quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Idílio

Lembro com uma clareza absurda da manhã do dia 02 de outubro de 2008. Eu caminhava, voltando para casa, depois de uma de uma rave de 15 horas em Santo Aleixo. Minha cartucheira, minhas mãos, meus calos dos pés. Eu queria repousar no gostoso sofá da sala da minha casa, curtir aquele friozinho debaixo dos lençóis e dormir como uma pedra. O pessoal que me deu carona tinha me deixado próximo à minha casa, e eu não via a hora de me jogar pesadamente na cama, ao encontro de um sono repositor. Eu estava mesmo muito cansada.
Fui avançando a velocidade do passo, para que pudesse chegar mais depressa em casa. Tive, por um momento, a sensação de que, quanto mais eu andava, mais esticavam a rua. Depois, tive a certeza. Franzi os olhos e as sobrancelhas. Não estava acreditando naquilo. As pessoas indo para o trabalho passavam por mim com uma velocidade humanamente impossível. Assustada com aquela sensação inédita, estranha e asquerosa, comecei a correr. Mas todo o meu esforço descomunal parecia irrisório diante do andar dos outros.
Comecei a sentir uma horrível vertigem, uma vontade de me esconder, de ir embora. Aquele lugar estava me dando um enfado inescapável e insuportável. Aquele lugar era uma rua, tão ordinária, pela qual eu estava habituada a andar. Por que?
Eis que de repente, naquele amálgama de cores, sons e ondas matinais, veio caminhando na minha direção uma menininha, acompanhada de uma morena magra e muito bonita. A menininha estava uniformizada, tinha joelhos enormes e pernas magras. Cabelos presos no alto, que caiam pelas costas lisíssimos. Não sei o por que, mas tive certeza absoluta de que aquela mulher que a acompanhava era sua mãe. Elas eram as únicas pessoas que vinham de encontro a mim e na mesma velocidade que eu. Conforme foram se aproximando, eu pude identificar na blusinha branca da menina um signo de um colégio de freiras, o Colégio Santo Antônio, o qual eu também havia estudado. Lutando contra a vertigem imensa que me dominava, pude ver que a menina e a mãe sorriam pra mim. No começo achei que fosse delírio, mas era sim: elas sorriam pra mim. Estranhamente, espontaneamente. Quando finalmente ficaram no mesmo plano que eu que pude perceber o que se tratava. Se era obra do demônio ou do absurdo, eu nunca terei a resposta; mas a única coisa que digo é que desse episódio eu jamais esquecerei.
Fitei a pequena. Costeletas. Minha mãe também me penteava daquela maneira.
_ Você é real?
_ Sim, você é?
_ Se eu sou real, é impossível que você seja!
_ Por que?
_ Porque nós somos... a mesma pessoa!
_ Não, moça, eu só tenho cinco anos...
_ E eu tenho vinte!
_ Não pode! Eu estou indo pra aula da tia Adriana agora!
_ E eu estou voltando de uma festa agora. Daqui a pouco vou pra faculdade.
_ Eu vou fazer faculdade?
_ Vai. Vai fazer letras.
_ Mas eu quero ser veterinária!
_ Eu sei, Ana Líbia. Mas você vai acabar fazendo letras.
_ Como você sabe o meu nome? Quem é você de verdade? Letras eu já faço, olha só!
Ela puxou de sua pastinha azul um caderno com letrinhas garranchosamente contornadas. Eu ri.
_ Não, não é isso o que você vai fazer na faculdade.
_ Como que você tem vinte anos e eu tenho cinco?
_ Eu não faço a mínima idéia.
_ Eu acho que você tá mentindo. Eu não pareço com você, nadinha. Você é gorda, eu sou magra, meu cabelo é maior, o seu é menor e é diferente. E eu nunca usaria essa roupa que você tá usando!
_ Você é engraçada. Como que está o Godofredo?
_ Como você sabe do Godofredo?
_ Não disse pra você que te conheço, que aliás, eu sou você?
_ O Godofredo fugiu.
_ Imaginei. E a Ceci, latindo muito?
_ Ela ainda tá dormindo perto da máquina de lavar, e chora toda noite.
Eu sentia meus reflexos voltando ao normal, mas a imagem da menininha começava a enfraquecer conforme eu começava a melhorar. Ela então segurou minha mão e disse:
_ Eu tenho que ir agora. Minha mãe não me deixa chegar atrasada.
_ Eu também, a minha está me esperando em casa.
_ Tchau... moça...
_ Tchau, Ana. Vai crescer...
Pouco depois, o mundo à parte que orbitava em torno de mim começou a desacelerar até atingir a minha velocidade. O dia fresco que nascia invadia a minha alma, num baque retrospectivo e introspectivo que eu nunca havia sentido antes. Era eu conversando comigo, quinze anos mais nova. Era possível? Sempre fui a raves, nunca usei drogas, e tive a visão mais lisérgica da minha vida, pura. Era obra de quem? De Deus, do diabo? Um dia fora do tempo?
A verdade é que eu não esquecerei disso nunca. Nunca mesmo. Quantas pessoas passam por um evento assim na vida? Carregarei, com um êxtase eternamente fresco, a sensação do meu "monólogo", por assim dizer. E tentarei transformar a pequena Ana que vi naquela manhã em tudo aquilo que ela deseja se tornar.

Um comentário:

ROQUE RASCUNHO disse...

suspeito que você foi genial aqui. na vida e no escrito. pqp. bueno! bjo!