quarta-feira, 30 de outubro de 2024
"Viva os maluco"
Nem todos eram como Grandão. Aliás, eram grandes as variações dos tipos. Alguns eram como o Homem da Cueca, que andava por ali também. Todos conheciam a história do Homem da Cueca. Enjeitado às portas da paróquia local, cresceu num abrigo para menores numa comunidade próxima a uma escola de samba. Tinha um parente, que todos pensavam tio, que às vezes o visitava, até que um dia o homem não voltou mais, nem nada se soube dele. Primeiro o Homem da Cueca se chamava Ronderson, mas lá pela adolescência deu pra perambular pela cidade apenas usando uma regata que lhe cobria apenas o tronco estranhamente desproporcional à bunda magra e às longas e finas pernas que o seguiam na vertical, e que ficavam à mostra, resultando no apelido pelo qual ficara conhecido. Uma doença rara e mal curada (diziam) ainda na infância, deformara seu rosto, o que o transformava numa alegoria viva, especialmente se se somasse a isso o inalterável sorriso de quem jamais experimentou, de maneira consciente, o escárnio social do qual era objeto. O Homem da Cueca era distraído por qualquer movimento diante dos olhos, e por isso, certa vez, sofrera um atropelamento que o deixara permanentemente manco. Ainda é possível vê-lo vagando por aí, os olhos vazios sobre o sorriso enigmático que não sorri sobre nada em especial.
Mas diferente do Homem da Cueca e de Grandão, criaturas silenciosas em seu passar, havia as que contrastavam pelo ruído. O que era o caso de Medusa. O segredo era um só: nunca, em hipótese alguma, fazer contato visual.
Como de costume, ninguém sabia de onde tinha surgido, mas deu pra circular pelas ruas no entorno da praça do skate há coisa de um ano, ou dois. Degon Barriga, um cachaceiro que vivia num bar por lá - e que só não era muito diferente deles por ter onde morar - logo chamou aquela mulher estranha e de cabelos sempre desalinhados de Medusa. E o apelido pegou rápido, até porque a pobre nem nome tinha, ou ninguém sabia, ou queria perguntar. Passar por ela e olhá-la nos olhos era considerar que um avanço era uma possibilidade. Uma vez atacou a filha do pastor Eudério, que se aproximou dela pra rezar pela sua alma, destruindo sua bíblia em mil pedaços e puxando seu cabelo. A garota não precisou gritar por socorro por muito tempo: os homens que estavam no bar e viram o ataque foram correndo apartar Medusa da menina que, assustada, presenciou, com pena - apesar de um ferimento que Medusa lhe causara à unha na cabeça - a surra que lhe deram os homens quando a cercaram. Assim, Medusa era geralmente vista de longe, e os pivetes mais ousados que lhe provocavam chamando-a pelo apelido ser serem vistos por ela, o faziam por trás de muros, árvores, carros, pilastras. Procurando a origem das vozes, ao virar-se de um lado para o outro, era como se Medusa estivesse lutando contra uma horda de fantasmas germinados na própria mente.
No que dependesse das pessoas curiosas e ordinárias daquele lugar, Medusa tinha até marido. Não era Grandão, nem era o Homem da Cueca, mas o último tipo que compunha aquela memorável tropa: Binha Caranguejo.
Fabiano era seu nome, e isso era sabido porque, ao contrário dos demais, a família de Binha Caranguejo era conhecida por lá. Tinha 36 anos, e era o irmão mais novo de Roberto, o Betobatuca, que tinha um grupo de pagode e a fama de ser um cara violento, especialmente com as mulheres. Todo mundo sabia que Binha tinha sido, há muitos anos, vítima da violência fraterna, e que fora provavelmente por causa dela que tinha caído nas ruas. Quando adolescente, Fabiano começou a fumar maconha, aqui e ali, escondido, até ir perdendo a vergonha. Ciente disso, Roberto, após uma briga doméstica bem feia com o irmão por outro motivo, fez da maconha o estopim pra uma atitude extrema, e um dia, enquanto Fabiano dormia, foi surpreendido com um banho de óleo fervendo em sua cama. Nada aconteceu com Roberto, que ainda era menor de idade. Alguns anos depois, começou a tocar em grupos de pagode locais, tocava bem, ganhou certa fama, e a história acabou sendo esquecida. Já Fabiano ficou desfigurado após o ataque e, sem suporte familiar, acabou de vez nas ruas, desenvolvendo esquizofrenia e virando, então, Binha Caranguejo. Alvo de escárnio constante, tanto quanto Medusa, para Binha havia até uma música, que quando cantada, o enfurecia: "Eu vou tacar uma pedra/ e vou chamar o Cacau/ meu nome é Binha Caranguejo/ E eu não sou normal". Carlos Bigflipo, o Cacau dos versos cruéis, era a única pessoa que intercedia por Binha, um skatista que dele se apiedava e defendia quando as gozações começavam. Por ele, a seu modo, Binha manifestava afeição. Outra encarnação, no entanto, encabulava Binha, justamente a que o colocava como par romântico de Medusa. Sorrindo sem jeito e sem os dois dentes frontais, a impressão era de que ele identificava alguma espécie de elogio ali.
Binha morava em um barraco no fim da rua 8, atrás da igreja, que um dia, virou notícia do jornal do bairro por ter amanhecido incinerado com ele dentro. Todos os olhos se voltaram para Betobatuca, reacendendo o antigo desentendimento entre ele e o irmão, sendo logo desestimulados pelo fato do músico estar em turnê em outro estado com seu grupo de pagode. Betobatuca, aliás, só viria a saber do ocorrido com o irmão uma semana depois, e segundo comentários, não manifestou reação alguma. Apesar de chamado para depor, novamente nada lhe aconteceria, voltando a viver sua vida normalmente, e até aparecer em um programa de televisão. O fogo que consumiu o barraco gravou no muro uma sombra escura em indefinido formato de coisa ruim, e o crime contra aquela pobre criatura sucumbiria na memória popular não fosse uma pichação, feita com tinta branca, onde se lia "VIVA OS MALUCO", que apareceu por lá algum tempo depois.
Conspiração subterrânea
Nuno acorda com os feixes invasivos do sol disputando sua pele debaixo da marquise. É mais um dia, ele pensa, e seu estômago começa a trabalhar nessa intenção. Tá calor, ele sente o próprio cheiro. Precisa ir, precisa andar, hoje tem umas pendências pra resolver e na verdade não sabe como. Tudo o que ele pensa é de que maneira pode arrumar o que comer naquele primeiro momento. É mais um dia, Nuno odeia pedir e odeia roubar, mas realmente não tem ideia de como comer alguma coisa possível sem partir de uma das duas opções. É enxotado com os olhos de duas padarias nas quais tenta abordagem, e mais tarde, com recusas formalmente verbais. O primeiro, um branco com cara de otário falando inglês. A segunda, uma patricinha dessas de cabelo loiro e pele queimada, com muitas tatuagens, de óculos escuro, falando no celular. 'Esse celular salvaria pelo menos um mês de comida e parada', ele pensou. No momento em que ela deixou a padaria, rodou na Cinelândia que nem viu.
Quando saiu no Daily Mirror que uma espécie de anfíbio havia sido descoberta por uma equipe de pesquisadores ingleses baseada no Pará, Gary já sabia, de ouvir por alto, que teria que estar lá. Não só porque dois dos pesquisadores eram seus amigos, mas porque seria a oportunidade perfeita para, finalmente, visitar o Brasil. Se a coisa toda já tinha ido pro Daily Mirror, já tava rodando o mundo e cedo ou tarde toda a área estaria infestada de mais pesquisadores - o que, por si só, representaria um risco à própria espécie recém-descoberta. O anonimato é a sorte curta das espécies ainda não-catalogadas. Só os peixes abissais dentro da escuridão eterna e os microorganismos nos cumes dos montes gelados têm alguma possibilidade de sobrevivência. Contudo, o caso daquela espécie era diferente, dividindo opiniões entre os pesquisadores. Uma coisa era certa: não se tratava de uma espécie antiga, mas muito recente, estranhamente recente, de modo que parte deles a qualificaram como a primeira espécie do Antropoceno. Um apêndice longo e rugoso nas costas do pequeno anfíbio, assim como o aumento de suas patas, seria uma degeneração na constituição da espécie, e mesmo seu sistema respiratório não era completamente semelhante ao dos anfíbios regulares, não sendo uma evolução, mas o que corroborava, de fato, o surgimento de uma nova espécie. Tudo indicava que a nova espécie era fruto direto da mudança do ecossistema local devido à ação do homem, especialmente durante as prospecções mineratórias nos anos 80. Aquilo iria suscitar uma infinidade de discussões em todas as áreas. Um reboliço científico que Gary precisava ver de perto.
Os padrões da calçada orientavam os passos leves e bem-coordenados de Giovana, que, por algum momento mais demorado de atenção, poderia ser vista dançando discretamente sobre eles. O balé entrara na sua vida aos cinco anos e lhe deixara memória, postura e joanetes. Era boa o suficiente para vislumbrar uma carreira como professora. Mas preferia a crueza de sua dança, e até os eventuais erros de suas passadas, a instruir alguém. Uma música nos seus fones de ouvido dizia, noutra língua, que tinha muitos problemas na sua cabeça, enquanto conferia no celular o agendamento da terapia, também bagunçado pelo novo horário do balé. Precisava comprar ração pro gato, porque o gato comia melhor que ela. Precisava terminar de escrever dois artigos e precisava terminar um namoro. Precisava de muitas coisas enquanto andava pela cidade enganando a própria pressa, com os olhos fixos nos padrões da calçada e suas pedras portuguesas.
O conselho dos pesquisadores iria se reunir no Rio de Janeiro ao final da primeira parte das pesquisas para discutir a coleta dos resultados parciais. Era essa a informação que Gary havia recebido por e-mail de Timothy, que já estava no Pará. Por hora iria observar o desenrolar dos acontecimentos de casa, mas não gostaria de chegar lá quando toda a junta de cientistas já tivesse reclamado o local pra si, mas não gostaria de ter que adiantar tanto sua ida. Gostava de pensar que a falta de adaptação dos seus corpos estrangeiros naquela terra seria difícil, o que os expulsaria antes, por enfado, e achava engraçado, até. Um monte de cientistas juntos tem sempre muita razão. Gary era cientista também, e sabia disso. Mas preferia o riso, apesar da ansiedade. Também tinha suas questões. O que seria quando chegasse por lá, e desse com aquele campo montado de pesquisadores de todos os lugares? Pensava na espécie nova como um novo elo, not a missing one, but a found.
Ondas brancas e ensebadas na fronha do travesseiro, cabelos em todas as direções. O peito palpitando forte num trote reemulando o sonho, era Giovana despertando do pesadelo que tivera com uma tropa de cavalos varando violentamente um campo aberto, enquanto ela dançava, só, sobre uma pequena plataforma de madeira. Trouxe a cabeça a noventa graus do corpo, num impulso rápido, esparramando as pernas na outra ponta do sofá em que cochilava. Virou devagar o pescoço de um lado, do outro não conseguiu, torcicolo. Revirou os olhos de incômodo, levantou; no espelho do banheiro, discretas olheiras sobre sua pele negra.
Com esse calor do caralho vai cair mó torozão, Nuno se vira para Ney, um amigo, e diz com a voz preocupada. Tu já sabe pra onde vai se arranjar, Ney? Ney dizia que havia um abrigo perto da Praça Tiradentes pra quando chovesse assim, da forma que se estava ameaçando chover. Nuno ficou pensando na chuva antes dela cair, em como o céu sempre parecia tão escuro em plena luz do dia momentos antes de um temporal, em como sempre pensava na chuva como alguma coisa que aliviava o céu engasgado. Ficava pensando se existia algum deus de verdade se escondendo atrás das nuvens, até das mais escuras. Tu acredita em deus, Ney? Ney acredita em deus ao limite de duvidar da sanidade do amigo pela pergunta em si. Já Nuno não tem tanta certeza. Quando era criança havia uma avó que fazia bolo quentinho, quando dava, pra comer com sessão da tarde. Aquilo era deus. Nuno sabia de pouca coisa, mas entendia muitas, e das poucas coisas que sabia era que, às vezes, entender era mais importante. Se não tivesse aprendido isso, a essa altura já seria um homem morto, porque a rua cobra dos desatentos que aprendam cem vezes mais rápido que as pessoas que têm um teto. Todo esse arranjo doido de pensamentos se desfez ao toque grosso e frio do primeiro pingo de chuva, que anunciava que teriam de procurar logo um lugar pra ficar.
quinta-feira, 15 de agosto de 2024
É velho - e é isso o que fez meu!
Que se esclareça que estimação não é apenas aquela palavra que usamos quando nos referimos aos animais domésticos. Tenho, por exemplo, um short jeans da minha mais antiga e completa estimação, cujo preço não faço ideia (esqueci ao longo desses mais de 15 anos de convivência), mas cujo valor foi se agregando justamente com o passar do tempo. Não é um short em nada especial: como dito, é apenas um short jeans curto; nem é de nenhuma grande grife, mas de uma loja de departamentos de qualidade duvidosa. Já passou por pelo menos um ajuste na cintura, e graças à minha estimação por ele e à minha capacidade de equilibrar o peso, continua a me vestir até o presente dia. Ao longo de nossa trajetória, o shortinho encontrou detratores: um ex-namorado ciumento já ameaçou nossa relação (e esta pode ser uma pista sobre seu status de ex, posto que o short, este sim, continua em minha vida); e também minha mãe, que não acha seu comprimento apropriado (o que é ótimo, afinal, assim ela não pode usá-lo). E a quantos lugares fui, quantas pessoas conheci, quantas fotos já tirei com esse short específico. Sim, houve até um outro, que em anos mais recentes ameaçou seu posto, mas em uma certa situação foi avariado de maneira aparentemente irreversível. O que conheço é a permanência do shortinho jeans sobre as circunstâncias, o que por si só já lhe insufla certo ânimo fantástico, um ar aventureiro.
Me voltei para o tal short porque andei pensando no conforto que só as peças que já conhecem tão bem o formato do nosso corpo nos dão. Moro no Rio de Janeiro, e por aqui, mesmo o mais ameno dos invernos costuma fazer o carioca bater o queixo pela falta de costume, e o que pode haver de melhor, nessa ocasião, que aquele velho moletom no armário para ser nosso campeão nessa guerra térmica? Só uma peça que já conhece os segredos das nossas dobras, pele e caimento nos defende adequadamente não só nessa, mas também em situações que requerem coragem para encarar o não navegado mar cheio de criaturas extraordinárias de um primeiro encontro, por exemplo. Ousadia e destemor são necessários se nos propomos a desbravar um caminho diferente, mas sem segurança e um mínimo de conforto e provisão, é certo que não se vai muito longe.
Essa sequer é uma percepção isolada, ou mesmo inovadora. Há alguns bons séculos, o maior dos frugais já dizia que reis e rainhas que usavam uma roupa apenas uma vez, apesar de confeccionadas pelos mais talentosos costureiros, não poderiam experimentar o conforto de uma peça que realmente aderia, por uso, às linhas do corpo. Que as nossas roupas do dia-a-dia se assimilam a nós, assim recebendo a marca de quem as usa, até que decidamos, um belo dia, pô-las de lado. O pensador em questão ainda recomendava cuidado com as empreitadas que exigiam roupas novas ao invés de um novo Eu para os ditos eventos. Imagina que revolucionário se fôssemos para um encontro com um possível interesse afetivo não com uma roupa nova, mas com uma cabeça nova? Esse é o conselho, válido até hoje, de ninguém menos que o velho Thoreau, que valorizava mais o simbólico de um retalho em uma roupa velha à falta de personalidade em uma roupa nova. Quantos vestidos você já deixou de usar por pequenos furinhos aqui ou ali; quantas peças de roupa você já aposentou porque a vitrine de hoje insiste em dizer que elas ficaram velhas? Se pensarmos nisso, entra um detalhe importante.
A frugalidade thoreauriana ainda, e principalmente hoje, tem muito a nos ensinar sobre consumo, acabando por se revelar uma resposta involuntariamente anticapitalista. O que pode ser mais ameaçador ao mercado consumidor, de qualquer segmento, que um cliente satisfeito? Aquele que, por entender que tem o que precisa, não é atingido pela sedução barata do supérfluo? Assim colocada, apesar de parecer um tanto lógica e algo simplista, é evidente que esta não é a solução mais simples de pôr em prática, justamente por demandar uma educação realmente filosófica em relação à atitude humana, sua postura e seu status em sociedade. Não é à toa que, enquanto discurso, o upcycling tem enorme popularidade na comunidade da moda, e ainda mais surpreendentemente nos círculos de brechós por parecer uma alternativa moderna e descolada, mas quando se trata de vivê-lo filosoficamente, tem-se aí um esvaziamento total justamente porque sua implicação direta é o estacionamento da esteira capital que movimenta estes mercados. O hoje maior fast fashion online do mundo, a Shein, juntamente com a Temu, tem seu consumo baseado, sobretudo, no tédio - o que, por si só, nos devolve à uma perspectiva que deveria olhar mais filosoficamente para este tipo de consumo. Tem quem evite olhar para o político nas coisas, mas imagine só se a gente considerasse, aqui, a memorabilia soviética, não é?
Infelizmente - ou não, também - mais razão tem o Marcelo Jeneci, quando diz que a gente é feito pra acabar, e que isso nunca vai ter fim. Se isso é verdade sobre o humano e sua formidável capacidade de criar, que dirá do nosso vestuário. Meu short jeans, por exemplo, tem um franco rasgo na nádega esquerda, e um que está se formando na direita, ambos por uso. Me deixa um pouco triste que sua vida útil esteja possivelmente chegando ao fim, mas você é capaz de se lembrar da sensação justa de conclusão de uma peça de roupa que você precisa jogar fora por ter cumprido totalmente seu tempo de função? Ou mais comum tem sido observar, penduradas em seus cabides, roupas sensacionais nunca usadas envelhecendo sem uso? Quanto a mim, escolho a finitude dessa peça - na ilimitada janela de peripécias que já me deu.