Se este fosse um janeiro como os anteriores, a essa altura eu estaria provavelmente submersa na dimensão azul e sem som das praias que banham a costa da região que me conhece desde que me arriscava em suas águas envolta nos braços de meu pai. Mas a entrada pouco triunfal da humanidade num novo período geológico revolucionou a face do mês, e o sol apático craquelando sua luz morna sobre minha cabeça e alimentando as plantas ainda selvagens do jardim me informa da violência discreta da finitude.
Foi pouco depois de lavar a louça do almoço. Eu tateava o colo seco das gavetas procurando por um pano de prato, de certo modo temerária da justa e silenciosa presença de alguma aranha ocupando o espaço -- uma questão de lógica, éramos nós os hóspedes. Nenhuma quelícera me deteve. O que a mão sem olhos encontrou foi coisa de outra espécie.
Trazer aquele óculos pra fora foi uma exumação. Mas no verso da luz anêmica desse dia experimentei o acalanto do sorriso psicológico na transparência de suas lentes. Testo esse óculos, estrangeira. Me pergunto se um dia meus olhos perfeitos vestirão sua antiga deficiência. Era assim o mundo bifocal e amarelado de meu avô. Era assim que ele me percebia, ligeiramente dupla e amarelada, e talvez no fim de sua vida eu não fosse diferente de uma estrela do cinema ou de uma das árvores do jardim. Aquele esqueleto logo se infla da matéria que o tempo leva mais tempo para roer. Os objetos da casa animam seu fantasma, revelando sua antiga anatomia: o banco de assento curvado e pernas arcadas, a falsa arcada de resina sem mandíbulas escondida no banheiro, o corpo de plástico de seu exclusivo garfo, arranhado por leves queimaduras. Meu avô na sala, meu avô na varanda, meu avô na porta da cozinha. Meu avô no espelho, comigo.