Do meu quarto eu já consigo ouvi-lo. Ele vem subindo as escadas, trotando, ofegante, feliz; quebrando deliciosamente minha concentração nos meus intermináveis textos de teoria literária. Vou à cozinha e lá está ele. Desajeitado, a mãozinha de unhas roídas e encardidas apoiada na parede, a outra a remover a meia do pé. Ele olha pra mim, e me dá o melhor presente: seu sorriso sincero, que na ausência dos dois dentes frontais só se torna ainda mais angelical. Então eu o abraço. A camiseta de seu uniforme cheira a refrigerante e suor, mas um suor cheiroso, puro. Ele me envolve, e como num passe de mágica, me transmite toda aquela felicidade que me parece tão distante nas outras horas em que ele não está perto.
E então dispara a contar dos feitos na escola, comendo partes inteiras das palavras, - tão dispensáveis quando sua visibílissima empolgação e vitalidade embriagam o meu olhar - relatando suas descobertas, a pinta da tia, o sobrenome engraçado do amigo, a hora do recreio. De súbito, ele lembra do horário de seu desenho predileto, e corre da cozinha para a sala, se jogando no chão fresco, colando seus olhos atentos à tela como se fosse a programação mais incrível do mundo. Mesmo reprisado, o desenho ainda o faz cantar sua música-tema, vibrar com o sucesso do heroizinho, torcer contra o mau elemento.
Ele pede 'necau'. Há alguns bons anos ele já conhece a pronúncia certa, que é 'nescau', mas reitera esse pequeno tatibitate talvez até por (in)conscientemente saber que ainda mais graça e ternura isso lhe confere. Ele não come açúcares, mas os únicos que tolera são os presentes neste achocolatado, em refrigerantes, em sorvetes (morango, only) e - pasmem - no leite condensado. Alguma meia hora depois, hora do almoço, ele nutre o péssimo hábito de adorar aquelas pequenas e venenosas carnes congeladas - os mini chickens - e só come mediante a presença daquilo em meio ao arroz e feijão. A digestão é obviamente acompanhada de guaraná.
Logo após isso, ele espaçosamente pula na cama do quarto de minha mãe, e pede para que eu ligue o video-game. E o tempo parece se congelar durante o jogo, tão maravilhosa que é a minha tarde com ele. Para ele, eu sou uma heroína, tanto quanto a princesa Zelda. Eu sou muito esperta, ele nunca vai ser igual a mim, eu tenho a letra bonita, eu sei ensinar o dever, ele me ama de quinze em quinze minutos. A sua vozinha rouquenha e pueril inunda meus ouvidos de alegria, faça chuva ou sol. Quando chega a hora de voltar à sua casa, geralmente vai sob protestos - e secretamente, também o faço (quisera eu ser sua mãe). Chora, mas aos poucos vai calando quando eu digo que no dia seguinte, ele estará de volta para fazermos tudo de novo, inclusive chegar ao mestre do jogo, pesky Skullkid. Temos umas bobeiras só nossas. Inventamos uns nomes que só nós sabemos. Suas axilas ele chama de Peter Parkers. Seu pipi eu apelidei de 'biriguelson', o bumbum tranformou-se numa onomatopéia irreproduzível por qualquer outro estranho, entre outras, que citamos no banho por exemplo, e tudo é festa, nós dois desmaiando de rir.
E eu não tenho como agradecê-lo por isso. Nem nunca terei.
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