Observar janeiros com mais paciência. Não que as coisas subitamente tenham ficado mais calmas, mas há que fazer uma força - uma força necessária - para perceber a vida que se espreme na pressão dos verões. Ontem eu vi você caminhando na beira da praia. Tinha um livro pequeno na mão. No janeiro passado era um isqueiro - ou um celular, ou um chaveiro, não me lembro. Sei que hoje você carrega um livro, e a julgar pela posição que teus dedos ocupavam no meio das páginas, você já o lia há algum tempo. Pode não ser nada, mas pode ser que você tenha mudado. Pode ser que alguma coisa dentro de você tenha acontecido.
Tô pensando em voltar a fotografar. A imagem estática me ajuda a ver com mais detalhes aquilo que some à primeira vista - o que é muito natural - mas perder os detalhes me deixa com um tipo estranho de buraco. A sensação de buraco é estranha. Lembro de você dizendo que minha fotografia não era grande coisa, e que eu precisava estudar mais. Mas, né. Tenho esse espírito torto que você conhece, esse fio de teimosia que é até útil em certa medida. Voltemos aos janeiros.
Eles passam tão depressa. Mais até que os dezembros, porque os dezembros ainda carregam aquela saturação acumulada de todos os onze meses anteriores. Dezembro é inchado como é inchada uma perna coberta de varizes, mas janeiro não. Ele traz essa (falsa) idéia de que a gente pode ter o mundo nas mãos, fácil de acreditar pelo excesso de branco nas ruas. Mas o mundo nunca foi tão difícil de se ter, de se ler, de se ver, e isso não é necessariamente ruim.
Apesar de tudo parecer circular, as intermitências estão lá. Elas provocam deformidades tantas vezes ínfimas nas rodas perfeitas e é isso que faz morrer - e faz nascer - um monte de coisas. É a isso que pretendo dispensar atenção. Topar essa missão impossível de detectar o turning point exato. Ambição minha? É provável. É razoável. Como eu te disse, pode não ser nada, mas pode ser que você tenha mudado. Afinal, até os janeiros estão mais quentes.
Eu também.
segunda-feira, 13 de outubro de 2014
quarta-feira, 8 de outubro de 2014
Os meninos suicidas
Os meninos suicidas
entraram no ônibus num trote sonoro, violento. Um monte de pernas pretas e
ruças em par, se trombando todas na correria por um assento vago. “Estamos fora
do problema, mas se o problema vier até nós, não vamos correr”, disse assim, messiânico,
um deles.
Gritos, psssst, quando a gente desce, porra mané, tô chei de fome, risos, funk, gritos. Ninguém dorme. Os meninos suicidas desejam que o ônibus tombe, e que morram todos. Eles reiteram sua vontade repetidas vezes durante o trajeto, como se apenas pela força dela aquilo fosse capaz de acontecer. Mais uma curva, e a morte não chega. Azar.
Meninos suicidas não podem amar aqueles que os fitam com nojo, cinismo e desprezo. Eles não podem fazer silêncio para que sua miséria passe despercebida – ela, por si só, é bem ruidosa. Eles não podem se comportar porque o pai deles não recebeu educação, porque o pai do pai deles não recebeu educação, porque o pai do pai do pai deles não recebeu educação, porque o pai do pai do pai do pai do pai deles, no lugar de educação, recebeu uma saca pesada de café muito maior que suas próprias costas para carregar – e a única herança que conhecem é a saca. Eles não podem amar um pai que talvez nem tenham conhecido.
“Vai cair, vai virar, vai cair, vai virar”. “Tomara”. “O fim dos tempo, tô doidim que chegue logo, vários arrastão pra nóis fazer”. Someone has to pay the bills.¹ Os meninos suicidas não temem a morte – aquilo a que se acostuma, afinal, só se destina indiferença. Não há com o que se importar porque eles já estão socialmente mortos. Agora querem morrer fisicamente, mas antes querem que os outros morram. Querem mata-los se tiverem a chance. E vão rir disso com a felicidade nervosa de quem espera algo ou alguém com saudade, sob uma bananeira, apontando uma arma iluminada pelo sol de forma que, aquele que morrer pelo tiro que vai sair dela possa ver, minutos antes, o vermelho-queimado que emoldura o interior do cano. Eles não vão ter pena porque não podem. Meninos suicidas não podem muitas coisas.
Faz um dia bonito e quente do lado de fora da janela. Talvez até mesmo a morte possa esperar aqueles que precisam fazer um passeio. Apontam seus indicadores para as motos, para a mulher gorda, para o cavalo e tudo o mais que fica para trás. Um deles diz que vai acender velas para São Jorge. O outro faz um sinal de degola para um transeunte. Mais calado e alheio, um cola a testa no vidro e apenas observa o movimento nas ruas. Hoje eles são reis. Mas que súdito respeita reis sem coroa? Que reino é esse que se ergue se os reis próprios são anarcomonarcas? Que reino é governado por meninos de 12 anos que têm a morte como a única certeza, uma morte inevitável que se manifesta de diferentes formas, tantas vezes por dia? Certamente que é melhor ser rei de si, que "si" é uma terra onde se sabe caminhar, que "si" é o lugar onde não se paga imposto.
Ao descer do coletivo, os meninos suicidas se espalham entre as demais pessoas que deixam a estação. Do lado de fora, um homem uniformizado de azul-escuro os espera de braços cruzados. Quando eles se dão conta de que são esperados eles se tornam aranhas, e serpentes, e ratos, e pássaros, e passam pelas mãos do homem, e pelas pernas, e pelos braços, porque tendo o inimigo tendo pés não foi capaz de alcançá-los; porque eles olharam dentro do olho do inimigo e disseram say you never gonna catch me, no², mas os meninos não falam inglês. Os meninos falam é a língua da rua com os examinatórios pés calejados de tanto correr, e com os olhos invasivos e curiosos de quem nada tem.
Gritos, psssst, quando a gente desce, porra mané, tô chei de fome, risos, funk, gritos. Ninguém dorme. Os meninos suicidas desejam que o ônibus tombe, e que morram todos. Eles reiteram sua vontade repetidas vezes durante o trajeto, como se apenas pela força dela aquilo fosse capaz de acontecer. Mais uma curva, e a morte não chega. Azar.
Meninos suicidas não podem amar aqueles que os fitam com nojo, cinismo e desprezo. Eles não podem fazer silêncio para que sua miséria passe despercebida – ela, por si só, é bem ruidosa. Eles não podem se comportar porque o pai deles não recebeu educação, porque o pai do pai deles não recebeu educação, porque o pai do pai do pai deles não recebeu educação, porque o pai do pai do pai do pai do pai deles, no lugar de educação, recebeu uma saca pesada de café muito maior que suas próprias costas para carregar – e a única herança que conhecem é a saca. Eles não podem amar um pai que talvez nem tenham conhecido.
“Vai cair, vai virar, vai cair, vai virar”. “Tomara”. “O fim dos tempo, tô doidim que chegue logo, vários arrastão pra nóis fazer”. Someone has to pay the bills.¹ Os meninos suicidas não temem a morte – aquilo a que se acostuma, afinal, só se destina indiferença. Não há com o que se importar porque eles já estão socialmente mortos. Agora querem morrer fisicamente, mas antes querem que os outros morram. Querem mata-los se tiverem a chance. E vão rir disso com a felicidade nervosa de quem espera algo ou alguém com saudade, sob uma bananeira, apontando uma arma iluminada pelo sol de forma que, aquele que morrer pelo tiro que vai sair dela possa ver, minutos antes, o vermelho-queimado que emoldura o interior do cano. Eles não vão ter pena porque não podem. Meninos suicidas não podem muitas coisas.
Faz um dia bonito e quente do lado de fora da janela. Talvez até mesmo a morte possa esperar aqueles que precisam fazer um passeio. Apontam seus indicadores para as motos, para a mulher gorda, para o cavalo e tudo o mais que fica para trás. Um deles diz que vai acender velas para São Jorge. O outro faz um sinal de degola para um transeunte. Mais calado e alheio, um cola a testa no vidro e apenas observa o movimento nas ruas. Hoje eles são reis. Mas que súdito respeita reis sem coroa? Que reino é esse que se ergue se os reis próprios são anarcomonarcas? Que reino é governado por meninos de 12 anos que têm a morte como a única certeza, uma morte inevitável que se manifesta de diferentes formas, tantas vezes por dia? Certamente que é melhor ser rei de si, que "si" é uma terra onde se sabe caminhar, que "si" é o lugar onde não se paga imposto.
Ao descer do coletivo, os meninos suicidas se espalham entre as demais pessoas que deixam a estação. Do lado de fora, um homem uniformizado de azul-escuro os espera de braços cruzados. Quando eles se dão conta de que são esperados eles se tornam aranhas, e serpentes, e ratos, e pássaros, e passam pelas mãos do homem, e pelas pernas, e pelos braços, porque tendo o inimigo tendo pés não foi capaz de alcançá-los; porque eles olharam dentro do olho do inimigo e disseram say you never gonna catch me, no², mas os meninos não falam inglês. Os meninos falam é a língua da rua com os examinatórios pés calejados de tanto correr, e com os olhos invasivos e curiosos de quem nada tem.
Qualquer dia de sol desses
os meninos explodirão. Um após o outro, dois ao mesmo tempo, porque, então, os
dias amargos terão chegado ao fim³. E não há de cair uma folha da árvore em
luto por eles. Indiferentes, eles encontrarão São Jorge que, grato pelas velas
acesas, os receberá de braços abertos.
1- The boys who died in their sleep, Flying Lotus, ‘You’re dead!’, 2014
2- Never gonna catch me, Flying Lotus feat. Kendrick Lamar, ‘You’re dead!’, 2014
3- Coronus, The Terminator, Flying Lotus, ‘You’re dead!’, 2014
1- The boys who died in their sleep, Flying Lotus, ‘You’re dead!’, 2014
2- Never gonna catch me, Flying Lotus feat. Kendrick Lamar, ‘You’re dead!’, 2014
3- Coronus, The Terminator, Flying Lotus, ‘You’re dead!’, 2014
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