sábado, 24 de fevereiro de 2018

Que mundo maravilhoso! / Carta ao pai

Vejo árvores verdes, rosas vermelhas também

Uma tempestade desliza pelo céu como quem adentra uma igreja, sufocando a luz com as mãos. Ele insiste comigo, você está preparada para a grande viagem?, mas meu braço é teso do outro lado: já não estamos em curso, meu pai? No seu rosto, um sorriso em falso. Ele toma a minha mão livre -- na outra, está a metade de uma maçã. Vamos ter que vender o carro.

Eu as vejo florescer, pra mim e pra você

Há suor onde seus músculos dobram; não é difícil encontrá-lo suado, sempre na confecção incansável e quase viciosa de pequenas banquetas de madeira que, nos últimos anos, dedicava-se a talhar. Como, há algumas décadas atrás, também o fazia seu pai. Rodopiamos em franca descoordenação pelo chão branco, dança esquisita e sincera, tentando acompanhar a música que tenta nos ajeitar. Ele tem os pés imundos.

E eu penso comigo

Como assim vender o carro? Mas ainda não estamos pagando? Isso é fácil, só preciso ver quanto falta, fazer uns cálculos. O silêncio não é possível; não com aquela voz negra misturando sua graveza com a gravidez das nuvens. Nas nossas cabeças é que chove. Tá difícil, sabe? Não tenho mais de onde tirar. Não sei o que dizer, e prefiro me privar de dizer o óbvio. Tem outras coisas que estou pensando -- num movimento brusco, ele enverga minha coluna. Ah, é? E o que seriam? Uma trovoada seca substitui sua voz.

Que mundo maravilhoso!

Pelo menos ela chega amanhã, né? Ah, com certeza! Tô doida pra ver a barriguinha dela. Será que é menino ou menina? Eu sonhei que é menina.

Vejo céus azuis e nuvens brancas

Um dos meus chinelos se arrebenta por completo com o peso de uma das passadas, fazendo com que eu me livre de ambos, chutando-os em qualquer direção. No chute, perco o equilíbrio sobre a maçã que cai, newtoniana. Pai, nós somos péssimos dançarinos. Ele não responde. Continuamos dançando, fazemos troça, agradecemos à invisível platéia pela atenção dispensada, também envergo sua coluna. Trocamos de lugar várias vezes. É engraçado como ele me chama de mãe. O céu se tinge de um repentino e instável mormaço dourado.

O dia claro abençoado, a noite escura sagrada

Imprimimos discretas linhas de nossos volteios no chão. Aqui jaz a marca mística da dança: se o chão se convertesse numa grande cartolina, o braço forte encontraria no garrancho uma rima interessante. Acho que assim vai ser melhor pra sua mãe, também; ele salienta, se justificando. Cada um vai poder viver da maneira que achar melhor, sem ter mais que se magoar, sem precisar se deslocar pra encontrar quem quiser. Em suma, vou sair do caminho dela. E com isso, sai do meu também? Minha filha, você já tem quase 30 anos. Não precisa mais se preocupar com isso.

E eu penso comigo

Envolvo seu pescoço com meus pulsos e diminuímos o ritmo da galhofa: a música parece nos encontrar. Fecho os olhos e olho para baixo, meus pés pequeninos sobre os dele, a unha do dedão do pé esquerdo sempre encravada e feia demandando cuidados; meus joelhos não dobram, ele é a dança, ele é a música. Me falta o dente da frente que há 30 minutos ele arrancou amarrando-o a uma linha em conexão à porta da sala. Eu já parei de chorar, mas ainda está doendo.

Que mundo maravilhoso!

Pai, não é justo você fazer isso. Eu entendo suas razões, mas isso não é justo, não é. Ué, minha filha, e que outra solução você vê? Você entende que não tem mais cheque especial? Que ou é isso ou podemos perder a casa? Eu falei com algumas pessoas. Não queria isso, na verdade é meu último tiro, mas talvez eu volte a trabalhar em ambulatório. Pai, escuta o que eu te digo. Eu posso não ter dinheiro agora, mas não vou ficar desempregada pra sempre. Quando eu voltar a ter dinheiro você não vai precisar sacrificar tanta coisa assim. Mas o que eu faço enquanto isso, filha? Olha, não é querer falar não, mas tá demorando, né? Você já vai pra quase dois anos desempregada. Eu não entendo muita coisa, mas com as coisas que você sabe, já poderia ter dado um jeitinho. Não pense que isso é uma cobrança, bom, não deixa de ser, também, mas não quero que você se sinta mal por isso. Eu só não posso ficar contando com você, não diante da nossa atual situação. Preciso agir agora. Eu sei que um dia você vai ganhar seu dinheirinho, e ele vai ser só pra você, filha. Eu não quero ele.

As cores do arco-íris, tão bonitas no céu

A questão não é essa, pai. É essa, mas também não é. Você sabe que esse é meu último ano na faculdade, que infelizmente tudo depende dos próximos seis meses; e esse é meu compromisso máximo. Eu não vejo a hora de trabalhar feito uma doida, mas eu tô presa nisso. Por enquanto. Desculpa, pai, mas eu não estudei tanto pra ficar atrás de um balcão e prejudicar a conclusão da graduação por conta disso. O retorno vai vir. Pelos nossos esforços, juntos. Eu sei que você também sabe disso, não sabe? E não tem essa de "meu dinheirinho é só pra mim", é claro que eu vou chegar junto e vou tapar todos os buracos que eu puder, assim que puder. Não sou ingrata. É claro que eu vou cuidar de você e da minha mãe, nenhum de vocês precisa ter a menor dúvida quanto a isso.

Também estão nos rostos das pessoas que passam

Você acha que você é melhor que alguém que trabalha atrás de balcão, minha filha? Olha, seu avô começou trabalhando atrás de um. Trabalhou atrás de um balcão por quase oito anos, até ele conseguir mudar de condição. Sua avó era merendeira. E não era só eu e uma irmã em casa não; era eu e mais dez. Já se imaginou morando com mais dez irmãos? Vendo dois deles morrer porque faltava tudo? Eu comecei a ajudar em casa com dez anos, filha. Dez anos. Eu ia e voltava pra lá e pra cá entregando as quentinhas que sua vó fazia. Muito me orgulha que você não tenha precisado passar por isso, muito me orgulha que com essa idade você tava na escola, bem alimentada, fazendo dever, viajando quando podia. Muito me orgulha que você vai se formar por uma grande universidade. Mas você acha que é melhor que alguém que trabalha atrás de balcão, minha filha?

Vejo amigos se cumprimentando, dizendo "como você vai"

Sacudimos as mãos no ar, trocando o ritmo por um sapateado displicente. Meu pai dá um salto, e de sapateado vamos ao foxtrote; mas nos demoramos pouco, voltamos à valsa tosca e performática de antes, ele me suspende pela cintura, e meus braços florescem no ar abrindo e fechando quase no mesmo instante, ele me devolve ao chão lentamente como se me pusesse pra dormir. Tomo seus braços num movimento drástico, um, dois, três rodopios, e antes que ele fuja da minha órbita é resgatado pela minha mão no limite da extensão, ele ri do que penso ser nossa falta de cadência, tem razão, filha, nós somos péssimos dançarinos.

Na verdade eles estão dizendo "eu te amo"

O peso da chuva finalmente rompe a membrana das nuvens; as gotas cadentes vão procurar o asfalto com as bocas bem abertas; o asfalto ferve a água morna e nos devolve o calor vaporoso que angustia o corpo, ressentido pelo desconforto da resposta: espécie anômala de frio vespertino no deserto. Entre mim e meu pai se interpoem delicados cavalos microscópicos que nos atiçam o suor. A água, déspota da fome, tem como único objetivo alimentar-se de mais água. Quer se parecer mais e mais consigo.

Ouço bebês chorando, eu os vejo crescer

Tombo a cabeça no peito quente de meu pai e ouço um ruído de raízes serpenteando lá dentro sem agonia. Estudo sem pressa o rigor saudável de seu amor retumbante e incorruptível forjado na tradição dos costumes, na força educativa das perdas humanas e capitais, no compreensível bem-estar físico de seus méritos por seus esforços, na lentidão cálida de infinitas horas rezadas aos santos de sua confiança, e lá, nesse alto que presumo, está a beleza opulenta e incontestável da fé, que por afastá-lo diariamente de uma pérola de cianeto de potássio, tem de mim uma gratidão diagonal muito superior a que ele jamais será capaz de imaginar, na contraintuição de quem nunca aprendeu direito a rezar.

Eles saberão muito mais do que eu jamais soube

Como foi no sonho, ele me pergunta. Sonhei que era uma menina! Estávamos na casa de praia, ela me chamava pra ir ver alguma coisa nos fundos da casa, onde a gente comia pão-com-ovo que minha avó fazia pra gente escondido. Lá ela tirava o neném da barriga, como se desfizesse uma dobradura. E era uma menina. Ah, uma menina linda! Ele sorri, ponderando. Eu queria menino. Imagina só se vier um menino -- seu rosto se avermelha intensamente e os olhos explodem. Eu vou endoidar. Mas se vier uma menina você vai poder fazer as mesmas coisas, já pensou? Ensinar a soltar pipa, jogar futebol, é tudo criança, é tudo curiosidade, é tudo desbunde. Mas ele não concorda, eu sei que não; então prolonga o sorriso que vai se perdendo em alguma outra expressão indefinível. Eu vou amar independente de qualquer coisa, é só isso que eu sei. Eu vou ser avô! Você não sabe o que é isso. Não vai saber tão cedo. Confirmo com um sorriso. A gente tem sorte, pai. A dança vai se convertendo num abraço que termina sem aplausos. E eu penso comigo, que mundo maravilhoso.



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