Eu também fui uma dessas mulheres que saiu de casa sozinha no dia 29 de setembro. Com um cartaz, sem adesivos, tomei um metrô que, já pelas adjacências, florescia todo em violetas, em rosas brancas. Meço a temperatura nos olhares, nos sorrisos; é amena, me faz sentir em casa. Há, ainda algo tímida, uma confiança compartilhada, silenciosa e tácita se espalhando na estação de Vicente de Carvalho. Vejo mães, filhas, avós. Conversam umas com as outras, fazem selfies, se abanam do calor que está chegando. Uma delas me dá um adesivo com uma mensagem.
Há que afiar os ouvidos para notar quando a vida ganha um corpo maior que o nosso e nos sussurra, bem baixinho, sua torrente de força. Sua verdade. Tomo o metrô, e meu olhar encontra o de uma mulher, que como eu, saiu sozinha de casa no dia 29 de setembro. Não precisamos, mas sorrimos uma para a outra, e tecemos o velho e necessário fio de prosa que nos mantém humanos. Ela me conta um pouco de sua vida. Também é da educação. Também acredita que pode mudar alguma coisa. Tem os olhos tão brilhantes, a boca pintada e um sorriso que vai se abrindo devagar. Próxima estação, Inhaúma. O vagão vai inchando de um enxame de caras e cabelos coloridos. Ela diz que não se sentiu segura ao sair de casa com uma camiseta que identificasse seu propósito naquele dia principalmente porque estava grávida. "Grávida?", pergunto. Sim, havia descoberto há 3 dias. Próxima estação, Maria da Graça. Uma pequena semente, ainda invisível a olho nu, crescendo dentro dela no meio de uma também crescente multidão em curiosa espécie de metagravidez, marias de tantas graças por ali. De repente seu marido, motorista autônomo, a encontraria mais tarde. Penso no meu pequeno sobrinho, e como certos pensamentos precisam virar palavra, falo um pouco dele. De alguma maneira, ele também está no tênis que calcei nos pés, no cartaz que escrevi, na minha decisão de sair de casa em 29 de setembro. Algo muito profundo está acontecendo, algo que a compreensão falha ao tentar entender.
Estácio, estação de transferência. Na capilaridade da estação em si, uma reunião de pessoas dos mais diversos matizes, idades, estradas. Uma turba dessas é um organismo só, a uma só voz, se orquestrando num ajuntamento que faz com que sua força supere até mesmo seu grande número. Saímos, eu na frente, que sei o segredo escondido dos olhos do resto, aquele pequeno feto em formação. Sem sexo, só o registro de uma existência em botão.
Próxima estação, Cinelândia.
Nada na minha vida até aqui foi como pôr meus pés na Cinelândia em 29 de setembro, ainda dentro da estação. Por algumas vezes na vida pude, sim, sentir uma forte energia, orientada por outras razões, fosse carnaval, jogo do meu time, uma procissão em direção à praia em dia de alto verão. Mas nada como esse dia. Uma horda de pessoas, corações em uníssono: Ele Não. A vibração me atinge da cabeça aos pés e me eletrifica, derrubando dos meus olhos fracos lágrimas sem resistência. Eu abraço minha companheira de percurso, e o clichê é a mais pura verdade: um mais um é sempre mais que dois. Nós vamos juntas. Nós subimos juntas essas escadas, de mãos dadas. Uma senhora pede licença. Penso em minha avó. Como pesam essas cores de esperança, uma esperança que, não havia me dado conta, vinha sendo abafada pela maré de más notícias. Com que intensidade me tomam. Vivi até aqui pra viver esse momento. A mulher é a árvore da vida, portanto a árvore da história. Talvez isso por si já fosse bonito o suficiente, mas nessa corrente humana experimentei uma coisa que mudou pra sempre minha relação com as outras mulheres. Cada uma, um espelho. E os espelhos, quando recebem luz, luz devolvem. Pequena, pude ser imensa, vestida do orgulho que só a consciência sobre o meu gênero pode me dar. Nunca antes amei tanto ser mulher. O Sagrado Feminino, meus caros, é real, e respira, e pulsa. Não se pode matar, não se pode controlar.
O resto desse dia estará fartamente documentado em fotos e vídeos propagados como fogo em mato seco nos jornais, revistas, portais de toda espécie e orientação ideológica. Essa é a grande história. Quanto a mim, posso dizer da pequena, que nem por isso é menor.