_ Me fode, seu puto, fode, fode, fode, ai!
O tom rouco, voraz e consentido de Alícia Delícia era música para os ouvidos de Mário. Era até mais provável que ele ficasse mais excitado com o timbre de sua voz que com toda a sua inacreditável capacidade vaginal. "_ Ai, seu puto, gosta da minha boceta? Me come, seu filho da puta!", ela gritava, por trás daquela tela ingrata que os separava. Mário revirava os olhos próximo à estante que, a essa altura, parecia mais um altar. O altar profano de Alícia Delícia, aquela interminável loura genérica a quem ele costumava dispensar todos os adjetivos com idéia de deleitosa grandeza, já que aquela moça era realmente merecedora deles. Ela merecia todas as homenagens pertinentes a mulheres do seu calibre numa bandeja para abocanhá-las, uma a uma, como se comesse cerejas.
Quanto mais Mário lia e via sobre sua musa, mais perdidamente apaixonado ele ficava. Era uma paixão tão arrebatadora quanto as medidas da moça, e ele estava ciente de que aquilo era sério, que o estava consumindo. Não poderia ser normal o fato de uma atriz-pornô despertar algo nos homens além de um volume atípico nas calças. E Alícia Delícia era tão talentosa e tão multifacetada... Mário bem que gostava do fato de ter sido tão irremediavelmente fisgado pelos seus imensos olhos castanhos, porque ele conseguia ver no seu trabalho toda a sua arte. Nobre ou não, não caberia a ele julgá-la; mas algo era certo: ela o fazia com vigor. Já havia sido deusa de uma floresta perdida. Já havia sido náufraga numa ilha. Já havia sido uma stripper full-service. Já havia sido mulher do padre e de toda a sacristia. Alícia Delícia, que achado.
Absurdo que fosse, a moça não poderia fazer idéia do sem-número de noites que já havia subtraído de Mário, ou de quantas vezes invadiu seu sono para acordá-lo com uma incômoda sensação de umidade. Ele se levantava, lavava o rosto e demorava para voltar a dormir. No dia seguinte, seu cansaço denunciava a noturna invasão da loira, mas nada que não pudesse disfarçar como sendo uma simples noite ruim.
Por volta do décimo filme adquirido, Mário se cansou. Aquilo não era vida, ele precisava conhecer a dona dos maiores cílios e unhas que ele já havia visto. Encontrá-la não poderia ser a coisa mais difícil. E foi atrás disso com obstinação. Começou sua busca através do site da produtora Proibido Fruto. Mandou uma boa centena de e-mails sem resposta. Foi até a produtora, mas eles não forneciam informações sobre a vida privada de seus empregados. Agora havia ficado difícil. Como encontrar Alícia Delícia?
Mário passou um bom tempo tentando fazer contato com a mulher via internet: seu tempo livre era quase inteiramente destinado a isso. Um amigo bem próximo, a quem havia contado a sua rotina e desejo por Alícia Delícia, estimulou-o a desistir, a procurar por alguém possível e, principalmente, de respeito, cara, tá maluco? Quer namorar com puta, porra? Bota a cabeça no lugar! Mas ninguém poderia entender que ele, de tão viciado na figura do bonde loiro, via nela além de uma mera atriz de filmes para adultos. Ela era uma mulher de carne, ossos e, provavelmente, também deveria ter ali no meio daquelas placas de poliuretano, um coração incompreendido e virgem. E Mário, talvez, fosse o único que estivesse consciente desse lado de Alícia Delícia.
Depois de seus sucessivos insucessos na procura por ela, havia dias que chegava em casa e só ligava a televisão para que tocasse o áudio de sua voz toda maliciosa que só conhecia a linguagem dos palavrões. Não que ele definhasse. Não que não se permitisse conhecer uma moça ou outra e comê-las de vez em quando. Mas o platonismo em torno do umbigo de Alícia Delícia certamente o perturbava. Ele não podia expor isso como se fosse frustração plausível, não queria ser tachado de louco pelo trabalho e nos meios reais em que vivia. Gostaria de continuar a comer algumas mulheres, mas se elas descobrissem de sua tortuosa obsessão por aquela famosa atriz-pornô-loira-de-pentelho-preto-nojenta, iriam se espantar e fugir. Alícia Delícia era, portanto, um fantasma voluptuoso que o atormentava pelo lado de dentro, em um segredo inconfessável.
Numa manhã comum, Mário abriu os olhos. Tomou banho, tomou café, tomou juízo, e foi trabalhar. Estava estranhamente bem disposto. Desceu as escadas do apartamento, girou a chave no tambor, saiu. Havia um tempo não se encontrava tão bem. Entre uma rua e outra, parou num lado da calçada, enquanto esperou pelo sinal abrir. Foi quando uma visão o desgraçou. Do outro lado da rua, uma morena com olhos perturbadoramente fundos e foscos, escondida por detrás de uma blusa branca sem decotes olhava para o céu. Seu jeito de mover a língua e seus olhares eram luxuriosos demais para qualquer mulher, mas não para aquela que devorava cada minuto da sua paz ignorante de tal fato. Por debaixo da camiseta branca, ele conseguia notar o redondo volume dos seios bem feitos, e podia até imaginar, com deleite, os detalhes em fita do soutien dela. Ela lambia discretamente os lábios para hidratá-los. Cada piscada de olhos da moça parecia eterna, porque ela o fazia tão languidamente que o que parecia era que estava revirando os olhos de um desejo que não tem nome nem tamanho. Num crachá, seu nome: Aline. Mas ele sabia muito bem de quem se tratava, e só poderia ser uma. No instante que se deu conta dessa terrível verdade, sentiu, num choque que lhe esquentou a pele, todos os fantasmas os quais pensava ter feito adormecer despertando violentamente, percorrendo seu estômago, laringe, peito, braços. Era Alícia Delícia. Era Alícia Delícia?
O sinal de trânsito não estava aberto. Mas Mário correu em sua direção.