a noite era de lua cheia mas no quarto não havia janelas. farida se movia pelo pequeno espaço, chamando a meditação que não vinha: fingindo a penumbra para si para abafar os próprios monstros, todos ali, todos com ela. era cheia a lua, e ela sabia nas marés do corpo, na suscetibilidade da pele em contato com as próprias unhas, todos os pequenos pêlos de seu nariz farejando a memória da carne no barro abafado do quarto. engole a saliva quente como se se aconselhasse. aqui não. inspira com vontade, educando o caos.
dahaya está lá fora, o tacho cheio de olhos e sementes começaria a ferver em poucos minutos. a chama ainda não crepitava e os insetos não davam sossego à pequena samira, que estourava as bolhas que o sol havia acumulado em sua pele. samira, traz pra mãe a cuia preta. com uma tinta vermelha dahaya tingia os antebraços, as gravuras escorregando por eles como veias antigas e maculadas. tomando para si uma outra cuia, próxima a seu corpo, contendo uma tinta preta, com a ajuda de um pincel criava linhas arredondadas no rosto, que ia espalhando pescoço e colo abaixo. onde as linhas formavam redondos labirintos pingava pequenos pontos pretos, circundando estes de pontos pretos ainda menores.
farida parecia ter reconciliado o corpo, a mente e a calma até sentir nas narinas o cheiro bruto da mistura que vinha do tacho. sentia a boca encher duma água quente e rugosa, como se debaixo de sua língua houvesse um sapo. um tremelique correu por seus olhos, derrubando lágrimas nervosas pelo seu semblante. havia 3 dias ela estava encarcerada lá dentro, sem receber visita alguma que não fosse para deixar-lhe uma jarra de água que lhe descia pelo corpo com gosto de terra. era sua condição, auto-imposta, sua resposta pra si. precisava se limpar. mas nada lhe afastava o cheiro perturbador da mistura, podia se ver contando os passos, e até mesmo os dos joelhos, fosse o caso de ir até o lugar onde dahaya estava, engatinhando. podia sentir o cheiro da própria dahaya, o manuseio de alguma pasta, e sentia os olhos virando para dentro do corpo enquanto começava a sentir a nuca quebrando sobre os ombros e as funções lhe deixarem.
com um óleo feito de ervas, dahaya untou os pés e as mãos, e pediu à samira que se retirasse. a menina se levantou do chão sacudindo os joelhos, como se houvesse sido perdoada. a mulher encouraçou o tronco com uma grossa cinta, onde guardou uma adaga de prata, confeccionada com marfim e pedrarias que brilhavam à luz daquela lua tão cheia e pavoneada, além de um bastão de madeira em cuja ponta pendia um guizo, também de prata. cobriu a cabeça com uma rede feita da mais escura das jutas. entoando cânticos numa voz rouca e distorcida, mas enérgica, e sacudindo com força uma argola cascateando em chocalhos de conchas e dentes, percorreu alguns metros até chegar ao quarto onde farida se desencontrava da própria matéria, num trânsito intenso de botar medo. num grito que provocou uma revoada dos pássaros que perto dali dormiam, dahaya bateu com o guizo no ferrolho enferrujado, e abriu a porta.
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