quinta-feira, 8 de junho de 2017

Corda Frates

Essa foto foi tirada no aniversário da Andressa, tu lembra? Aquela menina da nossa rua, quando fez 15 anos. Geral pobre, né, não foi igual aquelas festas de 15 anos, com vestido, essas coisas, mas teve muita cerveja e uma churrascada que durou dois dias, o sábado e o domingo. Olha aqui aquela prima dela, metida a patricinha só porque morava no Pedro Lopes. Nunca gostei dessa garota, e olha que ela sempre aparecia nas férias pra passar uns tempos com a Andressa. Tu lembra? Sempre janeiro, o que acabava caindo perto do aniversário da Andressa. Esse 15 anos foi bonzão, mó calor e a cerveja rolando solta. A gente era mais velho que a Andressa um pouco, devia ter uns 18 anos, mas já bebia há muito tempo. Ih, olha essa aqui. A gente saindo do Maraca depois que o Flamengo foi tri. 2001. A gente ficou tão louco no Bebeto que tu perdeu a linha, pegou a mulher do Madeira e a gente teve que sair voado, hihihi. Nessa foto você tinha 9 anos e tinha quebrado os dois dentes quando caiu da rede disputando comigo quem balançava mais alto na casa do tio Jorge, lá em Maricá. Eu ainda morro de rir dessa foto porque seu tombo foi engraçado, mas quando eu te vi chorando e sem os dois dentes fiquei preocupado. Se tivesse quebrado um pouco antes, só alguns anos antes, eles cresceriam normalmente e papai não ia ter gastar aquele dinheiro pra ter que resinar teus dentes. Moleque burro. Hihihi.

Você me perguntou do trabalho, né. Lá tá tudo na mesma. Eu continuo fudido mesmo. Mercado é uma coisa que faz dinheiro o ano todo, nunca vi. Eu queria ser dono de mercado. É Páscoa, é Natal, é Corpus Christi, é feriado, é dia santo. Todo santo dia tem gente. É por isso que no grupo do zap os vagabundo ficam mandando foto das festa que seu Arthur dá. Mó mansão, tem uns dois andares, mó piscinão, uma mulher mais gostosa que a outra, parece até clipe, sabe. Você chegou a conhecer o seu Arthur. Ele não aparece sempre, mas eu me lembro que um dia tu apareceu lá pra comprar num sei o que pra mãe, eu tava lá e a gente se falou rápido, e foi nesse instante que ele passou e eu apontei. Tu lembra sim, como que não vai lembrar? A mãe? A mãe num tá muito bem não. Ela já não tava bem antes, depois que o pai foi embora. Doeu em todo mundo, você sabe. Todo mundo já sabia que ele ia, e que nem ia demorar, mas a gente vai se agarrando nesse fiozinho, tipo galho podre de árvore em encosta de valão, pouco antes de um temporal. É horrível, é fraco, mas a gente se agarra ali, reluta, não sai, e do nada é acertado por uma onda de merda e é apartado dele. Acho que a mãe foi a que sentiu mais. Tamara já tava morando com o Matheus, já tinha alguns meses que eles estavam morando juntos nessa época, não é que ela não tenha sentido, mas não foi ela quem ficou na casa vazia depois, vendo a mãe chorar todo dia. Eu queria proibir algumas pessoas de morrer.

Eu não penso, não. Ter filho? Tá maluco! Olha só as coisas que a gente já fez! A mãe ficando doida levando Tamara pra cima e pra baixo por causa daquela parada, perguntando um e outro como que consertava aquela situação. Lembra de quando o pai foi buscar a gente na delegacia? Hahahahaha, eu cheio de medo da porrada que ia cantar lá em casa e você rindo de nervoso, a gente sempre foi muito diferente mesmo. Apesar de gêmeo. Univitelino né, sempre achei essa palavra engraçadona, lembra que eu ficava te chamando disso depois que aprendi que era o que a gente era? Depois eu parei, e aí você que deu pra me chamar assim. Até na escola os garoto começaram a chamar a gente assim, até porque era mais fácil, ninguém sabia quem era quem mesmo. Às vezes nem o pai sabia. Já tomei umas boas porradas por tua causa. Quero ter filho não.

Venho pra cá porque era onde a gente gostava de ficar vendo a noite cair. Pô, o melhor pico da zona norte inteira, né. Era o que você achava. Foi do que você me convenceu. Mas agora tá mais difícil por causa do trabalho todo dia, aquela encheção de saco, e nem é só o trocadilho; pega bolsa, bota uma bolsa dentro da outra, caralho, parece infinito, às vezes eu fico pensando se essas bolsas todas não vem de um grande buraco negro e talvez lá, onde ninguém consegue botar a mão, talvez lá exista um botão pra parar de fazer as bolsas brotarem. Às vezes eu sonho que tô caindo dentro de uma bolsa, e depois essa bolsa cai dentro da outra, e assim por diante. Às vezes eu sonho que preciso fugir delas, e nesses sonhos elas estão molhadas, mas é um molhado viscoso, tipo azeite, óleo de sardinha em conserva quando estoura. Eu escorrego nisso, caio. Não consigo fugir. Também tem vezes que elas são paraquedas enormes com garras de pássaro nas pontas, e eu fico correndo em ziguezague pra que não me peguem. Também não consigo fugir. Mas é só às vezes mesmo, quando eu tô muito estressado, que eu sonho essas maluquices. Outras vezes eu sonho com você. Quando você tava aqui eu detestava sonhar com você, principalmente porque você sempre me acordava com essa sua cara boba e fazia um peido com a boca, eu ficava com a sensação de desperdício, tipo, com tanta gente pra sonhar eu tinha que sonhar logo contigo? Pra acordar com você fazendo aquelas vozes pequenininhas de robô, imitando beat vox? Era engraçado. Era idiota, mas era engraçado.

Olha, hoje eu fiz uma besteira. Eu não sei quanto tempo vou ficar aqui sem que alguém apareça, mas é porque eu não tenho forças pra lidar com isso. Não foi fácil te trazer aqui. Não tenho coragem de abrir o caixão porque eu tenho medo de olhar pra você e me ver depois de morto, entre outras coisas. Tenho medo de abrir e não te reconhecer. E se eu não te reconhecer, eu não sei como vai ser quando eu tiver que olhar no espelho de novo. Tenho medo do cheiro que você possa ter. Mas eu precisava te trazer. Todo mundo passou o último ano me falando, ah, ele tá num lugar melhor, ah, foi melhor assim, você não ia querer que ele sofresse. Mas eu sou egoísta, irmão. Eu queria você aqui porque agora é como se eu não estivesse nem aqui nem aí, onde você tá. Eu fiquei em lugar nenhum. Não sei mais de nada. Como a gente faz pra saber o caminho, a saída, de lugar nenhum? E como eu conserto isso, de não saber mais as coisas que tô fazendo? Não sei o que me deu hoje. Eu simplesmente passei lá, fiquei olhando um tempão, não tinha ninguém e eu abri, abri a tumba sim, te ajeitei na garupa da bicicleta e vim. Tem dias que fico quase melhor, mas tem dias que é insuportável e eu fico tão pequeno que seria fácil entrar e ficar esquecido dentro de uma sacola de mercado infernal daquelas que eu vejo todo dia. Eu sei que você pode me ouvir, mas nós não somos mais dois moleques idiotas que ficavam brincando de adivinhar o que o outro tá sentindo. Agora sim você sabe de tudo, mas eu não posso saber de volta. Isso sim  é mais egoísta que eu.

Ei, olha lá. Daqui tô vendo que tem viatura subindo a rua. Não sei se eles estão procurando por você, ou por mim. Não sei se por aqui é tão comum passar viatura, mas pelo jeito, acho que estão procurando alguém. Quem? Vou me preocupar com isso depois. O que eu posso ter feito de tão errado, afinal? Pelo menos daqui dá pra ver que tem sim um desenho muito doido na lua. Será que é você me olhando de volta?