domingo, 22 de março de 2020

[TRADUÇÃO] Nós não vamos voltar ao normal

NÓS NÃO VAMOS VOLTAR AO NORMAL

O distanciamento social veio pra ficar por muito mais que algumas semanas. Ele vai virar nossa forma de viver de cabeça pra baixo, e de alguns modos, pra sempre. 

Por Gideon Lichfield

Para deter o coronavirus nós precisaremos mudar radicalmente quase tudo o que fazemos: como nós trabalhamos, nos exercitamos, socializamos, compramos, administramos nossa saúde, educamos nossos filhos, cuidamos da nossa família.

Nós todos queremos que as coisas voltem ao normal rapidamente. Mas o que a maior parte de nós provavelmente ainda não se deu conta - embora vá fazê-lo logo - é que as coisas não vão voltar ao normal depois de algumas semanas, ou mesmo depois de alguns meses. Algumas coisas nunca mais voltarão ao normal.

Agora é consenso (até na Grã-Bretanha, finalmente) que todos os países precisam "achatar a curva": impôr distanciamento social para retardar a disseminação do vírus para que o número de pessoas doentes de uma vez não colapse os sistemas de saúde, conforme esta realidade ameaça a Itália agora. Isso significa que o estado de pandemia precisa durar em baixo contágio até que pessoas o suficiente tenham contraído Covid-19 para que a maioria consiga ficar imune (imaginando que a imunidade dure por anos, o que nós não sabemos) ou que haja uma vacina.
Quanto tempo isso vai durar, e quão draconianas as medidas de distanciamento social precisarão ser? Ontem o presidente Donald Trump, anunciando novas instruções como um limite de 10 pessoas em encontros, disse que "com muitas semanas de atenção focada, nós podemos contornar a curva e virá-la rapidamente". Na China, seis semanas de lockdown estão começando a suavizar agora, de modo que o número de novos casos caiu até o ponto de uma semi-estagnação.

Mas não vai acabar aí. Enquanto uma pessoa no mundo tiver o vírus, pandemias podem e vão continuar ocorrendo se controles rigorosos para contê-las não forem pensados. Num relatório de ontem (PDF), pesquisadores do Imperial College de Londres propuseram uma forma de dar conta disso: impôr medidas mais extremas de distanciamento social toda vez que entradas em UTIs começarem a escalar, e relaxá-las cada vez que o número cair. Aqui é como isso se parece no gráfico:


A linha laranja representa o número de entradas na UTI. Cada vez que elas subirem além do limite - digamos, 100 por semana - o país fecharia todas as escolas e a maior parte das universidades e adotaria o distanciamento social. Quando elas caírem para abaixo de 50, essas medidas seriam então suspensas, mas as pessoas com sintomas ou cujos membros familiares têm sintomas deveriam continuar confinadas em casa.

Mas o que conta como "distanciamento social"? Os pesquisadores definiram isso como "todas as casas reduzindo seu contato com outras casas, escolas e locais de trabalho em 75%". Isso não significa que você não vai poder sair com seus amigos uma vez por semana ao invés de quatro. Significa todo mundo fazendo tudo o que puder para minimizar o contato social, e num panorama geral, o número de interações assim cai para 75%.

Dentro desse modelo, os pesquisadores concluem, o distanciamento social e o fechamento de escolas precisariam estar em vigor algo em torno de dois terços do tempo - por baixo, dois meses sim, um mês não - até que uma vacina esteja disponível, o que levará no mínimo 18 meses (se funcionar de fato). Eles observam que os resultados são "quantitativamente similares para os E.U.A."

Dezoito meses!? Certamente deve haver outras soluções. Por que não construir mais UTIs e tratar mais pessoas de uma vez, por exemplo?

Bom, no modelo dos pesquisadores, isso não resolveu o problema. Sem distanciamento social da população inteira, eles concluíram, até mesmo a melhor estratégia de mitigação -- o que significa quarentena dos doentes, dos idosos, e daqueles que foram expostos, mais fechamento de escolas -- ainda levaria a uma onda de pessoas criticamente doentes oito vezes maior que os sistemas de saúde dos E.U.A. ou do Reino Unido seriam capazes de aguentar. (Esta é a curva azul mais baixa no gráfico abaixo; a linha vermelha plana é o atual número de casos em camas de UTI.) Mesmo se você programar fábricas para que produzam camas e ventiladores em massa e todas as outras estruturas e suprimentos, você ainda precisará de muito mais enfermeiros e médicos para cuidar de todo mundo.



 Em todos os cenários com isolamento social difundido, o número de casos de Covid colapsa os sistemas de saúde.


Que tal impôr restrições por apenas um punhado de cinco meses ou algo assim? Nada feito -- uma vez que as medidas são suspensas, a pandemia explode de novo, só que dessa vez é no inverno, a pior época para sistemas de saúde já esgarçados.



Se o distanciamento social completo e outras medidas são impostas por cinco meses, e então suspensas, a pandemia volta

E se nós decidirmos ser brutais: estipular um número-limite para entradas em UTIs para engatilhar um isolamento social muito maior, aceitando que muito mais pacientes podem vir a morrer? Parece que isso faz pouca diferença. Mesmo nos cenários menos restritivos do Imperial College, nós estamos trancados em mais da metade do tempo.

Esta não é uma disrupção temporária. É o começo de um modo de vida completamente diferente.

Vivendo em estado de pandemia

A curto prazo, isso vai prejudicar imensamente negócios que dependem de pessoas se reunindo em grande número: restaurantes, café, bares, casas noturnas, academias, hotéis, teatros, cinemas, galerias de arte, shoppings, feiras de arte, museus, músicos e outros artistas, ginásios esportivos (e times esportivos), locais de conferência (e produtores de conferências), linhas de cruzeiros, linhas aéreas, transporte público, escolas privadas, creches. Isso sem mencionar na pressão em cima dos pais quanto à educação domiciliar dos filhos, das pessoas tentando cuidar de parentes idosos relativamente sem expô-los ao vírus, pessoas aprisionadas em relacionamentos abusivos, e qualquer um sem alguma reserva financeira para lidar com as alterações no salário.

Haverá algumas adaptações, é claro: academias poderão começar a vender equipamentos para casa e sessões de treinamento online, por exemplo. Veremos uma explosão de novos serviços no que já vem sendo chamado de "claustroeconomia digital"*. Pode-se também considerar, esperançosamente, sobre a forma como alguns hábitos podem mudar -- menos emissão de carbono durante viagens, mais cadeias de suplementação locais, mais caminhadas e pedaladas.

Mas a disrupção para muitos, muitos negócios e comunidades será impossível de administrar. Sem contar que o estilo de vida claustroeconômico não é sustentável por longos períodos.

Então como nós podemos viver nesse novo mundo? Parte da resposta -- ainda bem -- será sistemas de saúde melhores, com unidades de resposta a pandemias que se movimentarão rapidamente para identificar e conter surtos antes que comecem a se espalhar, e a habilidade de rapidamente aumentar a produção de equipamento médico, kits de teste, e medicamentos. Estes estão atrasados demais para deter o Covid-19, mas irão ajudar em futuras pandemias.

A médio prazo, nós provavelmente acharemos estranho acordos que nos permitam reter alguma semelhança com a vida social. Talvez cinemas tenham seu número de assentos reduzidos pela metade, reuniões serão conduzidas em espaços maiores com cadeiras espaçadas, e academias irão requerer que você reserve suas aulas com antecedência para que não fiquem lotadas.

Num cenário mais distante, no entanto, eu prevejo que nós restauraremos a habilidade de socializar com segurança ao desenvolver maneiras mais sofisticadas na identificação de quem é um potencial risco-doença e quem não é, e discriminando -- legalmente -- os que são.

Nós podemos ver os precursores disso em medidas que alguns países estão adotando hoje. Israel vai usar a informação de localização remota por celulares com a qual seus serviços de inteligência rastreiam terroristas para rastrear pessoas que tiveram contato com hospedeiros conhecidos do vírus. Singapura faz um exaustivo trabalho de rastreamento de contato e publica informações detalhadas sobre cada caso conhecido, tudo sem identificar as pessoas pelos seus nomes.

Ainda não sabemos exatamente como este novo futuro se parece. Mas é possível imaginar um mundo no qual, para tomar um avião, talvez, você tenha que submeter-se a um serviço que rastreie seus movimentos via celular. A companhia aérea não conseguiria ver por onde você se deslocou, mas seria alertada caso você tivesse estado próximo a pessoas infectadas conhecidas, ou em focos de doença. Haveria requerimentos similares em entradas de locais amplos, prédios governamentais, ou estações de transporte público. Haveria scanners para aferir a temperatura, e pode ser que seu local de trabalho obrigasse você a usar um monitor que inspecionasse sua temperatura ou outro sinal vital. Onde casas noturnas pedem carteirinha de identidade, no futuro elas poderiam pedir uma carteirinha de imunidade -- um cartão de confirmação ou algum tipo de verificação digital via celular, mostrando que você já se recuperou ou foi vacinado contra as últimas mutações virais.

Nós nos adaptaremos e aceitaremos tais medidas, assim como nos adaptamos a escaneamentos cada vez mais severos em aeroportos na esteira de ataques terroristas. A vigilância invasiva será considerada apenas um pequeno ônus a ser pago pela liberdade básica de viver e conviver com as outras pessoas.

Como de praxe, no entanto, o verdadeiro custo vai sair dos mais pobres e mais fracos. Pessoas com menos acesso à saúde ou que vivem em áreas mais sujeitas a doenças serão muito mais frequentemente barradas de lugares e oportunidades abertos ao restante das pessoas. Trabalhadores informais  -- de motoristas a encanadores, de freelancers a instrutores de yoga -- verão seu trabalho se tornar ainda mais precarizado. Imigrantes, refugiados, indigentes, e ex-presidiários irão enfrentar ainda mais obstáculos para obter seu lugar na sociedade.

Ainda, a menos que haja regras estritas sobre como o risco de alguém à doença é avaliado, governos ou empresas poderiam escolher qualquer critério -- você é alto risco se ganha menos de $50.000 por ano, é de uma família com mais de seis pessoas, e vive em determinadas partes do país, por exemplo. Isto cria um escopo para parcialidade algorítmica e discriminação subjacente, com aconteceu no ano passado com um algoritmo usado por seguradoras de saúde americanas e que acabou, inadvertidamente, favorecendo brancos.
O mundo mudou muitas vezes, e está mudando de novo. Todos nós teremos que nos adaptar a uma nova maneira de viver, trabalhar, e criar relações. Mas como em toda a mudança, haverá alguns que perderão mais que outros, e eles serão justo aqueles que já perderam muito até agora. O melhor que podemos esperar é que a profundidade desta crise finalmente force os países -- os Estados Unidos, em particular -- a consertar as morosas desigualdades sociais provocadoras de enormes abismos em seu povo já tão intensamente vulnerável.

*Termo cunhado por Michel M. Rolli (22/03/2020)
Colaborou: Michel M. Rolli

Texto originalmente disponível em
https://www.technologyreview.com/s/615370/coronavirus-pandemic-social-distancing-18-months/

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