sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Valentina vai às nuvens

Valentina estava triste naquele dia. Porque não quis comer, sua mãe lhe colocou de castigo. E era um castigo daqueles: estaria proibida de jogar video-game até o fim da semana. Terça, quarta, quinta e até sexta-feira. Ainda por cima, a mãe a levou para a escola. Valentina não gostava da escola. Só da aula de ciências. A tia Fernanda levava todo mundo ao laboratório pra olhar, pelo microscópio, todas aquelas coisinhas se mexendo. Se o olho ficasse fora do microscópio, aquelas coisinhas desapareciam, como num passe de mágica. Olho no microscópio, pluft! As bolinhas cheias de pintinhas coloridas apostavam corrida entre elas. Olho fora, pleft! Elas sumiam.

Era dia de aula de ciências, e nem assim Valentina ficava contente. Poxa vida, só porque ela não queria comer o restinho do feijão? Que  injusto! Depois que a aula de ciências acabou, veio a de matemática. Como o tempo passava devagar na aula de matemática! A tia Érica já era chata, a matéria então... Valentina queria ser como as coisinhas que só podiam ser vistas do microscópio e, pleft, desaparecer.

O dia, que estava ensolarado quando ela chegou à escola, começou a ficar nublado. Quando a aula acabou e ela estava livre para ir pra casa, o vento começou a bater bem forte nas janelas e nas portas da escola. Valentina tinha medo quando o vento assobiava assim, fazendo essa música estranha nos cantinhos das janelas e portas. Ela sempre achava que a casa ia desabar quando ventava assim, e que ela não ia conseguir fugir.

No caminho pra casa, começou a chuviscar. Ela pegou seu guarda-chuva para se proteger não da chuva, mas do vento. Mas foi quando ela abriu o guarda-chuva que uma coisa inacreditável aconteceu. Uma coisa que ela nunca mais iria esquecer:  o guarda-chuva virou um pára-quedas ao contrário, e com a força do vento começou a voar do chão, suspendendo Valentina, que não conseguiu largar o cabo.

Valentina foi subindo, subindo, subindo, pra onde o vento ia levando, sem direção. Embaixo dos seus pés, a chuva começou a cair. Ela nunca teve tanto medo na vida! Fechou os olhos bem apertados e continuou subindo. Já não fazia idéia de onde estava e resolveu abrir um olho, devagarinho. Foi quando se deu conta da altura. Abriu o outro olho e soltou um grito: viu as casas, os prédios, as praças, tudo tão pequenininho lá embaixo. Olhou sobre as ruas procurando sua casa. Quando a achou, cuidadosamente soltando uma das mãos do cabo do guarda-chuva, a mediu com o indicador e o polegar, fechando um dos olhos.  Estava tão pequena que mal cabia entre os seus dedinhos.

Passados alguns minutos, agora de olhos bem abertos, Valentina sentiu as nuvens. Eram tão geladinhas, e pareciam fantasmas, mas não eram daqueles que davam medo na gente de noite. Com a mão, pegou um pedaço de nuvem e o levou à boca. Valentina comeu a nuvem, se refrescando. Era o melhor sorvete de água do mundo! Feliz, gargalhou, ficou brincando de chutá-las e quase perdeu o equilíbrio. Que susto! O mundo lá do alto era tão azul! Era ainda mais azul do que as figuras dos livros das historinhas que ela já tinha visto. Não tinha azul mais bonito que aquele.

Continuava chovendo embaixo dela, mas agora ela tinha perdido o medo.  Valentina começou a se sentir grande lá em cima. E corajosa. Começou a ver como eram pequenas as coisas quando a gente consegue olhar pra elas de longe, mas mais importante ainda, quando a gente consegue olhar pra elas de cima. E lá de cima, Valentina percebeu uma coisa: não podia mais ver nem o video-game, nem o feijão.

Assim que a chuva acabou, Valentina foi caindo do céu, levinha e sem pressa, feito um passarinho. Quando seus pés tocaram o chão, foi correndo, aos tropeços, para casa.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Tempo de pipa

Pipa é peixe no céu
Peixe de papel
Nadando pra cima
Porque respira em superfície.
Porque foge de predadores elétricos.

A pipa é feliz lá no alto
Se tem que descer, diz sempre "não".
Ora, se não é razoável,
Quem gostaria, depois de ganhar o ar,
voltar ao chão?

Pipa é peixe, mas também é águia:
Se sente seu território sendo invadido, voa aos cortes
Abocanhando essas outras pipas tolas
essas outras pipas tolas, hahahahaha.

Enquanto isso, tombam as pipas tolas
Balançando lentamente as cabeças e os cabelos
Como quem lamenta e como quem morre
Como quem lamenta a própria morte.

Enquanto isso, tombam as pipas tolas
Caindo, tristes, no fundo do mar.





quinta-feira, 30 de maio de 2013

Poeira


teu beijo
tinha gosto de sonho
e os teus olhos eram mais doces
cheios de manchas verdes
selvagens oceanos pré-cambrianos.
teus beijos também eram mais selvagens
e vinham assim, líquidos
lascivos, cheios de novidade.
e eu perdia muitos minutos te olhando depois.
muitos minutos mais.
hoje
teus beijos - na minha testa -
têm gosto de lã
e o nosso amor é assim,
confortável...

Confortável.

domingo, 19 de maio de 2013

A morte é doce


Formigas irrisórias se alimentam dos restos de chocolate no copo esquecido sobre a mesa. Me presto a observar seus movimentos. São tão humanas. Gostam de chocolate, como os humanos. Se aproximam da lagoa doce e escura e, sendo a esmola muita, desconfiam, se retraem - o que pensaria um humano consumidor de coca-cola ao se deparar com uma piscina gigantesca da bebida? Mas, como os humanos, são vencidas pela curiosidade e pela tentação. Humanas que são, contam a novidade às outras, que vêm todas em marcha, e logo há um pequeno maracanã diminuto de formigas gritando - na sua inaudível língua de formiga ao ouvido humano - sobre aquela maravilha que encontraram. Mas como os humanos, as formigas são tolas e desatentas, e não percebem que começam a ficar lentas, que suas patas começam a ficar pesadas: elas estão tendo uma overdose, mas não conseguem parar de sugar aquele açúcar perigoso, prazeroso, aquele açúcar que a essa altura já entupiu algum ducto que daqui não consigo ver que faz com que elas respirem.

E assim, quarenta minutos depois, o que há é uma pasta fofa, confusa e uníssona de formigas defuntas que foram enganadas por um oásis doce demais.

sábado, 27 de abril de 2013

Doses homeopáticas de cotidiano numa sala de espera


_ Você viu, menina, executaram a dentista no próprio consultório! Amarraram ela na cadeira e tacaram fogo.
_ É o final do mundo!
_ Deus me livre!

[...]

_ Olha só, a Sandy já tá com 30 anos, vi essa menina criança.
_ Essa não é a Sandy, mãe; é a Narciza.
_ Ah, tá... Narciza.

[...]

_ O problema são os cracudos. Eles ficam pra lá e pra cá na Avenida Brasil, outro dia teve um atropelamento sério por lá por causa de um que cruzou a pista. Meu genro tava lá. Disse que o caminhão passou e arrancou a cabeça do cara que caiu da moto tentando desviar do cracudo!
_ Só Jesus pra tomar conta deles. Não tem quem tome.
_ Menina, tô com uma dor irritante nas costas. Tomara que o doutor dê um jeito nisso.

[...]

_ Vocês viram a história da maluca do hospital, que matava os pacientes? Outro dia saiu a notícia de uma mulher que envenenava cachorrinhos! Tadinhos dos cachorrinhos! Ela botava chumbinho na ração e dava pra eles comer. Ela também matava gato, mas gato é um bicho que só se apega à casa, quanto menos gato, melhor.

[...]

_ Meu filho outro dia chegou da escola falando que tem um casal de namorado homem na sala de aula. Gay, sabe?
_ É o final do mundo isso, gente.
_ É mesmo!
_ Sabe, eu acho que o mundo não acaba tão cedo. E se um dia fosse acabar, por isso é que não seria.

[Silêncio prolongado]

_ Essas atrizes são lindas né? Olha só essa menina aqui! Eu nunca vi na novela, é atriz nova.
_ É mesmo. E esse cabelo, e essa pele? É linda mesmo a menina. Só é feia mesmo quem quer.
_ Hahahahahaha.

[...]

_ Enquanto o doutor não chama eu vou fumar um cigarrinho. Ai, sei que faz mal, mas eu já fumo há tanto tempo né? Se fosse pra morrer já tinha morrido.

sábado, 13 de abril de 2013

O amor quando acontece

Se perceberam assim que chegaram, mas não deram importância. Ela foi encaminhada, por amigos, a uma outra ala de acesso restrito. Enquanto isso ele dispunha de uma companhia mais líquida entre os dedos. A viu novamente, e dessa vez, seus olhos se cruzaram de longe. Ela lhe parecia só mais uma burguesinha inútil de camarotes. Ela não conseguiu formular uma opinião sobre ele ali, naquele relance.
O lugar era grande, e estava cheio. Gente de todos os lugares, por todos os lugares. A noite caía, e com ela, a tolerância etílica dos presentes. Os copos iam ficando vazios e os corpos iam ficando leves, fluidos, despidos, como se de dentro deles houvesse algum tipo de energia que era, na verdade, a música; como se a música estivesse saindo dos próprios corpos das pessoas.
Tudo era toque. Toque das bocas, das mãos, numa ultrassensibilidade que parecia viajar de um corpo ao outro, a doença contagiosa benigna dos hedonistas. As pálpebras demorando uma eternidade para se encontrarem, bem como os seus olhos nos dela, que agora a tinham perdido de vista. Um homem aparentemente mais novo que ele se aproxima, toca seu ombro, o toque. Ele se deixa beijar. Ele se deixa abraçar. Ele não quer pensar.
As horas parecem sorver no suor. A musculatura flexível e ágil das línguas ao encontro umas das outras, uma com a outra, duas com uma, quatro. Uma mulher cochicha no ouvido dela, ela dá um sorriso cínico. Dois homens a tocam na cintura. Ela se deixa beijar. Ela se deixa abraçar. Ela não quer pensar.
A música parece aumentar nas cabeças das pessoas, e se propaga, e se ressemantiza e se configura numa nova música neural e inédita produzida dentro da cabeça. Música idiossincrática, música transcendental, pessoal e intransferível. Ele se sente zonzo, como se a música lhe lambesse o rosto. A música, o fantasma que tocava a todos, que desfrutava de todos ali ao mesmo tempo. Eis que ele adentra uma outra porta.
Após uma longa valsa de fluidos, o olhar dela finalmente encontra o dele. Mais uma dança. Ela tem um par insistente que não sai de cima de seu corpo; ele tem as mãos ocupadas com outra moça. Mais uma dança. Uma mulher obesa ocupa-se da intimidade dela com uma perícia quase ginecológica, enquanto ele procura se desvencilhar de um casal de gêmeos que o cerca. Ele finalmente toca a sua mão, e ela a segura forte, em meio a um orgasmo sísmico que a mulher lhe proporciona. Ele a beija longamente, e a convida para tomar um sorvete.
Estão apaixonados. 

sábado, 30 de março de 2013

Vida, morte e amor por Gus Van Sant


(Há muito, muito tempo não escrevo sobre cinema nesse blog. Talvez por perceber minha pequenez diante do assunto, talvez por ser relapsa com tudo. Mas o filme que assisti é tão repleto que me arrisco. Pode entrar, desculpe a bagunça.)

Há tempos escuto falar de Gus Van Sant. Que é o responsável por "Paranoid Park", pelo comentadíssimo "Milk", que traz Sean Penn no elenco dando um show de atuação, que dirigiu o "Psicose" reloaded de 98, e também "Encontrando Forrester". Honestamente, eu não vi nenhum desses filmes - Psicose, só vi o original - logo, eu me sinto ligeiramente desfavorecida, mas não impossibilitada de falar de seu mais recente longa, "Inquietos".



"Inquietos", de 2011, é um filme de amor. O objeto de seu pano de fundo não é assunto novo no cinema, mas é justamente a forma da qual Van Sant se vale para contar sua história que a diversifica e colore. No cerne do enredo, dois jovens perdidos  no mesmo enviroment, mas em direções opostas se cruzam, se conhecem, se percebem, se apaixonam. A mesma morte que os ligou, num primeiro contato, é a que vai fatalmente separá-los. Como, então, viver com a certeza da morte breve?

Parece que o filme nos manda uma mensagem subliminar de que, oras, é só isso o que fazemos enquanto vivemos: nós simplesmente vivemos esperando. A partir dessa premissa, vemos no filme a naturalização da morte: Enoch vai a funerais, tem um amigo fantasma, Annabel, sua namorada tem tumor no cérebro. Teríamos um filme meramente mórbido não fosse o talento desse diretor para mostrar que a morte também pode ser leve, afinal, ela  permeia todo o filme, tão subjacente que quase nos esquecemos dela. A chegada da morte não precisa ser trágica, porque é apenas uma etapa - o filme nos cutuca. Como nascer. Afinal, é assim tão importante pensar nela?

Ainda, a beleza de "Inquietos" mora na simplicidade, no cotidiano, na desnaturalização do comum, perceptível no olhar peculiar que Van Sant traz, por exemplo, dos personagens periféricos que são a representação das pessoas médias (prestar bastante atenção, por exemplo, à irmã de Annabel, Elizabeth), na exploração do inusitado, na cumplicidade entre Enoch e Annabel que conjuga suas estranhezas , incertezas e, a partir disso, cria uma forte afinidade. Mas tudo com despreocupação e tintas muito leves,  talvez pretensamente superficiais - dada a vastidão emocional dos personagens. Há um pouco do cliché 'salvação mútua' do casal, mas nada que comprometa a suavidade e a delicadeza que são os fio-condutores da trama.

Tecnicamente, o roteiro tem diálogos interessantes, ressemantizadores - observar, novamente, a questão da desnaturalização do comum - uma fotografia que conversa com as emoções dos envolvidos, e que, portanto, se alterna nos momentos do filme, e uma trilha sonora assinada pelo veterano Danny Elfman que conta com lirismo e introspecção e ainda tem um Lou Reed pra derreter corações, baixinho no pé do ouvido, que nos faz querer aninharmos ou nx namoradx ou nas almofadas.

Sim, Gus Van Sant fez um filme romântico. E fez também bem mais que isso.

sábado, 16 de março de 2013

Um rio

O Rio de Janeiro
tem tantos janeiros
tem tantos rios

tem, no meio da cidade
um café
onde se vendiam filmes de Pabst, Buster Keaton, Frank Capra,
Federico Fellini, Julio Bressane, Akira Kurosawa

mais filmes que café.

tem, num outro canto no meio da cidade
um Zé Pequeno não-ficcional
que tem uma camisa encardida e pede por um real

mais real que muito zé.


Dentro do olho



Tem uma
dançarina de
flamenco
cujas saias
voam e pousam
dentro
do olho.

Tem um
oceano de
fibras finas
com micropeixes
nadando presos
dentro
do olho.

Tem uma
cratera cercada
de areia
quente e movediça
dentro do olho.

Tem um
vale de
outro mundo
esperando um
curioso cair
nas águas
escuras e viscosas
de seu lago

dentro
do
olho.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Pina


Fazia tanto calor naqueles dias que os prazeres ficavam simples. Ela se contentava em tomar banho e, ainda com o corpo molhado, dançar nua e sozinha no terraço. Gostava de sentir o vento batendo nos seus mamilos, e as gotas d'água percorrendo seu corpo em sentido vertical; gostava de bater os cabelos molhados contra o rosto, os fios virando um chicote gelado e mole cheio de doçura. Gostava de correr e de rodar sobre o próprio eixo - o vento seria para sempre o seu par, ladeando-a de todos os lados - e depois de tão cansada se debruçar no muro e esfregar o sexo nele.

Só era livre quando era louca.