terça-feira, 30 de março de 2010

Do princípio defensável

Ryan é um oficial inescrupuloso e racista. Jean Cabot é uma mulher vazia, que não costuma criar laços com meros empregados. Hanson é um profissional competente e que honra seu ofício. Cada indivíduo, uma casca. E, por sobre as cascas, infinitas camadas. A quem soar familiar a descrição, sim, falo do filme "Crash - no limite", mas apenas para fins ilustrativos. No filme, há um constante 'encontrão' de pessoas na contra-mão. E aqui me destino a tratar da insustentável leveza em ser pessoa, da insustentável leveza em ser humano, em ter um coração.
As pessoas, estando elas inseridas aqui em contexto atemporal, são absolutamente não-lineares. É impossível definir com exatidão ou traçar um perfil exato delas, posto que somos mutáveis dadas as circunstâncias. Reações não são tão maquiavelicamente previsíveis. Pela lógica pré-definida, um homem racista não se ocuparia de salvar uma mulher negra de um carro capotado em chamas. Pela lógica pré-definida, uma mulher esnobe não afirmaria ser sua empregada sua melhor amiga. Por essa mesma lógica, que a essa altura já encontra-se imolada no amálgama de não ser, um profissional competente e responsável pela segurança pública não atentaria, à queima-roupa, contra a vida de um jovem desarmado para o qual ofereceu carona. E a vida, por mais que neguemos, é repleta dessas dualidades. O bem e o mal são conceitos caídos e sem força. Chame de 'fórmula do cult', se quiser: a desconstrução da dicotomia entre o bem e o mal. O que são estes, afinal?
Não há bem ou mal absolutos. Há estados de bem e estados de mal. Mesmo um nazista, elemento que parece ter atingido o salvo-conduto para a execração pública, pode se mostrar capaz de alguma ação redentora, o que prova que não há ninguém que seja absolutamente indefensável, por pior que aparente. Bem como Zilda Arns pode, algum dia, ter cometido alguma injustiça diplomática com alguém que não a tivesse merecido, entre tantos outros exemplos.
Especialmente na literatura, nos encontramos crivados de exemplos em que há uma completa corrosão das definições marcadas do mocinho e do bandido. O caráter mutável das pessoas - esse tão inexplicável quanto óbvio mistério - está justamente no fato de sermos humanos. E no sangue humano circula toda sorte de sentimento, indistintamente. Os sentimentos em nós dispostos estão em contra-mão, e como em "Crash", se atropelam, se trombam, daí nossa instabilidade. Essas trombadas nos conferem humanidade, e essa humanidade transparece em nós pela dualidade comportamental com a qual tratamos o mundo que nos rodeia.
É certo que há pessoas muito ruins e muito boas circulando por aí. Uma vida inteira de crimes não pode ser anulada se o criminoso ajudou um gatinho a descer da árvore, ou alguém que dedicou a vida ao próximo possa ter seus bons feitos contestados por ter cambaleado de bêbado ou socado o nariz de outrem - não é disso que estamos falando, visto que esses são grupos minoritários. O grosso de nós está sempre se equilibrando na tênue linha entre um lado e outro, e equivocamente se esforça em proclamar-se pertencedor dum só lado. Não somos só virtudes, e sabemos disso. Somos toda raiva e todo ódio, todo o amor e toda candura; só funcionando por inteiro quando enxergamos com clareza todo nosso multifacetado mundo.
Assumamos nossas cóleras, e também nossas glórias. Portanto, não lancemos ao limbo ou ao altar qualquer um de nós.

sábado, 13 de março de 2010

A ponte

No vai-e-vem
da Ponte Rio-Niterói
É sempre Natal.
No vem-e-vai
na Ponte Rio-Niterói
Há sempre Natal.
Lá, lá longe
Ela parece uma imensa,
tombada,
árvore na horizontal.
Pra quem vê
Do Caminho Niemeyer,
Dos olhos férteis,
Da janela da casa da Ana.
Cá, cá de perto
ela é só mais um monte de cimento e vigas
Que devolve às suas casas
cariocas cansados
em mais um dia suado
de suas vidas.

O mênstruo

Desce violenta em sangue e dor a rubra cascata que confirma o aborto. Desce galopando em flocos negros esse rio contido que vara o algodão que tinge o algodão. Desde descendo rolando doendo crescendo alternando sujando. Desce bravia feito navio sem comando e surfa nos recifes da renda da calcinha. Desce e desconforta e se evidencia porque deixa sua marca. Desce do estourar dum pequeno botão que se esborracha e chora e morre. Desce como a fluidez do mar. Desce enquanto navega por dentro das pernas buscando a foz que a liberte.
Desce, ruborizando as maçãs do rosto da moça.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Cabeça vazia



Oficina do cão? Acho que não.
É na cabeça vazia que levitam as idéias, as idéias que existem, líquidas, antes de existir. A placentária cabeça vazia as alimenta. Na cabeça vazia é que são formados os sonhos; nela é que engatinham as ilusões e os desejos ainda não materializados, que ainda não chegaram aos nervos.
A cabeça vazia é o caos de fúria onde tudo está fundido, disforme, flutuando. É a mais fiel imagem da criação; uma dinamite dentro. Tudo o que toma lume do lado de fora escorregou dessa infinda matriz, cheia de vales e trovões como num clipe de Lenine.
O universo que existe dentro da cabeça vazia é trancado pelo lado de dentro, e ninguém que lá habita, por mais incauto que seja, lhe dará a chave. É absolutamente impenetrável. Tudo o que aqui relato foi o que vi pelo buraco da fechadura. Lá não existe gravidade nem tempo; se assemelhando à imensidão sidérea simbolista de Cruz e Souza.
Me consola imaginar que a alcunha 'oficina do cão' - essa histórica injustiça com o umbigo dos pensamentos - tenha surgido na óbvia Idade Média, onde a criatividade, inventividade ou questionamentos à frente do tempo eram automaticamente associados ao mal e lançados às brasas do não-esclarecimento. Ocupar a cabeça com atividades braçais quaisquer, então, seria uma alternativa ao exercício da indagação, à tensão da psique entre o visível e o que não pode ser explicado. Ninguém me convence que gente como Montaigne, Da Vinci, Modigliani, Ferreira Gullar, Giordano Bruno ou Hamanujan não foram profundamente mergulhados no vazio de suas cabeças, onde acabaram por se encontrar.
Cabeça vazia é o ponto-morto da engrenagem mental. A batuta da orquestra em repouso. Como é que puderam, por tanto tempo, demonizar a mente aparentemente inoperante? Aparentemente, para nossas limitações. Lá dentro, tudo já estava pronto.
A cabeça vazia é a morada de todas as respostas.
A cabeça vazia, meus caros, é a casa de Deus.

terça-feira, 2 de março de 2010

Algumas coisas acontecem no meu coração

É fantástico o trepidante mundo dos volúveis. Entra-se pela boca, aquele canal que esconde um imenso vórtice de outros beijos moídos. Ao entrar, cuidado. Você precisa pisar devagar, para não topar nas lembranças. Não pisotear uma foto de um amor do passado. Volúveis valorizam os amores. Simplesmente levantar os ermos galhos das dúvidas abre N possibilidades, que o volúvel sempre cogita. E essa? E aquela? De repente, um grande hall: lá constam as maiores histórias, os mais incinerados amores, cinzas depositadas na urna dum sorriso de canto de boca, nostálgico. E assim, com muita sorte, ruma-se ao inatingível coração dos volúveis. Ou atingível. Atingibilíssimo, que de tão fácil, é varado de fora a fora, sem alcance. Não é que os volúveis não tenham coração. Eles têm é amor demais. Tanto que se enamoram rápido de olhares, de pernas, de risos alheios, como criança que se desmancha pelo brinquedo maior. Como gato que se enrola em novelos de lã.
Gente volúvel não se apega à dor. Mas sim, os volúveis também sofrem. Choram no escuro, como qualquer outra pessoa. Mas se desprendem com maior facilidade. Sabem que aquilo não é para sempre, bem como sabem que enquanto lamenta-se por uma perda, diminuem o tempo útil de ir em direção a outrem que mereça sua paixão. E é com o foco nessa lógica que nunca param de procurar. Têm a perene sensação de que perderam alguma coisa no caminho, e a materializam no próximo parceiro. Quando o encontram, que festa. Mas a intensidade que move os volúveis também é o que oxida seu relacionamento. E não. Não era o que se procurava. Foi bom. Até mais.
É espinhoso, mas os volúveis traem com uma facilidade maior que os não-volúveis. Eles traem quem os acompanha pela mórbida incapacidade de se traírem. São instintivos como animais: ignoram a razão por completo no zênite do desassossego, da falta de juízo. Destroem casamentos. Saem de casa. Batem porta, vão embora; e não há santo que traga de volta. A vida amorosa do volúvel é uma incerteza constante. É uma pré-disposição, uma doença crônica. Muitos dirão que os volúveis subtraem o compromisso pelo desgoverno, mas não é exatamente assim. Isso por conta do grau de paixão que ele alimenta: se o volúvel está realmente muitíssimo envolvido com alguém, ele fechará os olhos para outras possibilidades. Se entregará, e a entrega integral é uma marca dos volúveis. Isso requer exclusividade, não é um processo banal.
Há uma diferença crucial dos não-volúveis para os volúveis: volúveis não temem a dor. Não têm medo da brisa fresca do abismo debaixo dos pés, seja o abismo do amor ou do desengano. Se atiram sempre que podem, não hesitam. Colocam-se na posição dum velho Tritão de pedra no fundo do mar, que oferece morada a qualquer invasor que o acaricia enquanto também o devora. E que devorar recíproco. Volúveis são pouco vingativos. Perdoam, esquecem. A vida é só uma, para que importar-se tanto com o que não foi?
Os volúveis também amam. E respeitemos: justa toda forma de amor.