sábado, 18 de janeiro de 2014

A couve

A couve estava lá, parada e ensacada no canto. Tinha vindo de uma família grande de couves, que havia se separado para alimentar os Reis, os Fernandes, os Pereira, os Gonçalves, numa diáspora violenta. Retirei a couve do saco, e examinei-a devagar e notei a beleza das suas nervuras fortes, se espraiando do caule em todas as direções. Fosse eu uma criatura pequena, da altura duma formiga, pensaria ser a couve uma árvore tombada depois da chuva. Mas era eu a criatura grande, ali, mergulhando a couve em água na vã tentativa de desintoxicá-la das milhares de substâncias contidas nos agrotóxicos que ironicamente as preparam para o consumo humano. O que os olhos não veem, o coração não sente. Mas vale a beleza lenta do mergulho da couve na água, que atribui a ela novos contornos.

Preparação. 4 dentes de alho, 1 cebola inteira. Soca-se o alho com a fúria da fome, e pica-se a cebola, afastando o choro dos olhos. Nem quando perdi meu primeiro amor chorei assim. Nem quando a polícia militar do Rio de Janeiro lançou, na minha direção, uma bomba de gás lacrimogêneo, eu chorei assim. Então, depois de devidamente misturados alho e cebola, foi a vez de cortar a couve.

Conforme ia empilhando, uma a uma, as folhas, me deparei com algo fora do comum. A primeira folha tinha um rosto. Era um rosto de gente, mas de gênero indefinível; um rosto que me sorria sem eu pedir, um rosto simpático, sobrancelhas, olhos, boca, dentes, nariz, bochechas, tudo se convertendo num sorriso estranho e verde, e larguei as folhas na vasilha e as tranquei no fundo mais fundo da gaveta fria da geladeira.

Um comentário:

Anônimo disse...

pretty nice blog, following :)