quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Figueira do inferno

 A caneta vai, tonta, vomitar borrões inúteis na folha que se destina a ser mais um dos meus fantásticos romances. Com livros publicados, conquistei algum prestígio nos circuitos literários cuja única função é inflar o ego e as pseudocertezas duma gente tão perdida quanto a mulher que encontro despenteada no espelho pelas manhãs. E essa cidade é tão pequena e asfixiante que me provoca longos bocejos.

 Eu queria ser outra pessoa.

 Queria não ser tão densissimamente melancólica e branca como o medo calmo do vazio. Queria ser só mais uma daquelas mulheres negras e miseráveis que encontro no caminho de volta pra casa, com o pesar de todo um dia nos olhos. E queria aquilo que viria, tão redentoramente, como chuva pesada a ser bebida por cada fenda árida do meu sertão: um filho. Um filho que sairia de mim para o mundo. Um filho para dar um nome, abraços intermináveis e uma manta, grossa e quente para proteger. Mas o que para as miseráveis negras que moram nas proximidades do fétido canal que circunda a minha casa parece ser tão inerente à condição daquela que porta cromossomos em cruz, pra mim não vai além de um espesso e endometrioso muro de sangue.

 Não se trata esterilidade. Havia até um namorado, havia até muitos namorados. Mas existe um pequeno demônio infanticida em mim que repele o crescimento dos fetos e os converte em discretas e lacrimosas manchas de sangue na roupa que me descem pelo sexo. Que diabo de mulher sou eu que não consegue carregar uma criança no ventre? O que vejo, quando olho pra dentro e não vejo nada mais que uma criatura oca, cujo ovário podre não estende à mão à vida que vem de fora?

 Os inúmeros abortos espontâneos me fragmentaram em mil mulheres que gritam dentro de um véu, e cada uma dói mais que a outra. Eu só queria um filho. Um filho que viesse pra comer cada livro inócuo que eu escrevi. Que viesse salgar a placa uterina que me impede de experimentar o gozo duma criança que não vai me chamar pelo nome, mas de mãe. Mas certas mulheres não foram feitas para a maternidade. Certas mulheres nunca saberão o que é sentir a respiração quente de uma criança no peito. São eternas tias das filhas das amigas, são pedagogas de sucesso, são velhinhas bondosas que são avós de todo mundo e não são avós de ninguém. Vagam por labirintos de surdez. Sem irmãs ou irmãos, o que vai me restar é a poeira carbônica que vai me consumir. E todos esses livros vão sucumbir junto comigo, vão formar as paredes da cova úmida que vai me abrigar pelos milênios seguintes, porque eu não dei ao mundo um filho. Eu não contribuí para a posteridade, eu não pude.

 Existem muitas mulheres por aí felizes e sem filhos, e sua felicidade não é falsa. Mas não estou entre elas.

 Serei responsável pelo fim da minha linhagem. Meu filho não vai contar a minha história e nem vai dizer "minha mãe escrevia livros", porque meu filho não existe. 

 Voltar à origem tão vazia quanto as folhas de papel cuja brancura não maculei traz um sentimento de vazio impreenchível. Telas brancas podem ser perturbadoras.

 Mas não é para mim. Eu sinto que não é. Para as mulheres escolhidas, a prole. Para as outras, grandes e felpudos gatos brancos.

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