortinar o histórico que guarda abaixo de si os sentidos dos que nos requisitam; tateá-los, com ritmo e intimidade, até a submissão, voluntária e declarada. O percurso é exatamente o mesmo, do mais simples ao mais refinado paladar. Magia existe, e acontece assim. Lhe arrenegam os que nunca foram tocados por ela. Alquímicos, nós? Não duvide.

O nobre de nossas tarefas se deve à obrigação compulsória aos nomes que nos antecedem. Ou como honrar consciência e caminho ao dividir o mesmo nome de oficio que Atalla, de Szymborska? É maior que nós o fato: consciência obrigada e debitada de si mesma. Exigências. Tua natureza profundamente discreta desmente tua anarquia verbal. Eu sei, não terás como te defender: ambicionas o celeste das bocas, desde a fruta escolhida com o máximo do olho; o odor dos temperos estalando tuas analíticas narinas adentro. Mesmo com as horas pesadas em tuas costas (largas), a carência completa de noção de quem é míope à tua arte, inspiras o coentro, os cogumelos frescos; tomas de empréstimo o sabor do caldeirão no canto da palma da mão (suave batida da colher-de-pau), deslizas o dedo experiente nas rapas dos tabuleiros, porque sabes o que fazes. Assim, amor, faço com as palavras. É seleção tão difícil quanto, tão próxima quanto. Antes, eu costumava pensar que meu trabalho se parecia mais com o de um estilista, em Balenciaga eu pensava, em Chanel. Afinal, eles também sabiam a importância da precisão de um ponto. Mas pousei meus olhos em ti, e entendi. Como não entender?

Como não entender? Tu dentro; eu, toda fora. Se eu preciso de expansão, se preciso de dois ouvidos (e com isso a exponencialidade por si só já diz do resto), tu atomizas: uma língua bem papilada e está feito. O que fazemos, aí e aqui, é integrar nossa matéria a cada fibra de quem atingimos. As palavras que saem me custam horas debruçada sobre a indecisão, e para todo o visível há muitas sombras de renúncia, momentânea que seja (o descarte é sempre algo momentâneo). Não é também assim quando tu crias? Sabes o que funciona e onde, mas me diga como, sendo quem és, (sendo quem sei que és), como não amar o desconhecido, por que não a ousadia, por que não a assinatura? E assim, depois de tantos passos roubados, aí e aqui, se consolidam duas órbitas colisivas. Porque sim.

A cozinha e a palavra são os duplos perfeitos que nós mesmos somos.

Um comentário:

Nicholas disse...

Belíssimo... Que bom saber que ainda existe vida inteligente e sensível na Internet ❤️