quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Os meninos suicidas

Os meninos suicidas entraram no ônibus num trote sonoro, violento. Um monte de pernas pretas e ruças em par, se trombando todas na correria por um assento vago. “Estamos fora do problema, mas se o problema vier até nós, não vamos correr”, disse assim, messiânico, um deles.

Gritos, psssst, quando a gente desce, porra mané, tô chei de fome, risos, funk, gritos. Ninguém dorme. Os meninos suicidas desejam que o ônibus tombe, e que morram todos. Eles reiteram sua vontade repetidas vezes durante o trajeto, como se apenas pela força dela aquilo fosse capaz de acontecer. Mais uma curva, e a morte não chega. Azar.

Meninos suicidas não podem amar aqueles que os fitam com nojo, cinismo e desprezo. Eles não podem fazer silêncio para que sua miséria passe despercebida – ela, por si só, é bem ruidosa. Eles não podem se comportar porque o pai deles não recebeu educação, porque o pai do pai deles não recebeu educação, porque o pai do pai do pai deles não recebeu educação, porque o pai do pai do pai do pai do pai deles, no lugar de educação, recebeu uma saca pesada de café muito maior que suas próprias costas para carregar – e a única herança que conhecem é a saca. Eles não podem amar um pai que talvez nem tenham conhecido.

“Vai cair, vai virar, vai cair, vai virar”. “Tomara”. “O fim dos tempo, tô doidim que chegue logo, vários arrastão pra nóis fazer”. Someone has to pay the bills.¹ Os meninos suicidas não temem a morte – aquilo a que se acostuma, afinal, só se destina indiferença. Não há com o que se importar porque eles já estão socialmente mortos. Agora querem morrer fisicamente, mas antes querem que os outros morram. Querem mata-los se tiverem a chance. E vão rir disso com a felicidade nervosa de quem espera algo ou alguém com saudade, sob uma bananeira, apontando uma arma iluminada pelo sol de forma que, aquele que morrer pelo tiro que vai sair dela possa ver, minutos antes, o vermelho-queimado que emoldura o interior do cano. Eles não vão ter pena porque não podem. Meninos suicidas não podem muitas coisas.

Faz um dia bonito e quente do lado de fora da janela. Talvez até mesmo a morte possa esperar aqueles que precisam fazer um passeio. Apontam seus indicadores para as motos, para a mulher gorda, para o cavalo e tudo o mais que fica para trás. Um deles diz que vai acender velas para São Jorge. O outro faz um sinal de degola para um transeunte. Mais calado e alheio, um cola a testa no vidro e apenas observa o movimento nas ruas. Hoje eles são reis. Mas que súdito respeita reis sem coroa? Que reino é esse que se ergue se os reis próprios são anarcomonarcas? Que reino é governado por meninos de 12 anos que têm a morte como a única certeza, uma morte inevitável que se manifesta de diferentes formas, tantas vezes por dia? Certamente que é melhor ser rei de si, que "si" é uma terra onde se sabe caminhar, que "si" é o lugar onde não se paga imposto.

Ao descer do coletivo, os meninos suicidas se espalham entre as demais pessoas que deixam a estação. Do lado de fora, um homem uniformizado de azul-escuro os espera de braços cruzados. Quando eles se dão conta de que são esperados eles se tornam aranhas, e serpentes, e ratos, e pássaros, e passam pelas mãos do homem, e pelas pernas, e pelos braços, porque tendo o inimigo tendo pés não foi capaz de alcançá-los; porque eles olharam dentro do olho do inimigo e disseram say you never gonna catch me, no², mas os meninos não falam inglês. Os meninos falam é a língua da rua com os examinatórios pés calejados de tanto correr, e com os olhos invasivos e curiosos de quem nada tem.

Qualquer dia de sol desses os meninos explodirão. Um após o outro, dois ao mesmo tempo, porque, então, os dias amargos terão chegado ao fim³. E não há de cair uma folha da árvore em luto por eles. Indiferentes, eles encontrarão São Jorge que, grato pelas velas acesas, os receberá de braços abertos.

1- The boys who died in their sleep, Flying Lotus, ‘You’re dead!’, 2014
2- Never gonna catch me, Flying Lotus feat. Kendrick Lamar, ‘You’re dead!’, 2014
3- Coronus, The Terminator, Flying Lotus, ‘You’re dead!’, 2014


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