Valentina agora sabia contar o tempo de trás pra frente. Sendo o tédio um dos únicos a bater sua porta e, contra sua vontade, entrar; era também o único a lhe fazer companhia. Ela adquirira o costume estranho de fazer os relógios girarem em sentido anti-horário. Todos os relógios em sua casa sabiam fazer isso. Era um dom estranho que lhe havia sido dado. Como se a água que gotejasse da torneira fosse sugada de volta. Como se pudesse um ovo estalado na frigideira voltar à casca, íntegro. Como se um corte na pele se autossuturasse, e a pele fosse fechando sozinha no mesmo instante. Não, nada disso acontecia. Mas Valentina vivia imaginando situações assim. Pegava um cigarro do cinzeiro e, a iniciar pelo filtro, conforme fumava, as cinzas voltavam e o reconstituíam. Gostava de ficar sentada na varanda, mas na cadeira de palha. Odiava a outra cadeira. Uma vez, a jogara pela janela. Ela não tinha mais esperanças. Perdeu o juízo. Qualquer um perderia, diziam os antigos amigos. Apesar de contar o tempo de trás pra frente, não podia negar a soma dos dias. Olhava com nojo as marcas nos pulsos. Ria-se. Era uma conta estranha. Cada dia que somava, um a menos sabia que tinha. Ria novamente. Mal podia esperar.
Gente, alguém me ajuda, socorro! Socorro, Ariadne, Charles, alguém, pelo amor de Deus! enquanto gritava, Tarsila puxava a amiga para fora da banheira brilhando em vermelho. Valentina ostentava um sorriso triste, mesmo com os olhos fechados. Estava tão pálida que a pior idéia veio à cabeça de Tarsila. Talvez estivesse morta. Gritou. Ariadne!. Mas Ariadne não estava em casa. Nenhum som. Valentina não respirava. Deitou-a na cama, ensopada daquela mistura de água e sangue, discou alguns números, a coordenação lhe carecia. Chorava e tremia. Não era pra ter sido assim, não era pra ter sido assim. Charles? Charles, pelo amor de Deus, aqui é a Tarsila, eu tô na casa da Valentina e ela se cortou toda aqui, ela não tá respirando, eu tô desesperada, Charles, vem pra cá agora que ela vai morrer, Charles, corre, pelo amor de Deus!
Lucca? Lucca, você tá me ouvindo? Lucca... Lucca, não sobe. Lucca, eu não vou. Vamos só ver hoje. Por favor, Lucca. Me escuta, só dessa vez! O vulto parecia admitir várias formas conforme subia as escadas. Olhava para ela. Quando fazia isso, ela levantava os braços, tentando alertá-lo de todas as maneiras que fossem possíveis. Parecia hesitar quando a olhava. Lucca, não! Lucca, não! Quando ele saltava, desaparecia, e Valentina sempre acordava com o coração aos solavancos, sem conseguir discernir os planos. Ao cair em si, desatava num choro desesperado, interminável. As enfermeiras eram constantes em suas vigílias. Ela tentara, já no hospital, algumas formas de se prejudicar, sempre intercedidas pelas enfermeiras. Nunca mais teria um sono tranquilo que fosse naquela vida. Passava a mão sobre os cabelos. Estava confinada a uma gaiola de ferro sob os quartos. Não haveria de ser. Eles estariam errados, por certo. Todos errados. Ela faria os tratamentos, as fisioterapias, o inferno que fosse, mas não perderia as suas pernas. Voava também por elas.
Barulho intermitente e irritante, luz vermelha, macas. Sacolejos. Ariadne nos braços de Charles, desesperada, chorando, sem entender. O velho Pavel não tinha reação, não sabia onde errara. Amarrara bem todos os cabos, todas as cordas, tudo estava no lugar. Aquilo não era natural. Como tá o Lucca, Pavel? Ele tá muito mal. Dizem que ele não vai conseguir. E a Valentina? Eu ainda não sei dela. Tô muito preocupado com o Lucca. Tarsila se distancia. Pessoas saem apavoradas. Um tumulto muito grande ali. Carros de polícia também chegam, tentando apurar as versões contadas. Um acidente, os dois caíram lá do alto, o cabo soltou, COMO, meu Deus, minha amiga, seu policial, minha amiga, NÃO! Ariadne gritava com o policial, ao que Charles, o marido, tentava contê-la. Não havia como. Sacolejos. Os dois feridos encaminhados a um hospital próximo. No dia seguinte, Valentina abriu os olhos, Ariadne próxima à cabeceira. O que é isso tudo, onde eu estou? Perguntava, zonza, os olhos tontos. Você tá no hospital, Valentina. Cadê o Lucca, onde ele está? Amiga, você precisa ser muito forte, forte como nunca foi na vida. O Lucca morreu.
Na mesa, uma dose de vodka para todos. Era o ritual de Pavel para o bom espetáculo. E todos tomavam. Vê mais uma, Pavel! Lucca sempre gostava de provocar o velho. Já estavam todos fantasiados. As fantasias realmente transformavam os artistas. Ariadne e seu colant, quase uma segunda pele. Facilitava muito. O neoprene foi a melhor coisa que já inventaram. O pé vai na cabeça como se a gente tivesse nua, ô, maravilha. Charles gostava das palhaçadas dentro e fora do picadeiro. Tarsila o assistia, também com palhaçadas, além de suas outras funções. Marcellus e Marcel, os gêmeos mímicos. E Valentina. A favorita de Pavel, a preferida da trupe, a estrela. Valentina e Lucca eram os acrobatas, e seu número era geralmente reservado aos finais. Eles próprios eram o grand-finale. Executavam números difíceis, de arrancar longos silêncios de apreensão do público - a serem seguidos por grandes aplausos. Tinham alguma coisa que encantava as pessoas. Lucca adorava brincar com todos, embora Tarsila não cedesse facilmente às suas provocações e brincadeiras. Valentina era a encarnação de alguma ninfa, coisa que Pavel acreditava e difundia piamente. Magra, apesar de ter os ossos fortes, a pele firme, os nervos tesos. Lucca tinha o mesmo biotipo. E essa noite seria mais especial que as outras. Havia uma luminosidade estranha no olhar de Valentina e Lucca, com quê de surpresa que eles estavam guardando. Vocês estão escondendo alguma coisa. Abre o jogo, Valentina! Não, Ariadne. Só depois do espetáculo a gente vai falar. Isso não é justo! Há quantos anos eu te conheço, Valentina? Você nunca foi de segredos! Qual é! Dá uma dica! Não, amiga! Sorria; feliz, leve. Espera até o final do espetáculo que você vai saber.
Você sabia que eu amo você? Lucca beijava as costas nuas de Valentina, enquanto ela sorria para o espelho. Olha só como você é linda. Você é a mulher da minha vida, Valentina. Ela não respondia. Que mistério todo foi aquele de ontem? Não entendi... Lucca tornava a beijá-la, apaixonadamente. Você é a mulher da minha vida. Sorriu sarcasticamente. Não desvia o assunto, quero saber! E sobre eu ser a mulher da sua vida... nossa, que coincidência! Você, por acaso, também é o homem da minha vida! Ela esticava os braços para tocar sua nuca. Beijava-o. Por um momento, ele se deteve. O que foi? É que eu preciso ter uma conversa muito séria contigo. Ih, não tô gostando. Valentina desarmou o sorriso. Pode desembuchar, o que é? Andei pensando sobre nós. Sim, o que há nisso? Tomei uma decisão a nosso respeito. A verdade é que eu precisava falar isso.
Perto dali, Tarsila ensaiava. Gostava mesmo de praticar só, sem ter ninguém para incomodá-la. Irritava-lhe a bajulação em cima do casalzinho. Não suportava Valentina e todo aquele bla bla bla sobre suas performances no ar. Que morresse, a Valentina. Que fosse pro inferno. Odiava Valentina. Mas já não podia dizer o mesmo sobre Lucca. Lucca e seu sorriso largo. Suas brincadeiras irritantes, sua mania de falar com naturalidade sobre os complexos das outras pessoas e transformá-los em piada inofensiva. Entretanto, não imaginava uma vida sem isso. Sem Lucca por perto. Lucca, que nunca seria seu. Terminara o ensaio. Retirando as polainas, ia deixando o picadeiro, quando passara devagar pelo camarim de Lucca e Valentina. Casa comigo? Ela ouviu a frase que lhe gelara a espinha numa descarga elétrica de nojo e repulsa. Valentina sorrindo, sorrindo até com olhos, desgraçada, podia espreitar pelo fio de luz que a porta salientava. O abraço, os beijos, se amando no chão. Queria ficar feliz por eles. Mas nunca conseguiria. Não se sentindo em eterna desvantagem com relação à Valentina. Correu, quando passou pela grande rede de sustentação do espetáculo. Parou por uns instantes. Não. Foi embora.
Essas nossas "vernissages"... é tanta merda que sai... hahahaha. Ariadne gargalhava das piadas de Lucca. Charles enchia os copos na mesa, fazia piadas também. Valentina preparava tira-gostos na cozinha. Ariadne, cadê o soquete? Quero colocar um alho aqui! Essas mulheres... ô Valentina, tu nunca sabe onde fica nada, hein? Vem aqui há milianos e vou te contar! Valentina é maluca, Charles. Nem lá em casa ela sabe direito onde ficam as coisas. Outro dia, eu tava procurando uma cueca minha. Abri a gaveta e vi um tomate, não entendi nada. De tanto procurar, eu acabei deixando pra lá. De repente, deu até uma fome depois de rodar a casa toda, abro a geladeira e o que aparece? Hahahahaha, tá de sacanagem, Lucca? NÃO, cara! Pior que não! Aí eu fui perguntar por esse lugar no mínimo pouco usual pra colocar cueca e ela me disse que tava com um tomate na mão e a cueca na outra. Eu falo, essa mulher é doida! Hahahahaha. Valentina, isso aqui é sério? Pergunta Charles. Todos riem sem parar. Tudo é festa. Doida, mas te alimento, cozinho, passo, lavo suas caganças! Só sendo acrobata pra fazer tudo isso pra você! E você aí, me chamando de doida. É mole? Ela grita da cozinha. Linguicinha saindo! Valentina volta com um prato com pequenas fatias de pão e linguiça picada. É doida, mas é linda. Não é linda, gente? É a estrela! Pavel diz, com a admiração sincera de um pai. Um brinde, propõe Lucca. Um brinde a nós, um brinde à minha mulher linda que vai ficar mais linda ainda amanhã e ao maior espetáculo da terra que será protagonizado por nós. Valentina olha para Lucca, franzindo as sobrancelhas. O que ele quis dizer? Balança a cabeça. Ele finaliza: um brinde a tudo que virá. Um brinde ao maior espetáculo das nossas vidas!
Um comentário:
As palavras desse texto fizeram de meus miolos o palco de um show circense vertiginoso. Parabéns!
Saudações verdes
Lázaro
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