De nada me valeriam as palavras mais re-buscadas do dicionário, aquelas de jeito forçoso, que parecem ter sido despertadas dum longo sono para serem deitadas, desconfortavelmente, nas linhas duma folha fria que se pretende carta de amor, na tentativa de chegar ao seu coração por essa via tão tortuosa. Essas palavras, inúteis e mudas, posto que não te dirão nada: só são velhos vocábulos vítreos e blindados. Nada sentem.
Se é amor, não há cerimônias. Não há formalidades, laços, gravatas ou nós bem feitos; se é amor de fato, então a pieguice aí se impõe como a maior prova de que esse amor realmente existe. Porque o amor é brega. Brega, cafona, kitsch e pintado dum vermelho-escarlate que o anuncia no olhar paspalho dos que o carregam sem se dar conta. Mas esse é um luxo do qual só os amores verdadeiros podem se ufanar. Esse amor, tão fácil e tão simples, que não se identifica com etiqueta e franze a testa para os minimalismos, intelectualismos, teorias e definições pós-modernas, bla bla bla filosófico de gente que, oras, nunca amou direito, dada sua preocupação em academizar o amor.
É que o amor gosta das coisas assim, extremadas. Gosta das provas de amor exageradas, de canções banais que qualquer Bon Jovi ou Steven Tyler possa compor depois de um homérico pileque. Identifica-se o amor pela sua incontinência - porque mesmo os mais sóbrios denunciam o amor que os afeta em qualquer invonluntariedade que evidencie-lhes os dentes.
Meu amor fala a língua das flores. A língua da língua lânguida que escorrega sobre a outra, em movimentos líquido-circulares. O que sinto é tão seu que acredita ser a tua nuca o perímetro de pele mais delicioso de todos; e quando minha cabeça se permite emergir naquela pequena ilha de pêlos do seu colo, até acredito ser a pessoa mais protegida e feliz que já viveu.
De toda essa e outras breguices que compõe-se o amor. Seja ele o amor de 5 ou 50 anos: se é amor, dispensa-se a razão, confia-se no instinto, pretere-se o bordão à estética. Fernando Pessoa sabia, e eu, agora que tenho você morando nas minhas linhas de expressão, também sei.
Se é amor, imbecilize-se. E seja o imbecil mais feliz que conseguir.
segunda-feira, 22 de novembro de 2010
quinta-feira, 4 de novembro de 2010
Figueira do inferno
A caneta vai, tonta, vomitar borrões inúteis na folha que se destina a ser mais um dos meus fantásticos romances. Com livros publicados, conquistei algum prestígio nos circuitos literários cuja única função é inflar o ego e as pseudocertezas duma gente tão perdida quanto a mulher que encontro despenteada no espelho pelas manhãs. E essa cidade é tão pequena e asfixiante que me provoca longos bocejos.
Eu queria ser outra pessoa.
Queria não ser tão densissimamente melancólica e branca como o medo calmo do vazio. Queria ser só mais uma daquelas mulheres negras e miseráveis que encontro no caminho de volta pra casa, com o pesar de todo um dia nos olhos. E queria aquilo que viria, tão redentoramente, como chuva pesada a ser bebida por cada fenda árida do meu sertão: um filho. Um filho que sairia de mim para o mundo. Um filho para dar um nome, abraços intermináveis e uma manta, grossa e quente para proteger. Mas o que para as miseráveis negras que moram nas proximidades do fétido canal que circunda a minha casa parece ser tão inerente à condição daquela que porta cromossomos em cruz, pra mim não vai além de um espesso e endometrioso muro de sangue.
Não se trata esterilidade. Havia até um namorado, havia até muitos namorados. Mas existe um pequeno demônio infanticida em mim que repele o crescimento dos fetos e os converte em discretas e lacrimosas manchas de sangue na roupa que me descem pelo sexo. Que diabo de mulher sou eu que não consegue carregar uma criança no ventre? O que vejo, quando olho pra dentro e não vejo nada mais que uma criatura oca, cujo ovário podre não estende à mão à vida que vem de fora?
Os inúmeros abortos espontâneos me fragmentaram em mil mulheres que gritam dentro de um véu, e cada uma dói mais que a outra. Eu só queria um filho. Um filho que viesse pra comer cada livro inócuo que eu escrevi. Que viesse salgar a placa uterina que me impede de experimentar o gozo duma criança que não vai me chamar pelo nome, mas de mãe. Mas certas mulheres não foram feitas para a maternidade. Certas mulheres nunca saberão o que é sentir a respiração quente de uma criança no peito. São eternas tias das filhas das amigas, são pedagogas de sucesso, são velhinhas bondosas que são avós de todo mundo e não são avós de ninguém. Vagam por labirintos de surdez. Sem irmãs ou irmãos, o que vai me restar é a poeira carbônica que vai me consumir. E todos esses livros vão sucumbir junto comigo, vão formar as paredes da cova úmida que vai me abrigar pelos milênios seguintes, porque eu não dei ao mundo um filho. Eu não contribuí para a posteridade, eu não pude.
Existem muitas mulheres por aí felizes e sem filhos, e sua felicidade não é falsa. Mas não estou entre elas.
Serei responsável pelo fim da minha linhagem. Meu filho não vai contar a minha história e nem vai dizer "minha mãe escrevia livros", porque meu filho não existe.
Voltar à origem tão vazia quanto as folhas de papel cuja brancura não maculei traz um sentimento de vazio impreenchível. Telas brancas podem ser perturbadoras.
Mas não é para mim. Eu sinto que não é. Para as mulheres escolhidas, a prole. Para as outras, grandes e felpudos gatos brancos.
Eu queria ser outra pessoa.
Queria não ser tão densissimamente melancólica e branca como o medo calmo do vazio. Queria ser só mais uma daquelas mulheres negras e miseráveis que encontro no caminho de volta pra casa, com o pesar de todo um dia nos olhos. E queria aquilo que viria, tão redentoramente, como chuva pesada a ser bebida por cada fenda árida do meu sertão: um filho. Um filho que sairia de mim para o mundo. Um filho para dar um nome, abraços intermináveis e uma manta, grossa e quente para proteger. Mas o que para as miseráveis negras que moram nas proximidades do fétido canal que circunda a minha casa parece ser tão inerente à condição daquela que porta cromossomos em cruz, pra mim não vai além de um espesso e endometrioso muro de sangue.
Não se trata esterilidade. Havia até um namorado, havia até muitos namorados. Mas existe um pequeno demônio infanticida em mim que repele o crescimento dos fetos e os converte em discretas e lacrimosas manchas de sangue na roupa que me descem pelo sexo. Que diabo de mulher sou eu que não consegue carregar uma criança no ventre? O que vejo, quando olho pra dentro e não vejo nada mais que uma criatura oca, cujo ovário podre não estende à mão à vida que vem de fora?
Os inúmeros abortos espontâneos me fragmentaram em mil mulheres que gritam dentro de um véu, e cada uma dói mais que a outra. Eu só queria um filho. Um filho que viesse pra comer cada livro inócuo que eu escrevi. Que viesse salgar a placa uterina que me impede de experimentar o gozo duma criança que não vai me chamar pelo nome, mas de mãe. Mas certas mulheres não foram feitas para a maternidade. Certas mulheres nunca saberão o que é sentir a respiração quente de uma criança no peito. São eternas tias das filhas das amigas, são pedagogas de sucesso, são velhinhas bondosas que são avós de todo mundo e não são avós de ninguém. Vagam por labirintos de surdez. Sem irmãs ou irmãos, o que vai me restar é a poeira carbônica que vai me consumir. E todos esses livros vão sucumbir junto comigo, vão formar as paredes da cova úmida que vai me abrigar pelos milênios seguintes, porque eu não dei ao mundo um filho. Eu não contribuí para a posteridade, eu não pude.
Existem muitas mulheres por aí felizes e sem filhos, e sua felicidade não é falsa. Mas não estou entre elas.
Serei responsável pelo fim da minha linhagem. Meu filho não vai contar a minha história e nem vai dizer "minha mãe escrevia livros", porque meu filho não existe.
Voltar à origem tão vazia quanto as folhas de papel cuja brancura não maculei traz um sentimento de vazio impreenchível. Telas brancas podem ser perturbadoras.
Mas não é para mim. Eu sinto que não é. Para as mulheres escolhidas, a prole. Para as outras, grandes e felpudos gatos brancos.
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