Trabalhamos com possíveis spoilers! Estou presumindo que você viu o filme!
Em seu quarto longa, Os Últimos na Terra (Z for Zachariah), o diretor Craig Zobel trabalha com as variadas tensões que envolvem a humanidade que resta (realmente, no sentido residual) em três sobreviventes que se encontram após um desastre nuclear que, ao que tudo indica, trouxe consigo o fim da espécie humana.
A premissa da fita é simples. A indolente Ann (Margot Robbie) é uma jovem de 16 anos que se vê sozinha (no mundo) após seu pai e irmão saírem em busca de sobreviventes algum tempo depois da grande hecatombe. Morando num pequeno condado, segue com sua vida de maneira aparentemente resignada, até que um estranho perturba a água parada de seu cotidiano: trata-se do engenheiro John Loomis (Chiwetel Ejiofor), que, sem saber, surpreende Ann numa estrada para, momentos depois, ser surpreendido por ela ao banhar-se numa cachoeira radioativa. O primeiro contato entre os dois promove uma boa ilustração sobre como o evento nuclear alterou radicalmente a dinâmica no reconhecimento do outro, servindo, pois bem, de prólogo para o desenrolar da narrativa, indicando que tudo é suspeito, até que se prove o contrário. Vencida a desconfiança, Ann recebe Loomis em sua casa, e, num primeiro momento, naturalmente os dois trocam seus registros sobre a tragédia, dos respectivos pontos em que suas vidas estavam. Transcorrido algum tempo, durante uma sondagem pelos campos que circundam sua propriedade, Ann cruza com outro sobrevivente, Caleb, (Chris Pine) também levando-o para casa e oferecendo-lhe abrigo até que decida que destino seguirá.
Para além do cuidado do roteiro de Nissar Modi em não deixar muito claro em que momento se deu o desastre, a nebulosidade também recai sobre a psique dos personagens, em contraposição com a luminosidade por vezes ostensiva dos planos abertos do filme. Pouco se sabe sobre eles, e a informação a que temos acesso é contada na ausência: de certa maneira, cabe ao espectador um trabalho paleontológico. O mais flagrante destes exemplos se dá quando Ann encontra John Loomis bêbado, num velho posto de conveniência. O diálogo (bem, o monólogo) é uma pista sobre a importância de se aprender a refinar uma leitura sobre um Outro com tantos buracos na configuração pós-antropocênica que propõe Zobel.
O filme não oferece um protagonista, mas a julgar que, na ordem de surgimento dos personagens, a primeira é Ann, e sobretudo porque ela é a única (a última?) mulher entre dois homens, há um orbitamento concentrado em sua figura. Como dito, Ann é uma adolescente (fato não-explicitado no texto do filme, mas em sua sinopse e nas espinhas em seu rosto) cristã, o que a coloca diametralmente oposta a Loomis, um homem da ciência. No entanto, provavelmente por conta do contexto de destruição colocado, os dois assumem uma convivência pacífica e complementar, apesar de povoada de embates sutis e muito bem construídos nesse sentido, que não caem nas armadilhas do lugar-comum. A cena da discussão sobre a capela, além de provocadora, é brilhante no comedimento do pingue-pongue ideológico dos personagens. Essa cena, aliás, é o único momento do filme em que temos um crepúsculo, como se o próprio embate entre fé e razão estivesse experimentando, em si, um definitivo anoitecimento: não há mais a certeza opulenta de antes em nenhum dos lados.
No segundo terço da projeção, Zobel faz um jogo engenhoso, preservando - e ressaltando - resíduos que misturam o comportamento humano e animal, quando entra em cena o terceiro personagem, Caleb. Em uma única, e quase imperceptível fala, é explorado o fantasma do racismo experimentado por Loomis, que mesmo diante do fim da civilização, permanece rochoso enquanto herança histórica, e sensível ao afeto do homem negro ante à possibilidade de ser preterido a um homem branco (por uma mulher, que fique claro, também branca), como se todo o mal da doutrina racista fosse, de fato, o mal que Drummond chama o produto quintessente de um laboratório falido. De novo, resíduo: o que está por baixo, o que fica por último. Ainda, acontece aqui uma tensão de gênero que percorre a disputa testosterônica velada entre Loomis e Caleb, e Ann está no centro dela. Loomis, que chega antes de Caleb, assume uma postura machista em relação à Ann exclusivamente quando sente seu território ameaçado: antes disso, seu personagem havia estabelecido com a moça uma coexistência afetiva que, apesar das investidas de Ann, segundo seu julgamento ainda tinha o que amadurar. Aqui está a imbricação homem X animal: se por um lado é possível apontar o machismo de Loomis, (e o machismo está na humanidade, não na natureza) por outro, diante das condições extremas dadas, ele parece entrar num modo de defesa característico dos leões diante de um possível macho beta.
É sobre Caleb, inclusive, que pairam as maiores interrogações do filme. Ele é o personagem que menos tempo dura em exibição, o que nos fornece menos informação, e que acaba funcionando como o gatilho desestabilizador do trio, até o momento em que o filme se encerra com um final ambíguo. Seu personagem é mesmo calcado na ambiguidade: apesar da escassez de informações sobre Ann e John Loomis, o roteiro lhes reserva alguma confiabilidade (talvez por contar com o instinto de preservação da espécie do espectador, que irresistivelmente cogitará a união amorosa desse par), enquanto a Caleb destina uma luz densamente cinzenta. Em algumas críticas sobre o filme, a propriedade na qual Ann vive é associada a um Éden, quer pelo isolamento, quer pela quietude, quer pela beleza da natureza que estranhamente não parece ter sido afetada pela radiação - e, obviamente, pela presença de uma única mulher, que passa a dividir seu espaço com um homem. Isto posto, poderia a presença de Caleb ser a representação da serpente? É tentador que uma investigação sobre o filme ganhe a via do religioso. Todos os personagens têm nomes bíblicos. Ann, por exemplo, é uma variação de Anna, que na bíblia é uma profetiza que antevê o nascimento de, entre outros personagens, Jesus, Zacarias e... de João. (Qual é mesmo o primeiro nome de Loomis?) Ela ganha uma representação antiga na figura de uma mulher idosa, visionária, íntegra. Para além disso, é um nome que começa com a letra A, numa contraposição radical ao título original do próprio filme, Z for Zachariah (Z de Zacarias, que obviamente seria um fiasco em termos de recepção com uma tradução dessas). Zacarias, personagem também bíblico afinal. Aliás, há uma cena discreta que faz uma referência com o nome original do filme por meio de um paralelo.
Com uma bela curadoria musical, Heather McIntosh traz em seu órgão o tom preciso do luto, solidão, incerteza, e acima de tudo a sensação de esfacelamento que atravessam os personagens de Os Últimos na Terra, equilibrado com o som fanhoso e familiar de uma velha vitrola que tempera a desesperança com lampejos de uma serenidade menos pessimista. O longa guarda, ainda, uma surpresinha apetitosa para os fãs de Tarkovsky. Se em seu filme o russo adiciona uma cor sobrenatural à inocência, - ou à corrupção dela - Zobel tende a um pragmatismo desencantador em sua referência. Sua mensagem, então, parece mais clara, e porque não dizer, mais direta: o fim de tudo é apenas mais um inevitável dia como qualquer outro.