Muito calor e gente em casa, e a fiação toda ainda era como antigamente. Tia Jane no banheiro deu um curto grito, simultâneo ao que deu Quiroguinha, que de súbito aterrissou na sala (as pequenas asas desajeitadas) topando o joelho na mesinha que deveria estar no canto. O choro agudo do menino despertou prima Cecela, que dormia na rede cansada e ainda salgada do mar. Vó Stênia passou por nós feito uma assombração, com seu andar coxo e pesado, segurando uma ponta incinerada de jornal. Tia Lúcia fuçava as gavetas e os armários com suas mãos de aranha cega. Lá é que deveriam estar as velas, afinal, vela nunca faltava na nossa casa, que o excesso de fé em Cristo de vó Stênia não deixava.
Tio Padrinho, sem nem se levantar, continuava bebendo sua cerveja, ainda gelada. Regiane detestava a sensação do sal velho e anoitecido em sua pele, dizia que aquilo lhe atacava todas as alergias, e conforme fizeram Marquinhos e André, que não quiseram esperar a luz voltar, foi tomar banho no quintal, içando com eles muitos baldes de água do poço. Inescapavelmente salobra, era ainda a única cura possível para aquele insuportável sol por dentro que, longe dela, continuava queimando até no escuro.
Não demorou muito e vó Stênia encontrou e distribuiu as velas pelos cômodos da casa com cuidado, pelos altos. Quiroguinha era muito sem jeito, e ainda lambia baixinho as lágrimas de cachorro pequeno pelo joelho dolorido. Vô Aloísio observava tudo muito calado no seu canto. A casa era humilde, mas grande.
A brasa do cigarro de tio Padrinho luzia como um primo estranho e esperto perto dos vagalumes que tomavam a varanda em profusão, levando as crianças ao desafio difícil de capturá-los nas conchas das mãos. Águas por águas, na tarde daquele dia, na praia, Tia Pratinha havia sido derrubada por muitos caixotes, mas lá mesmo também havia dado o troco, derrubando, com ajuda mínima, quase uma caixa. Quem quer que a conhecesse por mais tempo já sabia, na inofensiva rispidez de sua voz e no hábito de aproximar-se de mansinho pra batucar a bunda de um balde, que ela se encontrava francamente bêbada. Não era o caso de Regiane. Coitada. Alvo constante de suas piadas, a namorada recente de tio Maurício tinha até medo de cruzar o caminho de tia Pratinha, ciente de que o olhar da velha a perseguiria e explodiria pela boca em alguma gozação. Quando tia Pratinha pegava um pra espezinhar (e geralmente gostava de fazê-lo com os agregados) só o tempo a demovia da ideia. Às vezes, nem isso.
Os meninos menores se batiam todos pelas costas, braços e pernas: a mosquitada nem enfeitava a noite, como os vagalumes, nem lhes dava sossego à carne magra e suja. Tia Jane, com medo de lagartixa e outros bichos que no escuro ficavam certamente muito maiores, saíra do banheiro envolvida na toalha e já se postava à porta de saída da cozinha com um cigarro entre os dedos, assuntando com vó Stênia que, sentada, terminava de sovar uma massa. Vó Stênia tinha disso: não parava nunca, por mais que as pernas não lhe ajudassem.
Martinha, Daniele e Isa investigavam nas telas dos celulares qualquer coisa que lhes afastasse do escuro e do tédio. Surge uma foto de um bebê de poucos meses no celular de Isa, que mostra para as outras. Suspiram as três, em uníssono, pela fofa criatura enrugada. Curiosamente Daniele constata como outro bebê (agora com um ano e meio) havia crescido rápido diante dos seus olhos nos últimos 500 e poucos dias que havia acompanhado sua vida à curiosa distância de uma tela de vidro na qual provavelmente também se escondiam outras coisas. As garotas, então, se detiveram nas fotos do bebê de meses, e Martinha teria se espantado com o volume de fotos de uma criança tão pequena não fosse ela mesma uma grande registradora dos próprios passos.
No quintal apagado da casa as sombras das árvores as engordam, transformando-as em velhos e fofoqueiros monstros domésticos. Quiroguinha, o mais afoito, parece não ter medo de nada, e encoraja as outras crianças a irem com ele brincar no escuro, a catar sapo. Olhando o fuzuê de Quiroguinha, o aparentemente indiferente tio Padrinho chama as crianças pra perto de si e diz que vai contar uma história de quando era menino. Ele então diz que na casa em morou na infância havia um espírito que toda noite de quinta-feira, às três horas da manhã em ponto, abria as torneiras da casa. Sempre que ia fechar a última torneira aberta, tio Padrinho conseguia ver o rabo do espírito deixando a casa. Um dia ele apressou o passo para tentar segurar o rabo do espírito, e uma das janelas se quebrou. Virou-se para tia Lúcia para que ela confirmasse o que ele dizia, ao que ela assentiu. Os olhos das crianças brilhavam no escuro, acesos, acompanhando o vagalume de fogo nos dedos, enquanto tio Padrinho dizia que o espírito (mais tarde descobriu-se) era o fantasma de um inspetor de uma escola que havia sido derrubada muitos anos antes de sua casa ser construída, no mesmo lugar. Na varanda calada de repente irrompe uma gargalhada grave, as crianças gritam ao mesmo tempo. Marquinhos e André surgem do quintal para assustá-las. A luz não vem, e a escuridão já tinha comido as velas pela metade.
Naquela idade em que eram um pouco mais velhas que as crianças mas ainda mantinham algum relutante encantamento e sede de fantasia, Martinha e Isa ouvem de longe e contestam a história de tio Padrinho. Ao seu lado, tia Pratinha tosse, ri e xinga qualquer coisa inaudível. Por que tio Padrinho, engenhoso como sabiam que era, não arrumava um modo de registrar a presença do fantasma? Todo mundo que vivia na casa poderia provar essa história? Por que às três da manhã? Vó Stênia está sentada em uma ponta da varanda, e tudo ouve calada, girando os polegares. Questionam-na, e ela desconversa, séria. De súbito Daniele imagina tio Padrinho menino. Alguém teria fotos dos tios e tias quando eram crianças? A garota queria saber. Vó Stênia dizia que as fotos não eram como agora, que era muito difícil tirar fotos, coisa de bacana. Daniele pergunta se ela tem ao menos uma foto de quando era menina, e ela confirma: uma única foto em preto e branco, séria como agora, com uma roupa pesada para a idade, mas conforme para a época em que fora tirada. E vó Stênia pensa um pouco sobre essa e outras fotos. Realmente tão poucas. Ah.
Naquele dia descobrimos de algum modo que havia uma razão pela qual a infância escura dos nossos pais ao nosso olhar escura permanecia. Talvez mesmo devesse. Quase ninguém notou, mas diante daquilo tudo vô Aloísio balançava lentamente a cabeça, quem sabe, sorrindo, de um lado para o outro.