domingo, 14 de maio de 2017

Fundura

todos os dias minha mãe 
lançava e içava o balde no poço
muitas vezes até haver
água

repetição cadenciada

encher o filtro
lavar as roupas
cuidar da casa

não confiava na qualidade
da água encanada

procedimento antigo, mãe
desde os artesianos
água saloba
de poço
esforço
costume

muitos anos depois e minha mãe em ossos
era eu quem furava poços
no coração branco da antártida
com a obscura função de vasculhar às cegas 
vestígios de outro tempo

minha mãe de lenço na cabeça nos fundos da minha memória
tinha mais braços do que me lembro
e me mantinha tão limpa
e tão indefesa
me punha em tantas águas
manuseando com cuidado meu corpo de criança

caço de mãos submersas
resposta na desertidão dos sais
onde a cor da vida não vai

não há sob a luz da vida
procedimento velho demais



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