Do meu quarto eu já consigo ouvi-lo. Ele vem subindo as escadas, trotando, ofegante, feliz; quebrando deliciosamente minha concentração nos meus intermináveis textos de teoria literária. Vou à cozinha e lá está ele. Desajeitado, a mãozinha de unhas roídas e encardidas apoiada na parede, a outra a remover a meia do pé. Ele olha pra mim, e me dá o melhor presente: seu sorriso sincero, que na ausência dos dois dentes frontais só se torna ainda mais angelical. Então eu o abraço. A camiseta de seu uniforme cheira a refrigerante e suor, mas um suor cheiroso, puro. Ele me envolve, e como num passe de mágica, me transmite toda aquela felicidade que me parece tão distante nas outras horas em que ele não está perto.
E então dispara a contar dos feitos na escola, comendo partes inteiras das palavras, - tão dispensáveis quando sua visibílissima empolgação e vitalidade embriagam o meu olhar - relatando suas descobertas, a pinta da tia, o sobrenome engraçado do amigo, a hora do recreio. De súbito, ele lembra do horário de seu desenho predileto, e corre da cozinha para a sala, se jogando no chão fresco, colando seus olhos atentos à tela como se fosse a programação mais incrível do mundo. Mesmo reprisado, o desenho ainda o faz cantar sua música-tema, vibrar com o sucesso do heroizinho, torcer contra o mau elemento.
Ele pede 'necau'. Há alguns bons anos ele já conhece a pronúncia certa, que é 'nescau', mas reitera esse pequeno tatibitate talvez até por (in)conscientemente saber que ainda mais graça e ternura isso lhe confere. Ele não come açúcares, mas os únicos que tolera são os presentes neste achocolatado, em refrigerantes, em sorvetes (morango, only) e - pasmem - no leite condensado. Alguma meia hora depois, hora do almoço, ele nutre o péssimo hábito de adorar aquelas pequenas e venenosas carnes congeladas - os mini chickens - e só come mediante a presença daquilo em meio ao arroz e feijão. A digestão é obviamente acompanhada de guaraná.
Logo após isso, ele espaçosamente pula na cama do quarto de minha mãe, e pede para que eu ligue o video-game. E o tempo parece se congelar durante o jogo, tão maravilhosa que é a minha tarde com ele. Para ele, eu sou uma heroína, tanto quanto a princesa Zelda. Eu sou muito esperta, ele nunca vai ser igual a mim, eu tenho a letra bonita, eu sei ensinar o dever, ele me ama de quinze em quinze minutos. A sua vozinha rouquenha e pueril inunda meus ouvidos de alegria, faça chuva ou sol. Quando chega a hora de voltar à sua casa, geralmente vai sob protestos - e secretamente, também o faço (quisera eu ser sua mãe). Chora, mas aos poucos vai calando quando eu digo que no dia seguinte, ele estará de volta para fazermos tudo de novo, inclusive chegar ao mestre do jogo, pesky Skullkid. Temos umas bobeiras só nossas. Inventamos uns nomes que só nós sabemos. Suas axilas ele chama de Peter Parkers. Seu pipi eu apelidei de 'biriguelson', o bumbum tranformou-se numa onomatopéia irreproduzível por qualquer outro estranho, entre outras, que citamos no banho por exemplo, e tudo é festa, nós dois desmaiando de rir.
E eu não tenho como agradecê-lo por isso. Nem nunca terei.
terça-feira, 31 de março de 2009
sábado, 28 de março de 2009
Unplugged
Vamos desligar.
Vamos desacelerar. Tire tudo da tomada. Impressora, microondas, modem, telefone, coração. Aperte o power do celular, do bipe, do IPOD. Vamos dar um tempo. Não, não se trata de nenhuma "hora do planeta". É a sua hora. Sua e de cada um.
Vamos respirar. Tudo desligado, o som da respiração é precioso, e pede atenção. Vamos voltar nosso olhar pra nós mesmos, recortando mentalmente tudo aquilo que realmente é importante e separando da cinza impureza mecanicista. Ora esguardai.
Fechemos os olhos traguemos fundo o ar que, com um pouco de imaginação e positivismo, convertemos em puro oxigênio. Fechemos os olhos, fechemos mesmo. Olhos abertos são como tomadas de alta voltagem, conectoras do mundo externo que, de tanta informação, entontece. Descansemos. A ordem hoje é desligar. Vamos desligar.
Vamos entrar na água. Já que tudo está desligado, não há perigo. Primeiro, delicadamente e sem pressa nós inserimos as pontas dos dedos dos pés, para que cada nervo sinta o prazer que mora na água. Depois, os pêlos das pernas vão encontrando na sensação aquosa um beijo inédito. Mergulhe agora. Deixe que a água preencha suas narinas, seus cabelos, e tudo o que mais houver. Deixe. Permita.
Não se importe em desligar. É preciso desligar. A cabeça que trabalha sob muitos volts todo o tempo se desgasta muito rápido, muito fácil. Uma bateria é uma bateria. Uma pilha é uma pilha. O corpo não é uma pilha, mas se recarrega apenas em descanso. Não saia correndo. Não faz mal estar em ponto morto. Felicite-se por se dar essa oportunidade única, cado estúpida e individual de sentir-se. Sinta-se. Toque-se. Bombeie energia natural pelo seu corpo com a força do pensamento - a mais poderosa força que há.
Vamos desligar. A tomada tem pouco mais de um centenário, e viveu-se muito bem sem ela. Aliás, vale lembrar que foi imerso na escuridão que Galileu observou o heliocentrismo. Desligue a luz. No escuro, a gente desenha mundos imaginários incríveis. Não tenha medo do escuro. Medo do escuro é uma crença moderna feia, propaganda melhor de sua necessidade pela luz. A luz é boa, mas também cega. Enxergue pelas pontas dos dedos, com a boca, com o pulso. Vamos desligar.
Desligue absolutamente tudo. Desligue o ar-condicionado, o ventilador, o rádio, e principalmente a televisão. Se também for o caso, desligue o aparelho. O aparelho só está adiando o inevitável, aliás, o que já era para ter acontecido. Se você ama, você deixa ir. Dê a liberdade a quem se ama. Desligue. Desligue totalmente.
A intensidade não está na eletricidade. A eletricidade é sim, necessária para muitas coisas, mas permita-se alguns minutos de sua total abstinência, todos os dias, se conseguir. Afinal, qual condutor é maior que a vida?
Vamos desacelerar. Tire tudo da tomada. Impressora, microondas, modem, telefone, coração. Aperte o power do celular, do bipe, do IPOD. Vamos dar um tempo. Não, não se trata de nenhuma "hora do planeta". É a sua hora. Sua e de cada um.
Vamos respirar. Tudo desligado, o som da respiração é precioso, e pede atenção. Vamos voltar nosso olhar pra nós mesmos, recortando mentalmente tudo aquilo que realmente é importante e separando da cinza impureza mecanicista. Ora esguardai.
Fechemos os olhos traguemos fundo o ar que, com um pouco de imaginação e positivismo, convertemos em puro oxigênio. Fechemos os olhos, fechemos mesmo. Olhos abertos são como tomadas de alta voltagem, conectoras do mundo externo que, de tanta informação, entontece. Descansemos. A ordem hoje é desligar. Vamos desligar.
Vamos entrar na água. Já que tudo está desligado, não há perigo. Primeiro, delicadamente e sem pressa nós inserimos as pontas dos dedos dos pés, para que cada nervo sinta o prazer que mora na água. Depois, os pêlos das pernas vão encontrando na sensação aquosa um beijo inédito. Mergulhe agora. Deixe que a água preencha suas narinas, seus cabelos, e tudo o que mais houver. Deixe. Permita.
Não se importe em desligar. É preciso desligar. A cabeça que trabalha sob muitos volts todo o tempo se desgasta muito rápido, muito fácil. Uma bateria é uma bateria. Uma pilha é uma pilha. O corpo não é uma pilha, mas se recarrega apenas em descanso. Não saia correndo. Não faz mal estar em ponto morto. Felicite-se por se dar essa oportunidade única, cado estúpida e individual de sentir-se. Sinta-se. Toque-se. Bombeie energia natural pelo seu corpo com a força do pensamento - a mais poderosa força que há.
Vamos desligar. A tomada tem pouco mais de um centenário, e viveu-se muito bem sem ela. Aliás, vale lembrar que foi imerso na escuridão que Galileu observou o heliocentrismo. Desligue a luz. No escuro, a gente desenha mundos imaginários incríveis. Não tenha medo do escuro. Medo do escuro é uma crença moderna feia, propaganda melhor de sua necessidade pela luz. A luz é boa, mas também cega. Enxergue pelas pontas dos dedos, com a boca, com o pulso. Vamos desligar.
Desligue absolutamente tudo. Desligue o ar-condicionado, o ventilador, o rádio, e principalmente a televisão. Se também for o caso, desligue o aparelho. O aparelho só está adiando o inevitável, aliás, o que já era para ter acontecido. Se você ama, você deixa ir. Dê a liberdade a quem se ama. Desligue. Desligue totalmente.
A intensidade não está na eletricidade. A eletricidade é sim, necessária para muitas coisas, mas permita-se alguns minutos de sua total abstinência, todos os dias, se conseguir. Afinal, qual condutor é maior que a vida?
quarta-feira, 25 de março de 2009
Adoráveis excêntricos
Segredinho aqui: adoro excêntricos. Diferente dos "esquisitões" que eu já citei, uns vinte posts atrás, esses querem holofotes. Enquanto os weirdos estão sempre cortando pela tangente, com o olhar desconfiado e o rabo entre as pernas, os excêntricos gostam de puxar todo tipo de olhar para si mesmos, por arbitrário que pareça isso em relação à própria palavra. Excêntricos são bacanas. Muito constantemente, alvos de gozação e ovação. Acontece que esse tip(ã)o nunca passa despercebido, e, reitero, faz questão justamente de não passar. Aliás, o não-reconhecimento, no caso deles, beira um ultraje.
Agora, leitor, um exercício de memória. Pense em quantos excêntricos você se lembra, porque os considera excêntricos e se tem alguma coisa contra eles. É provável que você se lembre de três, ou cinco (dependendo do universo cultural no qual você está inserido, esse número pode se elevar bastante). E contra? Bom, eu tenho quase certeza que não. Que você pode achar, no máximo, que eles têm uma desesperada vontade de aparecer no seio do olhar-comum.
Boa parte dos excêntricos têm um fundamento - and a good one - para ser assim. Para ter a certeza do que digo, pode procurar em suas biografias. Sua crônica insatisdação com o mundo é o berço de todas as outras razões. Eu tenho a idéia fixa de que quem nasce excêntrico morre excêntrico. É uma marca indissociável, que não se muda de acordo com profissão, nível social, escolha política, nada. É um carma inescapável, que desenha em torno da pessoa um indicativo para o estranho, para o atrativo. Sinceramente? Nada mais interessante.
Você pode achar a Elke Maravilha (sou fã confessa dela!) um monstro andrógino e mutante; o Marilyn Manson um e.t com fortes tendências a bizarrices sexuais explícitas, a Diablo Cody uma... ah, parei de definições. Afinal, por ser excêntrico, o próprio excêntrico não cabe em si.
Agora, leitor, um exercício de memória. Pense em quantos excêntricos você se lembra, porque os considera excêntricos e se tem alguma coisa contra eles. É provável que você se lembre de três, ou cinco (dependendo do universo cultural no qual você está inserido, esse número pode se elevar bastante). E contra? Bom, eu tenho quase certeza que não. Que você pode achar, no máximo, que eles têm uma desesperada vontade de aparecer no seio do olhar-comum.
Boa parte dos excêntricos têm um fundamento - and a good one - para ser assim. Para ter a certeza do que digo, pode procurar em suas biografias. Sua crônica insatisdação com o mundo é o berço de todas as outras razões. Eu tenho a idéia fixa de que quem nasce excêntrico morre excêntrico. É uma marca indissociável, que não se muda de acordo com profissão, nível social, escolha política, nada. É um carma inescapável, que desenha em torno da pessoa um indicativo para o estranho, para o atrativo. Sinceramente? Nada mais interessante.
Você pode achar a Elke Maravilha (sou fã confessa dela!) um monstro andrógino e mutante; o Marilyn Manson um e.t com fortes tendências a bizarrices sexuais explícitas, a Diablo Cody uma... ah, parei de definições. Afinal, por ser excêntrico, o próprio excêntrico não cabe em si.
Homem que é homem também chora
Há um tempinho vi, quase por acidente, um filme brilhante de um cineasta que tem meu apreço completo. Chama-se "Fale com ela", do incomparável Pedro Almodovar. Não, o filme não aborda centralmente sobre a dureza dos homens para com o choro, a despeito do título da postagem, nada tem com isso. Mas, indo pela tangente, toca sim no assunto.
Quase todas as culturas que conheço veêm negativamente o fato de um homem se manifestar de forma livre e emotiva, especialmente se este estiver chorando. Oras, que tabu gasto. Por que um homem não pode contemplar um espetáculo de teatro, de música, uma exposição de arte sem permitir-se o direito de se emocionar? "Ah, é um viadinho!" é o que certamente diria a voz da intolerância másculo-estúpida, essa que, de tão entremeada no senso-comum, passa despercebida muitas vezes até por quem tem por ela desprezo (meu caso). O estranhamento quanto à essa sensibilidade masculina incongênere, que pode parecer muito comum dentro do olhar incauto de um telespectador despreparado para o estilo almodovariano, gira justamente em torno dessa massificação quanto ao embrutecimento do homem enquanto macho. O machão que chega ao bar, que coça o saco, que cospe grosso. E a sociedade acha lindo, porque homem que é homem precisa estar mostrando que é homem a todo tempo. Porque os homens foram impedidos de chorar? Principalmente, porque um homem não pode simplesmente destoar o coro e chorar com muita facilidade, sem ser tomado irrefletida e obviamente como homossexual?
Sou um tanto suspeita pra falar sobre homens que choram, porque sou filha de um pai chorão pra caramba. Não que os homens que chorem mais sejam melhores que os demais, mas boa parte dos melhores homens que conheço não ficam nacarando seus choros, principalmente quando esses fluem espontâneos, livres, isentos de críticas de qualquer parte, desnudos de qualquer receio ou amarra.
Besteira é não expor o que se sente por uma mera formalidade estupidamente condensada.
Quase todas as culturas que conheço veêm negativamente o fato de um homem se manifestar de forma livre e emotiva, especialmente se este estiver chorando. Oras, que tabu gasto. Por que um homem não pode contemplar um espetáculo de teatro, de música, uma exposição de arte sem permitir-se o direito de se emocionar? "Ah, é um viadinho!" é o que certamente diria a voz da intolerância másculo-estúpida, essa que, de tão entremeada no senso-comum, passa despercebida muitas vezes até por quem tem por ela desprezo (meu caso). O estranhamento quanto à essa sensibilidade masculina incongênere, que pode parecer muito comum dentro do olhar incauto de um telespectador despreparado para o estilo almodovariano, gira justamente em torno dessa massificação quanto ao embrutecimento do homem enquanto macho. O machão que chega ao bar, que coça o saco, que cospe grosso. E a sociedade acha lindo, porque homem que é homem precisa estar mostrando que é homem a todo tempo. Porque os homens foram impedidos de chorar? Principalmente, porque um homem não pode simplesmente destoar o coro e chorar com muita facilidade, sem ser tomado irrefletida e obviamente como homossexual?
Sou um tanto suspeita pra falar sobre homens que choram, porque sou filha de um pai chorão pra caramba. Não que os homens que chorem mais sejam melhores que os demais, mas boa parte dos melhores homens que conheço não ficam nacarando seus choros, principalmente quando esses fluem espontâneos, livres, isentos de críticas de qualquer parte, desnudos de qualquer receio ou amarra.
Besteira é não expor o que se sente por uma mera formalidade estupidamente condensada.
sábado, 14 de março de 2009
Ata-me
As mãos quentes de Raoni tremiam sob o volante, discretamente. A noite estrelada que fazia não aplacava a sensação térmica de 13º na subida da serra. Do lado do carona, Lúcia acendia um cigarro - ela sabia que Raoni não gostava. Ela estava linda e clássica dentro daquele pulôver tão quente - quente como as palavras não ditas que jaziam entre sua garganta e dentes.
_ Pára de fumar, Lúcia, não posso abrir o vidro.
_ Preciso. Juro pra você que é só esse.
_ Porra, tu é f...
Lúcia sempre tendia à imperatividade sutil e Raoni, mesmo contrariado, aquiescia aos seus caprichos. Era uma sina, uma sina viciosa e renitente se arrastando ao longo daqueles dez anos. Por outro lado, Lúcia sentia um estímulo impossível pela indiferença de Raoni, desde a época do namoro no sofá da sala ao som de Moulin Rouge. Zodíaco. Fantasmas vermelhos de um passado presente. E que merda de vida eles empurravam - ela estava se divorciando de um casamento de 3 anos e havia tido uma filha; a noiva de Raoni havia morrido num acidente coisa de cinco anos.
De supetão, Raoni parou o carro num mirante da Serra. O firmamento, fantástico, todo vestido de negro e corpos celestes era coroado pelo ruído dos insetos e as luzes de Petrópolis, que ainda estavam distantes. Ele saiu, sentando-se no capô do carro. Lúcia acendeu outro cigarro, enquanto olhava para as costas de Raoni, tentando imaginar sua musculatura por debaixo de seu magro casaco. Ela gostava mais dele nu.
_ Bonito aqui, né? - Ela dizia ao se aproximar, eliminando fumaça pelas narinas.
_ É, não dá pra negar.
Fez-se um silêncio tortuante tanto quanto o frio cortante, por exatos dois minutos.
_ O que vai ser, Lúcia?
Ela esboçava um torpe sorriso de canto de rosto. Pelo que ele conhecia da linguagem do seu corpo, aquela expressão era característica de quando ela queria sexo.
_ Sei lá, Raoni. - pisava no cigarro _ ... essa é a nossa história, né? Essa é a troça que o destino fez da gente. Nós somos dois putos que nunca tiveram escolha, cê já parou pra pensar?
_ É... é foda. A gente aqui de novo. Um olhando pra cara do outro. Que graça vai ter a gente se comer dentro do carro igual dois adolescentes? A gente tá ficando velho pra isso, Lúcia. Você tem uma filha. E eu vô seguindo a minha reta...
_ Nunca te disse, Raoni, mas eu sinto muito pela Marcelle.
_ Talvez eu não a merecesse, talvez ela fosse boa demais.
_ Não fala uma porra dessa!
_ Então o quê? Do que que você sabe, Lúcia? Eu digo o que eu quiser, foda-se!
Uma pausa. Uma brisa salpicou os cabelos de Lúcia por seu rosto.
_ ... será que vai ser assim pra sempre, eu e você? Nunca juntos, nunca separados? dez anos, Raoni, dez anos! E que demônio de fogo é esse que não cede?
_ Não faço a mínima idéia, Lúcia. Parece que tá escrito, né?
_ Será que é maldição, será que é mandinga?
_ Acho que não. Trabalhos duram sete anos, se fosse assim, o nosso teria vencido há três.
_ Sei... - Lúcia sorri
_ Lúcia?...
_ O quê?
_ ... você... você me... ama?
_ Sim, como amigo. Como homem não, você já me deu muito trabalho com esse papo de amor. E você? Me ama?
_ Não. Eu gosto de transar contigo, só. Você foi a melhor. A merda é que eu sempre transpareci isso.
- Hum... vamo transar então? Por esse momento?
_ Pode ser. Que momento é esse, desde quando a gente tem 'momento' pra trepar?
_ São nossas bodas de sangue.
_ Pára de fumar, Lúcia, não posso abrir o vidro.
_ Preciso. Juro pra você que é só esse.
_ Porra, tu é f...
Lúcia sempre tendia à imperatividade sutil e Raoni, mesmo contrariado, aquiescia aos seus caprichos. Era uma sina, uma sina viciosa e renitente se arrastando ao longo daqueles dez anos. Por outro lado, Lúcia sentia um estímulo impossível pela indiferença de Raoni, desde a época do namoro no sofá da sala ao som de Moulin Rouge. Zodíaco. Fantasmas vermelhos de um passado presente. E que merda de vida eles empurravam - ela estava se divorciando de um casamento de 3 anos e havia tido uma filha; a noiva de Raoni havia morrido num acidente coisa de cinco anos.
De supetão, Raoni parou o carro num mirante da Serra. O firmamento, fantástico, todo vestido de negro e corpos celestes era coroado pelo ruído dos insetos e as luzes de Petrópolis, que ainda estavam distantes. Ele saiu, sentando-se no capô do carro. Lúcia acendeu outro cigarro, enquanto olhava para as costas de Raoni, tentando imaginar sua musculatura por debaixo de seu magro casaco. Ela gostava mais dele nu.
_ Bonito aqui, né? - Ela dizia ao se aproximar, eliminando fumaça pelas narinas.
_ É, não dá pra negar.
Fez-se um silêncio tortuante tanto quanto o frio cortante, por exatos dois minutos.
_ O que vai ser, Lúcia?
Ela esboçava um torpe sorriso de canto de rosto. Pelo que ele conhecia da linguagem do seu corpo, aquela expressão era característica de quando ela queria sexo.
_ Sei lá, Raoni. - pisava no cigarro _ ... essa é a nossa história, né? Essa é a troça que o destino fez da gente. Nós somos dois putos que nunca tiveram escolha, cê já parou pra pensar?
_ É... é foda. A gente aqui de novo. Um olhando pra cara do outro. Que graça vai ter a gente se comer dentro do carro igual dois adolescentes? A gente tá ficando velho pra isso, Lúcia. Você tem uma filha. E eu vô seguindo a minha reta...
_ Nunca te disse, Raoni, mas eu sinto muito pela Marcelle.
_ Talvez eu não a merecesse, talvez ela fosse boa demais.
_ Não fala uma porra dessa!
_ Então o quê? Do que que você sabe, Lúcia? Eu digo o que eu quiser, foda-se!
Uma pausa. Uma brisa salpicou os cabelos de Lúcia por seu rosto.
_ ... será que vai ser assim pra sempre, eu e você? Nunca juntos, nunca separados? dez anos, Raoni, dez anos! E que demônio de fogo é esse que não cede?
_ Não faço a mínima idéia, Lúcia. Parece que tá escrito, né?
_ Será que é maldição, será que é mandinga?
_ Acho que não. Trabalhos duram sete anos, se fosse assim, o nosso teria vencido há três.
_ Sei... - Lúcia sorri
_ Lúcia?...
_ O quê?
_ ... você... você me... ama?
_ Sim, como amigo. Como homem não, você já me deu muito trabalho com esse papo de amor. E você? Me ama?
_ Não. Eu gosto de transar contigo, só. Você foi a melhor. A merda é que eu sempre transpareci isso.
- Hum... vamo transar então? Por esse momento?
_ Pode ser. Que momento é esse, desde quando a gente tem 'momento' pra trepar?
_ São nossas bodas de sangue.
quinta-feira, 12 de março de 2009
Sociedade, necessidade
É consenso geral que a gente vive numa sociedade de merda, mesquinha e excludente. Aliás, onde quer que se instale, uma sociedade sempre desenvolverá uma pirâmide hierárquica, um código, um tudo que funcionará como engrenagens para que esta sociedade avance. Mas, apesar de todas as falhas inerentes ao sistema no qual estamos inseridos de cabeça, ainda somos da sociedade dependentes. Por que?
Há dias atrás, assisti a um filme chamado "Nell", com Liam Neeson e uma inimitável Jodie Foster no papel principal. Na ficção, Nell é uma mulher que se encontra sozinha após o falecimento da mãe, com o agravante de não conhecer o mundo por ter sido criada numa floresta bem distante da civilização. Entretanto, as coisas mudam com a chegada de dois cientistas que visam Nell como objeto de estudo. Num primeiro contato, a moça se revela assustada, reativa, e aparentemente apresentando um dialeto próprio, mas transposta a resistência inicial por parte de Nell, os cientistas constatam que a fala debilitada é um fruto direto da alfabetização que a mãe afásica lhe dera, e que o comportamento arredio e introspectivo é decorrente do pavor que sucitou do inédito contato com estranhos.
Nell é mentalmente debilitada? Não. Mas Nell desconhece leis, regras, música, cultura, chocolate. Ela poderia viver o resto de sua vida na floresta? Absolutamente, mas com a mesma probabilidade de desenvolver algum tipo de esquizofrenia futura.
A prontagonista da ficção é a prova definitiva da imprescindibilidade da sociedade. A sociedade, que liga as pessoas, abre pontes que enriquecem os seres humanos e ainda os alimenta espiritualmente. A sociedade é um vórtice ininterrupto de trocas de informação constantes. Sem esse conectivo, Nell foi totalmente desligada do mundo, sem amadurecer mentalmente como mulher. Queiramos ou não, a sociedade é uma necessidade; o antídoto e/ou justificativa para a loucura, inescapavelmente. Precisamos da sociedade para o escambo cultural, para o desenvolvimento, maturação, reprodução, formação de conceitos, de conduta. Do mesmo modo que moldamos uma comunidade a partir das nossas atitudes, somos concomitantemente por ela moldados, e é isto que amplia uma infindável cadeia de relações. Nossa Nell é um elemento esterelizado pelo isolamento, que desconhece os impactos felizes ou dolorosos embora conheça ambas felicidade e dor no que pôde aprender em sua própria vida - afinal, as emoções humanas fazem parte do inatismo do ser.
Apesar de toda a imundície na qual nossa sociedade está imersa, não há escapatória: ninguém vive fora dela. E não importa o quanto se tente fugir dessa condição; uma hora a necessidade nos devolverá à ela.
Há dias atrás, assisti a um filme chamado "Nell", com Liam Neeson e uma inimitável Jodie Foster no papel principal. Na ficção, Nell é uma mulher que se encontra sozinha após o falecimento da mãe, com o agravante de não conhecer o mundo por ter sido criada numa floresta bem distante da civilização. Entretanto, as coisas mudam com a chegada de dois cientistas que visam Nell como objeto de estudo. Num primeiro contato, a moça se revela assustada, reativa, e aparentemente apresentando um dialeto próprio, mas transposta a resistência inicial por parte de Nell, os cientistas constatam que a fala debilitada é um fruto direto da alfabetização que a mãe afásica lhe dera, e que o comportamento arredio e introspectivo é decorrente do pavor que sucitou do inédito contato com estranhos.
Nell é mentalmente debilitada? Não. Mas Nell desconhece leis, regras, música, cultura, chocolate. Ela poderia viver o resto de sua vida na floresta? Absolutamente, mas com a mesma probabilidade de desenvolver algum tipo de esquizofrenia futura.
A prontagonista da ficção é a prova definitiva da imprescindibilidade da sociedade. A sociedade, que liga as pessoas, abre pontes que enriquecem os seres humanos e ainda os alimenta espiritualmente. A sociedade é um vórtice ininterrupto de trocas de informação constantes. Sem esse conectivo, Nell foi totalmente desligada do mundo, sem amadurecer mentalmente como mulher. Queiramos ou não, a sociedade é uma necessidade; o antídoto e/ou justificativa para a loucura, inescapavelmente. Precisamos da sociedade para o escambo cultural, para o desenvolvimento, maturação, reprodução, formação de conceitos, de conduta. Do mesmo modo que moldamos uma comunidade a partir das nossas atitudes, somos concomitantemente por ela moldados, e é isto que amplia uma infindável cadeia de relações. Nossa Nell é um elemento esterelizado pelo isolamento, que desconhece os impactos felizes ou dolorosos embora conheça ambas felicidade e dor no que pôde aprender em sua própria vida - afinal, as emoções humanas fazem parte do inatismo do ser.
Apesar de toda a imundície na qual nossa sociedade está imersa, não há escapatória: ninguém vive fora dela. E não importa o quanto se tente fugir dessa condição; uma hora a necessidade nos devolverá à ela.
segunda-feira, 9 de março de 2009
O nome da coisa
É humano ter a coisa. Aliás, essa é uma condição inescapável. Antes de recebermos um nome, somos previamente classificados de acordo com a coisa. A coisa sempre vem antes de tudo. É, desde que mundo é mundo, um fator determinante. Alguns não aceitam as coisas que têm, mas esse é um aspecto que nem vem ao caso.
Afinal, que é a coisa? Mais importante que isso: como chamar a coisa?
O homem sempre se apresenta muito capcioso ao tratar disso, a ponto de parecer assim uma falta de intimidade com assunto ou uma tentativa vã de se construir uma redoma inquebrantável de falsa pudicícia sobre o mesmo. Tudo o que não é. Há um receio, um cuidado, como se o termo empregado para designar a coisa pudesse surtir um impacto sempre negativo ao pudor alheio. Sinceramente, não é esta postura pudica - tampouco despudorada - que você vai encontrar no que resta dessa postagem. Portanto, vista seus óculos puramente analíticos para ler o que virá.
Pra quê tanto tabu em relação ao nome do sexo? Me lembro, certa feita, que minha mãe me contou que perguntou à minha vó o que era "boceta" e ganhou um doído roxo que durou quase uma semana. Na infância, minha vagina assumiu várias identidades, de acordo com as pessoas, sempre de modo eufemista a fim de 'disfarçar' a função que ela viria a ter um dia. Para minha mãe, era pepeca (não sei o porquê, mas sempre odiei esse nome). Para minha tia, chuvinha (esse eu acho bem engraçado). Para minha avó, era perereca. Acredito que durante esse breve espaço de tempo em que o aparelho sexual da mulher é ainda tão inocente e virginal, existe uma aproximação da sonoridade com a consoante "P". Porém, depois que elas desabrocham, se cobrem de pêlos e viram indistintamente bocetas, há algo de chulo e mundano na associação sonora da letra "X" aos seus nomes. Afinal, até hoje desconheço uma menina de 7 anos possuidora de xoxota (esse nome aí é uó).
O mesmo acontece com o pênis. Na conversa onde esse post estava sendo fecundado, um amigo me confessou que por volta dos seus 8 anos, o dele era "pipico". Você, leitor, já deve estar familiarizado o bastante com os nominhos característicos que sucedem o "pipico" para eu me dar ao trabalho de citá-los. Acontece que na transição para a maturidade, (quicá culturalmente), existe um abrutalhamento para a nomenclatura do pau. Como se sua vigorosidade e conseqüente potência morassem nessas espécies de epítedos, a ponto de se tornarem palavrão na boca do povo, tamanha a grossura. O que há de tão monstruoso em "caralho"? A imundície na cabeça das pessoas é infinda.
Claro que sou desfavorabilíssima a conservar os nomes "fofos" dos órgãos sexuais depois da maturidade. É ilógico, doentio eu diria. Mas, com a mesma desfavorabilidade, critico o modo censor e sujo com os quais são vistas nossas partes íntimas, que, de tão bonitas e necessárias, pedem mais respeito aos contextos em que são deliberadamente inseridas. Palavrão é guerra, ódio, violência.
Já "piroca" eu considero bom demais.
Afinal, que é a coisa? Mais importante que isso: como chamar a coisa?
O homem sempre se apresenta muito capcioso ao tratar disso, a ponto de parecer assim uma falta de intimidade com assunto ou uma tentativa vã de se construir uma redoma inquebrantável de falsa pudicícia sobre o mesmo. Tudo o que não é. Há um receio, um cuidado, como se o termo empregado para designar a coisa pudesse surtir um impacto sempre negativo ao pudor alheio. Sinceramente, não é esta postura pudica - tampouco despudorada - que você vai encontrar no que resta dessa postagem. Portanto, vista seus óculos puramente analíticos para ler o que virá.
Pra quê tanto tabu em relação ao nome do sexo? Me lembro, certa feita, que minha mãe me contou que perguntou à minha vó o que era "boceta" e ganhou um doído roxo que durou quase uma semana. Na infância, minha vagina assumiu várias identidades, de acordo com as pessoas, sempre de modo eufemista a fim de 'disfarçar' a função que ela viria a ter um dia. Para minha mãe, era pepeca (não sei o porquê, mas sempre odiei esse nome). Para minha tia, chuvinha (esse eu acho bem engraçado). Para minha avó, era perereca. Acredito que durante esse breve espaço de tempo em que o aparelho sexual da mulher é ainda tão inocente e virginal, existe uma aproximação da sonoridade com a consoante "P". Porém, depois que elas desabrocham, se cobrem de pêlos e viram indistintamente bocetas, há algo de chulo e mundano na associação sonora da letra "X" aos seus nomes. Afinal, até hoje desconheço uma menina de 7 anos possuidora de xoxota (esse nome aí é uó).
O mesmo acontece com o pênis. Na conversa onde esse post estava sendo fecundado, um amigo me confessou que por volta dos seus 8 anos, o dele era "pipico". Você, leitor, já deve estar familiarizado o bastante com os nominhos característicos que sucedem o "pipico" para eu me dar ao trabalho de citá-los. Acontece que na transição para a maturidade, (quicá culturalmente), existe um abrutalhamento para a nomenclatura do pau. Como se sua vigorosidade e conseqüente potência morassem nessas espécies de epítedos, a ponto de se tornarem palavrão na boca do povo, tamanha a grossura. O que há de tão monstruoso em "caralho"? A imundície na cabeça das pessoas é infinda.
Claro que sou desfavorabilíssima a conservar os nomes "fofos" dos órgãos sexuais depois da maturidade. É ilógico, doentio eu diria. Mas, com a mesma desfavorabilidade, critico o modo censor e sujo com os quais são vistas nossas partes íntimas, que, de tão bonitas e necessárias, pedem mais respeito aos contextos em que são deliberadamente inseridas. Palavrão é guerra, ódio, violência.
Já "piroca" eu considero bom demais.
sexta-feira, 6 de março de 2009
Party people!
O sol já está se pondo... de novo? Eu nem vi o dia. O relógio marcará 8 horas daqui a duas, e o que fiz, senão escovar os dentes e jogar uma água na cara - para amenizar o efeito-panda do rímel dormido? Não que eu me orgulhe; não que eu me envergonhe. Mas faço parte duma tribo cuja vida ganha brilho sob a influência lunar.
E eu quero é festa. Quero dançar louca e ininterruptamente às batidas do samba, do funk, do trance, ou qualquer coisa que valha. Não tem jeito, essa força me domina e algo me diz que eu já nasci com ela. Acho a vida noturna bem mais interessante. Essa coisa toda, esse jogo de luzes belas, estratégicas, magnéticas.
Brado o lema "só vim pra dançar". Primeiramente porque namoro, e depois porque eu realmente acredito que a música é o verdadeiro epicentro, motor da noite. A música, combinada à dança (e outros elementos devidamente etílicos, why not?), embelezam de maneira tamanha que aqueles que se entregam às mesmas adquirem outra expressão, e são facilmente bombardeados por olhares cobiçosos em todas as direções. A dança é a impressão máxima do charme, esse aspecto bem físico e corporal com certa aura de misticidade.
Minha tribo usa óculos escuros na noite, para esconder a dilatação das suas pupilas. Maquiagens. Delírios por sobre a pele. Mas, se há algo que os party people fazem questão de exibir é o maroto sorriso, levemente embriagado, de quem desconhece o próprio fuso-horário.
E eu quero é festa. Quero dançar louca e ininterruptamente às batidas do samba, do funk, do trance, ou qualquer coisa que valha. Não tem jeito, essa força me domina e algo me diz que eu já nasci com ela. Acho a vida noturna bem mais interessante. Essa coisa toda, esse jogo de luzes belas, estratégicas, magnéticas.
Brado o lema "só vim pra dançar". Primeiramente porque namoro, e depois porque eu realmente acredito que a música é o verdadeiro epicentro, motor da noite. A música, combinada à dança (e outros elementos devidamente etílicos, why not?), embelezam de maneira tamanha que aqueles que se entregam às mesmas adquirem outra expressão, e são facilmente bombardeados por olhares cobiçosos em todas as direções. A dança é a impressão máxima do charme, esse aspecto bem físico e corporal com certa aura de misticidade.
Minha tribo usa óculos escuros na noite, para esconder a dilatação das suas pupilas. Maquiagens. Delírios por sobre a pele. Mas, se há algo que os party people fazem questão de exibir é o maroto sorriso, levemente embriagado, de quem desconhece o próprio fuso-horário.
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