Se no meio literário a tradução configura um problema prolífico, a velocidade de distribuição do cinema, especialmente o comercial, aterra as possibilidades de teorização sobre a tradução em embalagens prontas e rápidas para o consumo de massa, o que dá origem a traduções de títulos que variam de mal-efetuadas a preguiçosas; de imprecisas a estapafúrdias. Às vezes, no entanto, há filigranas que reforçam ainda mais a intradutibilidade de certos exemplos.
É o caso de Her, ou como foi chamado no Brasil, Ela, de Spike Jonze, 2013. Mas a tradução não confere? A resposta para essa pergunta é o que diretamente retroalimenta questões da tradução: sim e não. O caminho mais curto para se entender - jamais solucionar - esse problema é se voltar justamente ao corpo do filme.
Her é um filme que se passa em um tempo distópico, no qual a singularidade já foi atingida por máquinas com propósitos aparentemente benignos, e um homem na casa dos trinta e poucos, Theodore, adquire um sistema operacional com o qual começa a se relacionar. O sistema operacional tem um nome e a promessa de interagir naturalmente com ele, baseando-se em todas as suas informações levantadas num escaneamento feito em alguns segundos, vasculhando suas memórias como um amigo de longa data. Na escalada do filme, Theodore e Sam, o sistema, desenvolvem uma amizade que parece dar acalanto aos anseios do homem, e tendo o sistema a voz feminina mais sensual do cinema contemporâneo - ninguém menos que Scarlet Johansson - a amizade esperadamente evolui para o envolvimento afetivo.
Spike Jonze, então, desenrola com classe o fio de sua narrativa, explorando de maneira rica e criativa as possibilidades de interação entre orgas e mecas, termos usados em outro filme que também trabalha a questão da inteligência artificial. Acontece que as (i)limitações trazem complicações que a fita espiraliza em seu terço final, e mesmo assim o filme não entrega um panfleto direto sobre as consequências da inteligência artificial. Mas já que este texto não é uma crítica de cinema, nos voltemos a outros aspectos.
Her recebeu a melhor tradução que poderia, e ainda assim, entre o título original e o título brasileiro existe uma grande, e ao mesmo tempo sutil lacuna, que na verdade representa o filme todo, em um patamar que está além da gramática, da sintaxe, da semântica, da própria palavra. Em inglês, her serve a dois propósitos que em português são impossíveis, atuando tanto como adjetivo possessivo feminino quanto pronome oblíquo feminino. Em português, ela é um pronome pessoal do caso reto. Na ordem oracional convencional, o pronome encabeçador é o pronome pessoal, que em inglês tem sua versão feminina em she.
Existe uma razão para que o filme tenha sido chamado Her, e não She. Apesar da tradução ser exatamente esta, ela desconsidera uma instância crucial de hierarquia existencial entre os sujeitos; hierarquia esta que determina a passividade e a ação dos atores na narrativa. Mesmo sendo uma máquina de raciocínios sem competição, Sam, a priori, existe em função de. Lhe falta uma subjetividade inalcançável, que se reflete em seu permanente estado de coisa, de instrumento. Ela não é um indivíduo com agência, e o palpite aqui é que seja esta fundamental falta de agência o que relega a ela o título de obliquidade, o lugar do outro, da dependência para ser; enquanto Theodore, por mais ordinário que se mostre, um homem como todo mundo, tem a provável última coisa que o legitima enquanto ser humano: um pronome pessoal e intransferível. A hierarquia existencial está aí: ele independentemente existe, ele está sobre ela. E não importa que ela seja o objeto de seu afeto, o que o colocaria em alguma posição de vulnerabilidade, porque não é disso que se trata. Ela ainda é justamente isto: objeto. Um objeto que está subordinado a Theodore; sintática, e - por que não - existencialmente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário