terça-feira, 31 de maio de 2011

Curvilínea ruína


             _ Me fode, seu puto, fode, fode, fode, ai!
            O tom rouco, voraz e consentido de Alícia Delícia era música para os ouvidos de Mário. Era até mais provável que ele ficasse mais excitado com o timbre de sua voz que com toda a sua inacreditável capacidade vaginal. "_ Ai, seu puto, gosta da minha boceta? Me come, seu filho da puta!", ela gritava, por trás daquela tela ingrata que os separava. Mário revirava os olhos próximo à estante que, a essa altura, parecia mais um altar. O altar profano de Alícia Delícia, aquela interminável loura genérica a quem ele costumava dispensar todos os adjetivos com idéia de deleitosa grandeza, já que aquela moça era realmente merecedora deles. Ela merecia todas as homenagens pertinentes a mulheres do seu calibre numa bandeja para abocanhá-las, uma a uma, como se comesse cerejas.
            Quanto mais Mário lia e via sobre sua musa, mais perdidamente apaixonado ele ficava. Era uma paixão tão arrebatadora quanto as medidas da moça, e ele estava ciente de que aquilo era sério, que o estava consumindo. Não poderia ser normal o fato de uma atriz-pornô despertar algo nos homens além de um volume atípico nas calças. E Alícia Delícia era tão talentosa e tão multifacetada... Mário bem que gostava do fato de ter sido tão irremediavelmente fisgado pelos seus imensos olhos castanhos, porque ele conseguia ver no seu trabalho toda a sua arte. Nobre ou não, não caberia a ele julgá-la; mas algo era certo: ela o fazia com vigor. Já havia sido deusa de uma floresta perdida. Já havia sido náufraga numa ilha. Já havia sido uma stripper full-service. Já havia sido mulher do padre e de toda a sacristia. Alícia Delícia, que achado.
            Absurdo que fosse, a moça não poderia fazer idéia do sem-número de noites que já havia subtraído de Mário, ou de quantas vezes invadiu seu sono para acordá-lo com uma incômoda sensação de umidade. Ele se levantava, lavava o rosto e demorava para voltar a dormir. No dia seguinte, seu cansaço denunciava a noturna invasão da loira, mas nada que não pudesse disfarçar como sendo uma simples noite ruim.
            Por volta do décimo filme adquirido, Mário se cansou. Aquilo não era vida, ele precisava conhecer a dona dos maiores cílios e unhas que ele já havia visto. Encontrá-la não poderia ser a coisa mais difícil. E foi atrás disso com obstinação. Começou sua busca através do site da produtora Proibido Fruto. Mandou uma boa centena de e-mails sem resposta. Foi até a produtora, mas eles não forneciam informações sobre a vida privada de seus empregados. Agora havia ficado difícil. Como encontrar Alícia Delícia?
            Mário passou um bom tempo tentando fazer contato com a mulher via internet: seu tempo livre era quase inteiramente destinado a isso. Um amigo bem próximo, a quem havia contado a sua rotina e desejo por Alícia Delícia, estimulou-o a desistir, a procurar por alguém possível e, principalmente, de respeito, cara, tá maluco? Quer namorar com puta, porra? Bota a cabeça no lugar! Mas ninguém poderia entender que ele, de tão viciado na figura do bonde loiro, via nela além de uma mera atriz de filmes para adultos. Ela era uma mulher de carne, ossos e, provavelmente, também deveria ter ali no meio daquelas placas de poliuretano, um coração incompreendido e virgem. E Mário, talvez, fosse o único que estivesse consciente desse lado de Alícia Delícia.
            Depois de seus sucessivos insucessos na procura por ela, havia dias que chegava em casa e só ligava a televisão para que tocasse o áudio de sua voz toda maliciosa que só conhecia a linguagem dos palavrões. Não que ele definhasse. Não que não se permitisse conhecer uma moça ou outra e comê-las de vez em quando. Mas o platonismo em torno do umbigo de Alícia Delícia certamente o perturbava. Ele não podia expor isso como se fosse frustração plausível, não queria ser tachado de louco pelo trabalho e nos meios reais em que vivia. Gostaria de continuar a comer algumas mulheres, mas se elas descobrissem de sua tortuosa obsessão por aquela famosa atriz-pornô-loira-de-pentelho-preto-nojenta, iriam se espantar e fugir. Alícia Delícia era, portanto, um fantasma voluptuoso que o atormentava pelo lado de dentro, em um segredo inconfessável.
          Numa manhã comum, Mário abriu os olhos. Tomou banho, tomou café, tomou juízo, e foi trabalhar. Estava estranhamente bem disposto. Desceu as escadas do apartamento, girou a chave no tambor, saiu. Havia um tempo não se encontrava tão bem. Entre uma rua e outra, parou num lado da calçada, enquanto esperou pelo sinal abrir. Foi quando uma visão o desgraçou. Do outro lado da rua, uma morena com olhos perturbadoramente fundos e foscos, escondida por detrás de uma blusa branca sem decotes olhava para o céu. Seu jeito de mover a língua e seus olhares eram luxuriosos demais para qualquer mulher, mas não para aquela que devorava cada minuto da sua paz ignorante de tal fato. Por debaixo da camiseta branca, ele conseguia notar o redondo volume dos seios bem feitos, e podia até imaginar, com deleite, os detalhes em fita do soutien dela. Ela lambia discretamente os lábios para hidratá-los. Cada piscada de olhos da moça parecia eterna, porque ela o fazia tão languidamente que o que parecia era que estava revirando os olhos de um desejo que não tem nome nem tamanho. Num crachá, seu nome: Aline. Mas ele sabia muito bem de quem se tratava, e só poderia ser uma. No instante que se deu conta dessa terrível verdade, sentiu, num choque que lhe esquentou a pele, todos os fantasmas os quais pensava ter feito adormecer despertando violentamente, percorrendo seu estômago, laringe, peito, braços. Era Alícia Delícia. Era Alícia Delícia?
            O sinal de trânsito não estava aberto. Mas Mário correu em sua direção.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Onde estão os detetives?

     Apesar de não ser a maior fã de ficção noir, sempre achei interessante a atmosfera investigativa, e por esse motivo, passei a ler alguns artigos ligados a cyberpunk. Me surpreende a criatividade dos produtores do gênero, porque é preciso ter uma mentalidade fértil para engendrar boas tramas noir, afinal, não se constroem figuras folclóricas como Sherlock Holmes tão out of the blue assim. Por conta disso, Asimovs e Fawcetts do mundo já estão na minha listinha do que ler nos próximos meses.
    Há tempos imemoriais eles despertam paixões, porque as pessoas são naturalmente curiosas. E que bom que o são: a curiosidade é a mãe das descobertas. Me recordo de uma grande amiga me dizer, em tom confissional, que o pai era um detetive de verdade quando éramos crianças. Disse ter encontrado uma arma numa de suas gavetas, entre outros artigos que não pôde compreender. Dá pra imaginar o efeito disso - somado a todo o folclore em torno do assunto - na mente de uma criança?
    A simbologia desse universo tem um quê proibido que assusta e convida. Ruas escuras. Um tiro seco. Uma mulher que sabe demais. O detalhe distintivo numa evidência. Um suspeito que corre - ou seria uma vítima? Nuvens de nicotina e bolos sujos de dinheiro. A undergroundização desse estilo tem tantos adeptos não é a toa, mas, observando bem esse retrato, debruço a lupa da minha curiosidade sobre um elemento que não consigo encontrar.
    Por onde andam os detetives?
    Figuras tão emblemáticas quanto Poirot e dona Jill Munroe de loiros cabelos encascatados, por detrás de que sobretudo vocês estão? Até os anos 90, era muito comum a menção a esses personagens cujas existências duplas povoavam o imaginário coletivo com teorias mil. Mas parece que a aura misteriosa que os catapultou ao status de ícones de gerações acabou por fazê-los submergir na mesma; denso mergulho na escuridão das esquinas do ostracismo.
    A verdade é que eles desapareceram. Ganharam novos endereços, novos ofícios, novos nomes, estão bem aposentados pelos muitos anos de serviço prestados à brilhante imaginação humana. Não são mais reconhecidos pela indumentária dicktracyana e sua perícia perdeu o charme rudimentar de mitos como Basil da Rua Baker. Quem teve infância entenderá.
    Pode ter sido a internet a grande responsável pelo sumiço desses investigadores, já que, por meio dela, é possível vasculhar, sem muito trabalho ou estudo, todas as vidas que uma pessoa pode ter. Fazendo uso dessa ferramenta, o glamour que existia na precisão do instinto para farejar rastros do que podia variar de um pequeno deslize de conduta de um marido a um grande golpe corporativo foi reduzido, desmitificado. Talvez por isso a banalização de determinadas funções possa implicar na sua extinção.
    Tudo o que sei é que eles andam bem escondidos por sobre essa cortina de escombros e paetês pós-moderna. Proposital? Talvez.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Sem título

Minha melancolia é uma tímida senhora de bengala. E está pedindo licença. Não deseja incomodar quem passa.