1. Dá mais trabalho andar erguida.
2. A cozinha da minha casa é uma área militar de controle alimentar regida por cinco espelhos.
3. Me dá vontade de fumar aquele quando ouço as sirenes.
4. Ontem esqueci que estava de dieta e comi pequenos punhados de chocolate na ponta de uma faca.
5. Meço a experiência dos pombos pelo tanto de cacarecos que carregam agrilhoados às suas patinhas imundas.
6. Esquizofrenia ou espíritos indiscretos?
7. A hora não existe.
8. É difícil organizar a matéria diante do excesso de sintetizadores nos shows das bandas mais modernas.
9.Também acho de bom tom considerar alguma caduquice do cânone.
10. Tudo o que eu boto na boca tem um gosto infantil.
11. Quero conhecer a constituição das coisas por isso as queimo.
12. Lavei até o prato no qual você não comeu.
13. É excelente à saúde da vista uma laranjeira bem carregada no quintal às quatro horas.
14. A extorsão acontece quando o poder dá cria.
15. A cabeça e o corpo padecem juntos.
16. Quero conhecer a constituição das coisas por isso as como.
17. O corpo tem muitas portas, mas mais numerosas são as chaves do lado de fora.
18. Tenho medo de ter razão demais e meus dentes passarem a revirar a terra.
19. Não se pisa no mar de sapatos, é falta de educação.
20. Não se pede licença às metáforas, é falta de educação.
21. Às vezes as pessoas mentem por prudência.
22. Não se pisa em ovos a menos que se seja Bataille.
23. Um dia tranquei a porta do meu quarto e fiquei batendo nela do lado de fora.
24. As chaves mesmo estão todas do lado de fora.
25. Domingo ela não vai, mas talvez vá segunda.
26. Andar erguida implica decivilizar placas inteiras de anos de timidez.
27. As avós não são as melhores pessoas do mundo, mas bem que tentam.
28. Fico alguns sorrisos mais rica quando chega carta tua.
29. No exercício da preguiça vai uma boa dose de prática.
30. As melhores poesias vão desvendar o metabolismo dos átomos.
31. O mofo no banheiro é uma gestação infinita.
32. A prudência é um sintoma de civilidade bem implantada.
33. A palavra é simples. Quem lhe complica é a tradução.
34. Mas para isso se usam saltos no tango, é mais que uma convenção, é realmente uma correção ortopédica.
35. Por hoje não escrevo mais nada. Nada.
36. Tudo permanentemente está. Nada também.
37. Os amantes compõem a espécie mais bélica do mundo.
38. Dia desses troquei todas as minhas chuvas pelas roupas secas no varal.
39. Todas as coisas geniais que eu pensei há dois minutos sem querer sumiram. A genialidade é isso: dura dois segundos, e passa.
40. Tudo que eu leio me emprenha um pouco.
41. É correto afirmar que também o tempo é sem pé nem cabeça.
42. Até para pedir silêncio é preciso da palavra.
43. Um dia todas as palavras fugiram de mim e passei quatro dias no CTI procurando-as desesperadamente calma.
44. Minha boca assa quando falo demais como deveriam todas.
45. Toda comissão parlamentar de inquérito é uma epopéia de mal gosto.
46. A palavra "olheiro" é muito interessante.
47. Ela está tomando banho do outro lado da calçada. Ou está tentando. Quando passa um homem ela tenta, sem sucesso, fingir que faz outra coisa. Ela não tem direito ao mistério. Nem direito ao vizinho que lhe espreita a nudez de longe, do outro lado do apartamento. Sem direito às coisas que se podem fazer no banheiro. Sua intimidade é desossada a cada deslize lento do sabonete que emplastra sua pele de bolhas secas e acinzentadas.
48. Desconfio da natureza escura de toda matéria que requer que eu lhe experimente pelo toque.
49. O cinto no entorno de um homem nu é disfuncional a menos que afivele-lhe o pescoço.
50. Já ouvi barulhos que fizeram espumas enormes.
51. Das maiores humildades que conheço consta aquela na qual a pessoa voluntariamente abandona o desejo de domínio da palavra. É geralmente assim que se lhe conquista.
52. Ainda encontro de onde vem esse cheiro.
53. O esqueleto carbonizado de um sofá é uma demonstração violenta de destruição.
54. A palavra é uma arma de criação em massa e de destruição também.
55. A palavra é simples. Quem lhe complica é a cabeça.
quarta-feira, 23 de maio de 2018
domingo, 13 de maio de 2018
Pra desfilar na Mangueira
Não sei de onde veio esse delírio. Sequer passei pela Tijuca, faz tempo não volto os olhos para o pombal à esquerda da saída da estação do Maracanã onde você morava em condição tão solteira: o colchão de casal gasto no chão, alguns livros guardados em caixotes de madeira, outros espalhados por um quarto no qual, na ausência de um armário, você organizava suas peças de roupa em uma arara de metal simples herdada da exposição de um amigo. Meias seriam um problema se você usasse. Falando nisso, percebi que você até tentava manter alguma ordem na disposição linear discreta dos sapatos no canto esquerdo do quarto, mas porque precisava trabalhar e ir à praia e ir a outros lugares que nunca saberei, o jeito desconectado como se encontravam parecia dar continuidade inanimada à tortura dos seus passos. Na pequena sala, uma bagunça sem fim e becks por toda parte. Também havia um aparelho de som, herança de outro amigo, você contou que quem tinha amigo não morria pagão. Daquele dia nesse apartamento, herdei o zumbido da final do Flamengo contra o Fluminense e dos 3 álbuns do Pixies que ouvimos em sequência (enquanto produzíamos, nós dois, nossa própria orquestra sob a franja do som ao redor.) Nada digno de nota, só fui tentando remontar algumas das horas mais recentes que passei contigo para entender de onde veio o delírio. Entender o delírio, veja só. Nunca disseram que seria simples a emoção do ponto de vista de quem nasce sob a lua em exílio. Gosto de pensar (ainda) que o horóscopo e Shakespeare explicam nosso desarranjo. Melhor dizendo, meu desarranjo contigo. Melhor dar descarga. O horóscopo tá na moda, por isso todos os dias vemos resumos das nossas vidas em colunas nos jornais que parecem prateleiras. E Shakespeare é moderno, usava brinco na orelha, como você. Vocês dois, culpados.
Eu vi você desfilando ao meu lado na ala dos compositores da Mangueira num carnaval em suspensão: não aconteceu e não acontecerá. Apesar de nunca ter demonstrado, não tenho dúvidas que você sabe sambar. Há mais malevolência nos atos que julga nossa vã filosofia, e fosse na preparação de um drink, de um prato ou de uma sinfonia, lá, cravejado, estava o samba que você deixava escapar. Você, no delírio, gingava, botando pra gemer essa voz extrema abafada no calor da cozinha industrial dos dias comuns -- há algo fundamental escondido no silêncio dos seus sonhos fervidos -- e quanto a mim, fui beneficiada pelo sangue. Sambar na avenida não é tão misterioso assim. A imagem é bonita, acredite sem muito critério: sapato bicolor, chapeuzinho vagabundo, calça branca e camisa verde-e-rosa, os dois na avenida, pra desfilar na Mangueira em um delírio enrolado em cetim barato. Talvez pra não azedar a beleza da imagem com hipóteses mais dramáticas, essa foi a única cena que o delírio me deu. Sem discussões anteriores sobre desfilar no Salgueiro, conforme talvez eu quisesse; sem discussões entre a escalação do Flamengo após a saída do Muralha e uma possível diferença de desempenho e resultado na Libertadores no caso de uma melhor direção do Vasco, sem discussões sobre o mistério -- esse sim, o maior deles -- do que acontece contigo entre março e novembro. Nós dois, sapato bicolor, chapeuzinho vagabundo, calça branca e camisa verde-e-rosa, os dois na avenida, pra desfilar na Mangueira em um delírio enrolado em cetim barato. No recuo, Shakespeare, enfim, nos espera num púlpito. A gente aceita.
Eu vi você desfilando ao meu lado na ala dos compositores da Mangueira num carnaval em suspensão: não aconteceu e não acontecerá. Apesar de nunca ter demonstrado, não tenho dúvidas que você sabe sambar. Há mais malevolência nos atos que julga nossa vã filosofia, e fosse na preparação de um drink, de um prato ou de uma sinfonia, lá, cravejado, estava o samba que você deixava escapar. Você, no delírio, gingava, botando pra gemer essa voz extrema abafada no calor da cozinha industrial dos dias comuns -- há algo fundamental escondido no silêncio dos seus sonhos fervidos -- e quanto a mim, fui beneficiada pelo sangue. Sambar na avenida não é tão misterioso assim. A imagem é bonita, acredite sem muito critério: sapato bicolor, chapeuzinho vagabundo, calça branca e camisa verde-e-rosa, os dois na avenida, pra desfilar na Mangueira em um delírio enrolado em cetim barato. Talvez pra não azedar a beleza da imagem com hipóteses mais dramáticas, essa foi a única cena que o delírio me deu. Sem discussões anteriores sobre desfilar no Salgueiro, conforme talvez eu quisesse; sem discussões entre a escalação do Flamengo após a saída do Muralha e uma possível diferença de desempenho e resultado na Libertadores no caso de uma melhor direção do Vasco, sem discussões sobre o mistério -- esse sim, o maior deles -- do que acontece contigo entre março e novembro. Nós dois, sapato bicolor, chapeuzinho vagabundo, calça branca e camisa verde-e-rosa, os dois na avenida, pra desfilar na Mangueira em um delírio enrolado em cetim barato. No recuo, Shakespeare, enfim, nos espera num púlpito. A gente aceita.
quarta-feira, 9 de maio de 2018
Sei lá, essa afirmação metafísica
A associação instintiva que fazemos entre as palavras velam filosofias secretas sob a desatenção, ou sob a urgência da comunicação, naturalmente. Aqui, valho-me de um desses pequenos brilhantes sob a poeira da funcionalidade da linguagem para demonstrar o que digo: a expressão 'sei lá'.
Sei lá, essa afirmação metafísica em si, e também metatemporal por supuesto. É uma das mais corriqueiras expressões em português, transitando tranquila entre todos os estratos sociais. Qualquer brasileiro ou brasileira conhece seu contexto e uso, mas rompo com o vício pragmático para dar vazão a uma despretensiosa divagação.
Sua noção registra, no presente, uma espécie de consciência sobre uma razão ainda desconhecida por nós que, para isenção inconsciente da ignorância, lançamos mão. Assim, dizer "sei lá" não é o mesmo que dizer "não sei": enquanto este afirma a negação do conhecimento, o outro de certo modo o adia, não dando o braço a torcer. Também é diferente o uso de "vou saber (lá)" em relação a "sei lá", a começar pelo fato de que a primeira se trata de uma expressão com posição e contexto claros, também reconhecíveis por todos os falantes de língua portuguesa. Desmerecidamente, o contexto no qual se aplica "sei lá" pode vir imbuído em algum desdém, o que pode (quem sabe?), refletir nosso incômodo com nosso presente estado de ignorância e inveja do tempo em que sabemos. Com relação ao advérbio locativo, o "lá", o palpite é de que sempre seja uma referência ao futuro, e não ao passado, como sua abertura semântica pode nos levar a considerar. Porque, se sabemos de alguma coisa, usaremos esse conhecimento na resolução de algum problema -- essa é uma das funções da experiência -- e o que contrapõe o uso entre "sabia lá" e "sei lá". Por este motivo quando, diante de um problema, respondemos "sei lá", estamos dizendo que a resposta está no futuro, e que nós já a conhecemos. Uma coisa meio A chegada, filme de Denis Villeneuve.
"Sei lá" é saber em outro tempo, e o reconhecimento de que sabemos disto agora, o que me provoca e me convida a uma revisão na linearidade do tempo. A literatura científica é prolífica quanto a possibilidades de viagens transtemporais, mas não há notícia, até o momento, de sua factibilidade. Avanços científicos podem provocar grandes mudanças na língua, mas o balé semântico que existe nela -- e seu crescimento exponencial -- é suficiente para gerar constrangimento à mais avançada das ciências.
É algo injusto que as palavras sejam surdas para si mesmas ao mesmo tempo em que podem produzir tanta coisa de modo inerente. Me perco pensando num velho cantor de blues surdo-mudo a mendigar por centavos enquanto desencrava, do silêncio, as mais belas canções; ele mesmo não podendo ouvir os próprios acordes não que aprendera a tocar, mas que (como se fosse possível) sempre soubera.
Sei lá, essa afirmação metafísica em si, e também metatemporal por supuesto. É uma das mais corriqueiras expressões em português, transitando tranquila entre todos os estratos sociais. Qualquer brasileiro ou brasileira conhece seu contexto e uso, mas rompo com o vício pragmático para dar vazão a uma despretensiosa divagação.
Sua noção registra, no presente, uma espécie de consciência sobre uma razão ainda desconhecida por nós que, para isenção inconsciente da ignorância, lançamos mão. Assim, dizer "sei lá" não é o mesmo que dizer "não sei": enquanto este afirma a negação do conhecimento, o outro de certo modo o adia, não dando o braço a torcer. Também é diferente o uso de "vou saber (lá)" em relação a "sei lá", a começar pelo fato de que a primeira se trata de uma expressão com posição e contexto claros, também reconhecíveis por todos os falantes de língua portuguesa. Desmerecidamente, o contexto no qual se aplica "sei lá" pode vir imbuído em algum desdém, o que pode (quem sabe?), refletir nosso incômodo com nosso presente estado de ignorância e inveja do tempo em que sabemos. Com relação ao advérbio locativo, o "lá", o palpite é de que sempre seja uma referência ao futuro, e não ao passado, como sua abertura semântica pode nos levar a considerar. Porque, se sabemos de alguma coisa, usaremos esse conhecimento na resolução de algum problema -- essa é uma das funções da experiência -- e o que contrapõe o uso entre "sabia lá" e "sei lá". Por este motivo quando, diante de um problema, respondemos "sei lá", estamos dizendo que a resposta está no futuro, e que nós já a conhecemos. Uma coisa meio A chegada, filme de Denis Villeneuve.
"Sei lá" é saber em outro tempo, e o reconhecimento de que sabemos disto agora, o que me provoca e me convida a uma revisão na linearidade do tempo. A literatura científica é prolífica quanto a possibilidades de viagens transtemporais, mas não há notícia, até o momento, de sua factibilidade. Avanços científicos podem provocar grandes mudanças na língua, mas o balé semântico que existe nela -- e seu crescimento exponencial -- é suficiente para gerar constrangimento à mais avançada das ciências.
É algo injusto que as palavras sejam surdas para si mesmas ao mesmo tempo em que podem produzir tanta coisa de modo inerente. Me perco pensando num velho cantor de blues surdo-mudo a mendigar por centavos enquanto desencrava, do silêncio, as mais belas canções; ele mesmo não podendo ouvir os próprios acordes não que aprendera a tocar, mas que (como se fosse possível) sempre soubera.
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