quinta-feira, 25 de junho de 2009

Os ladrões

Flávio Silva está no seu horário de almoço. Ele cumprimenta a todos do restaurante, costume habitual que se repete há bons cinco anos. Está feliz. Acaba de negociar uma modesta propriedade no interior do Rio de Janeiro, onde pretende passar, com sua família, as férias. A barriga, levemente inchada da mesa farta e os resquícios oleosos da comida no sorriso de Flávio são apenas detalhes que denotam uma pessoa que progrediu na vida; um mosaico de um homem feliz e realizado sob todos os aspectos. Flávio paga a conta, e deixa o restaurante entre amistosos acenos para os funcionários.
Na contramão de Flávio está Lúcio. Mas como o registro geral só fica pronto em um mês, este atende melhor por Lucinho. Depois de mais uma briga séria com a mãe, Lucinho sai de casa disposto a fazer algo que mude pra sempre sua vida. Alguma coisa não necessariamente positiva. E Lucinho vinha avançando pela esquina com os pés, com as mãos, coração e tudo; num rompante medonho, de encontro a um Flávio tão absorto em sua própria vida que passaria por ele tão incólume quanto por uma folha seca deitada no chão, não fosse pelas palavras que invadiram espinhosamente os tímpanos de Flávio:
Perdeu, mermão. Essa porra é um assalto.
Flávio engoliu seco. Toda a sua pele começou a esquentar, como se todos os seus nervos estivessem sendo ligados em altíssima voltagem. Com os dedos trêmulos, ele tentava tirar a chave do carro do bolso.
Como é que é mermão, abre logo essa porra!
Flávio gaguejava, pedindo para que o infrator aguardasse. Não ordenava seu medo. Lucinho gritou e ele finalmente abriu a porta do carro.
Olha só mermão, se tu me enrolar eu te mato aqui mermo.
Calma cara, só ficar calmo que a gente acerta tudo.
Acerta é o caralho. Tu vai passar tudo o que tu tiver, começando por aquela mala ali.
Mala? Que mala?
Aquela ali atrás do banco, tá achando que eu sou otário? Lucinho acerta a cabeça de Flávio com a pistola, e o carro sofre um movimento brusco. Dirige essa porra.
A mesma sensação espinhosa que entrara pelos ouvidos de Flávio no momento da abordagem de Lucinho agora se intensificava. Flávio não contava com um assalto. Não naquele dia. Não podia ser. Todo aquele dinheiro, aquele dinheiro dos cinco meses. A mala no banco de trás, que Lucinho havia notado estava recheada com muitas cédulas. Cédulas de um suado processo que Flávio movimentara, coisa de três dias antes. Com um pequeno detalhe.
Flávio estava desviando da conta de Yolanda Pereira dos Reis, aposentada e viúva, a pensão que seu falecido marido lhe concedia mensalmente. Yolanda, já idosa e sem recursos tanto financeiros quanto físicos de recorrer à justiça, tinha como opção única aceitar o fato de ser lesada por um adevogado de gravata e postura acima de quaisquer suspeitas. Flávio, por um instante, viu-se diante da possibilidade impensada de perder, deliberadamente, para alguém do mesmo nível intelectual de Yolanda, todo o dinheiro conseguido às custas de tramóias, insubordinações, falsas petições e tudo o mais que tão comum é no ramo do direito. E que direito era aquele de Lucinho, de arrebatar-lhe seu sítio no interior do Rio? Sua renda extra, o lazer de suas lindas Marcela e Juliana, às quais havia prometido um pônei? Não. Aquilo sim era uma injustiça. Uma agressão ao inalienável direito à propriedade. Lucinho, trincando os dentes, jogava a pistola no nariz de Flávio, ameaçando sujar o vidro e todo o painel do carro de uma massa disforme de sangue e ossos. Flávio sua. Pensa na mulher. Pensa em Yolanda. Lucinho o ameça, enquanto debocha de sua condição. Por que não havia depositado a merda do dinheiro quando teve tempo?
Vai caralho, vai!
Apesar de ter sido sempre o mestre das muitas situações que lhe surgiam, Flávio se viu pertubadoramente acuado naquele momento. Lucinho falava o tempo todo em matá-lo, e ele não duvidava de suas palavras por ver crack em seus olhos.
Desce.
Mas cara... meu carro!
Desce agora porra! Quer morrer?
Flávio desceu do carro aos solavancos, tão abruptamente quanto havia entrado. Ainda processava tudo o que havia lhe ocorrido. A pistola na cabeça. Aquele moleque nem vinte anos tinha. Mas não poderia denunciar Lucinho. Apesar de estarem social e diametralmente opostos, havia algo em comum entre eles. Ambos estavam atrelados a crimes. Eram diferentes criminosos, comungando da impunidade sob a qual se ancoravam. Uma estranha interdependência. Um desconcerto de mundo que faz tudo andar.
O homem, então tão indigente quanto Lucinho, faz seu caminho de volta a pé. Com o bem mais precioso que o ladrão lhe deixara: sua história. Sua vida. E, principalmente, sua memória.

Post dedicado à minha avó, Yolanda Pereira dos Reis.
E pelo fim da impunidade dos crimes de todas as espécies neste país.

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