quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Inundação

Fui abandonada no oceano. Completamente à deriva, o oceano morno como leito eterno enquanto lá de cima estrelas curiosas conjecturavam sobre a minha sorte. A noite no oceano faz com que você vire noite também, e você vira noite e vira água, de tão irrisória que é a sua presença no meio daquele choque: o choque te transforma em amálgama. Você, então, é uma não-existência própria, que flutua ao sabor das correntes do oceano. E ainda assim, nunca antes esteve tão viva.

Mal parece existir mais mundo além das cortinas da noite; porque não há pelo quê nem para quem gritar, o impulso é pra dentro, já que as águas são tão persuasivas. Submersão. Bem-vinda ao lado debaixo, bem vinda ao lado de dentro.

Uma cauda imensa abre caminho sem pedir licença, e o que era o resto da criatura é mistério. O mar noturno guarda todos os segredos da evolução da vida de uma maneira muito mais bonita e muito mais intensa do que qualquer representação é capaz de traduzir. E se revela, do oculto, o que parece uma moreia lânguida. Também imensa. Brilham miúdas luzes. Mais à frente dança, cheia de ventosas, uma língua que sobe e que desce, agitando a água - sei apenas pelas vibrações. A selvageria dos pulsos incita mais selvageria; pré-cambriano sentimento.

Subitamente as águas criam nervos: uma presença massiva, turva e cheia de força revolve o oceano e o crescendo prenuncia que o impacto vai vir de qualquer lugar - e será dantesco. Não entendo. Aprendi que todo destino de maremoto é areia. Mas toda a água se intumesce e o debater descontrolado dos meus braços denuncia: alguém vem vindo. Alguém que cavalga esses mares com a força de um dândi que os tem na palma da mão. Alguém vem de lá e vem furioso, vara o escuro, como o maior dos megalodontes, eu não deveria ter me deixado encantar pelo canto dessas águas, bato as pernas, a mão em concha, mas agora alguém chega como se fosse arrasar a vida com a implacabilidade da própria vida. Vibração, um grito abafa do lado de dentro, a onda abissal varre a consciência: o monstro é o oceano em si. Mas não morri.

Levanto. De êxtase, os olhos nem abrem. Acendo a luz, e vou tomar banho.

Um comentário:

Anônimo disse...

bonito
seria um belo poema, acho que eu preferiria um poema