Pensei em escrever sobre Michael. Mas o receio de cair em xerox de todos os editoriais que saíram a seu respeito ao redor do mundo me fizeram voltar atrás. Mas ainda queria escrever sobre ele. Então, numa conversa que estava tendo com um amigo, que também prestou uma elegia ao rei em seu blog, ele me disse, sabiamente, que a única forma de escrever sobre Michael era se utilizando da única fonte imiscível que temos ao nosso dispor: nós mesmos. Michael e nós. Eu, você, João, Maria, Alberto e todo mundo. Apesar de ser a mesma estrutura, a argumentação muda a partir do momento que varia de pessoa pra pessoa, porque, elementar, cada experiência é única.
Então é isso. Michael e eu.
Com todo o sucesso dele, eu vim a conhecê-lo, oficialmente, aos meus (aproximadamente) seis, sete anos de idade, com o clipe que entraria pra minha história: Remember the time. Ambientado no Egito antigo, contando com Eddie Murphy e a linda modelo negra Iman - que à época eu dizia repetidas vezes ser a cara de uma das minhas primas -, o clipe tinha o estilo jacksoniano, trazendo uma trama introdutória pararela à aparição de Michael. Eu me lembro perfeitamente da minha relação com aquele clipe. Era em cassete, eu sempre rebobinava. Adorava, desde a mini-trama à coreografia incrível orquestrada pelo maior dançarino do pop de todos os tempos.
Assim, Michael entrou na minha vida. Depois de um tempo, assisti a Thriller. E, como quase toda criança, fiquei chocada com aquilo, ainda mais por ser uma menina muito medrosa. E me apaixonei por Moonwalker. Como eu adorava "Smooth criminal"! Tudo o que se passava de Michael eu me prestava a assistir. Não era o que se possa chamar de uma fã inveterada, mas eu certamente nutria por ele grande admiração.
Eu cresci. E, do nada, voltando pra casa depois de mais um dia, vejo uma notícia que não processo. Michael é encontrado morto. Michael? Michael Jackson? Impossível! Como, se ele estava se programando pra turnê? Como, sendo ele quem é? Mas a morte, o único mal irremediável de Guel Arraes, não espera turnês, caprichos, lamentos, preces. A morte arrebata tudo, todos. E até Michael.
A causa específica da morte de Michael ainda é um mistério. Toda a mídia internacional noticiou como sendo uma parada cardíaca seguida de coma profundo. Será? Minha mãe sustenta, desde que se falou na morte de Michael - e eu estou de pleno acordo - que as circunstâncias que desencadearam a morte do Astro foi uma overdose de anti-depressivos, o que é bem cabível se observarmos o estilo de vida que Michael levava, desde o começo.
Mesmo sendo o artista pop mais bem sucedido de seu tempo, com cifras-recorde em vendas, o menino Michael era, como tantos outros artistas, mais um infeliz. Um homem frustrado por seus complexos, e na desesperada tentativa de ocultá-los, o que mais fez foi expor os mesmos. Michael jamais deixou a infância. Ela ficou guardada nele, e era externalizada em suas atitudes excêntricas. Daí todas as polêmicas envolvendo menores. A conjectura de minha mãe é muito razoável, e Michael talvez estivesse vivendo o zênito de uma depressão irreversível. A injestão desses supostos medicamentos teria sido um suicídio (in)consciente.
Para mim, Michael é o tipo de pessoa que só vem ao mundo milenarmente, dada a sua singularidade. Ele marcou todas as festas-ploc que eu já fui. Eu já fiz o imitável, nunca inigualável moonwalker. Quem não fez? Em algum ponto da vida das pessoas, Michael entrou. Invadiu. Ficou. E agora, que a gente se vê sem ele, sente uma falta de si mesmo que é estranha. Não que Michael fosse indispensável à vida de todos. Mas, de alguma forma, ele costurou sua história à, pelo menos uma parte, da nossa.
Descanse em paz, Michael. Depois de toda uma vida procurando por ela, pode ser que finalmente você a tenha encontrado.
Para Michael Joseph Jackson - 29 de agosto de 1958 - 25 de junho de 2009.
sábado, 27 de junho de 2009
quinta-feira, 25 de junho de 2009
Os ladrões
Flávio Silva está no seu horário de almoço. Ele cumprimenta a todos do restaurante, costume habitual que se repete há bons cinco anos. Está feliz. Acaba de negociar uma modesta propriedade no interior do Rio de Janeiro, onde pretende passar, com sua família, as férias. A barriga, levemente inchada da mesa farta e os resquícios oleosos da comida no sorriso de Flávio são apenas detalhes que denotam uma pessoa que progrediu na vida; um mosaico de um homem feliz e realizado sob todos os aspectos. Flávio paga a conta, e deixa o restaurante entre amistosos acenos para os funcionários.
Na contramão de Flávio está Lúcio. Mas como o registro geral só fica pronto em um mês, este atende melhor por Lucinho. Depois de mais uma briga séria com a mãe, Lucinho sai de casa disposto a fazer algo que mude pra sempre sua vida. Alguma coisa não necessariamente positiva. E Lucinho vinha avançando pela esquina com os pés, com as mãos, coração e tudo; num rompante medonho, de encontro a um Flávio tão absorto em sua própria vida que passaria por ele tão incólume quanto por uma folha seca deitada no chão, não fosse pelas palavras que invadiram espinhosamente os tímpanos de Flávio:
Perdeu, mermão. Essa porra é um assalto.
Flávio engoliu seco. Toda a sua pele começou a esquentar, como se todos os seus nervos estivessem sendo ligados em altíssima voltagem. Com os dedos trêmulos, ele tentava tirar a chave do carro do bolso.
Como é que é mermão, abre logo essa porra!
Flávio gaguejava, pedindo para que o infrator aguardasse. Não ordenava seu medo. Lucinho gritou e ele finalmente abriu a porta do carro.
Olha só mermão, se tu me enrolar eu te mato aqui mermo.
Calma cara, só ficar calmo que a gente acerta tudo.
Acerta é o caralho. Tu vai passar tudo o que tu tiver, começando por aquela mala ali.
Mala? Que mala?
Aquela ali atrás do banco, tá achando que eu sou otário? Lucinho acerta a cabeça de Flávio com a pistola, e o carro sofre um movimento brusco. Dirige essa porra.
A mesma sensação espinhosa que entrara pelos ouvidos de Flávio no momento da abordagem de Lucinho agora se intensificava. Flávio não contava com um assalto. Não naquele dia. Não podia ser. Todo aquele dinheiro, aquele dinheiro dos cinco meses. A mala no banco de trás, que Lucinho havia notado estava recheada com muitas cédulas. Cédulas de um suado processo que Flávio movimentara, coisa de três dias antes. Com um pequeno detalhe.
Flávio estava desviando da conta de Yolanda Pereira dos Reis, aposentada e viúva, a pensão que seu falecido marido lhe concedia mensalmente. Yolanda, já idosa e sem recursos tanto financeiros quanto físicos de recorrer à justiça, tinha como opção única aceitar o fato de ser lesada por um adevogado de gravata e postura acima de quaisquer suspeitas. Flávio, por um instante, viu-se diante da possibilidade impensada de perder, deliberadamente, para alguém do mesmo nível intelectual de Yolanda, todo o dinheiro conseguido às custas de tramóias, insubordinações, falsas petições e tudo o mais que tão comum é no ramo do direito. E que direito era aquele de Lucinho, de arrebatar-lhe seu sítio no interior do Rio? Sua renda extra, o lazer de suas lindas Marcela e Juliana, às quais havia prometido um pônei? Não. Aquilo sim era uma injustiça. Uma agressão ao inalienável direito à propriedade. Lucinho, trincando os dentes, jogava a pistola no nariz de Flávio, ameaçando sujar o vidro e todo o painel do carro de uma massa disforme de sangue e ossos. Flávio sua. Pensa na mulher. Pensa em Yolanda. Lucinho o ameça, enquanto debocha de sua condição. Por que não havia depositado a merda do dinheiro quando teve tempo?
Vai caralho, vai!
Apesar de ter sido sempre o mestre das muitas situações que lhe surgiam, Flávio se viu pertubadoramente acuado naquele momento. Lucinho falava o tempo todo em matá-lo, e ele não duvidava de suas palavras por ver crack em seus olhos.
Desce.
Mas cara... meu carro!
Desce agora porra! Quer morrer?
Flávio desceu do carro aos solavancos, tão abruptamente quanto havia entrado. Ainda processava tudo o que havia lhe ocorrido. A pistola na cabeça. Aquele moleque nem vinte anos tinha. Mas não poderia denunciar Lucinho. Apesar de estarem social e diametralmente opostos, havia algo em comum entre eles. Ambos estavam atrelados a crimes. Eram diferentes criminosos, comungando da impunidade sob a qual se ancoravam. Uma estranha interdependência. Um desconcerto de mundo que faz tudo andar.
O homem, então tão indigente quanto Lucinho, faz seu caminho de volta a pé. Com o bem mais precioso que o ladrão lhe deixara: sua história. Sua vida. E, principalmente, sua memória.
Post dedicado à minha avó, Yolanda Pereira dos Reis.
E pelo fim da impunidade dos crimes de todas as espécies neste país.
Na contramão de Flávio está Lúcio. Mas como o registro geral só fica pronto em um mês, este atende melhor por Lucinho. Depois de mais uma briga séria com a mãe, Lucinho sai de casa disposto a fazer algo que mude pra sempre sua vida. Alguma coisa não necessariamente positiva. E Lucinho vinha avançando pela esquina com os pés, com as mãos, coração e tudo; num rompante medonho, de encontro a um Flávio tão absorto em sua própria vida que passaria por ele tão incólume quanto por uma folha seca deitada no chão, não fosse pelas palavras que invadiram espinhosamente os tímpanos de Flávio:
Perdeu, mermão. Essa porra é um assalto.
Flávio engoliu seco. Toda a sua pele começou a esquentar, como se todos os seus nervos estivessem sendo ligados em altíssima voltagem. Com os dedos trêmulos, ele tentava tirar a chave do carro do bolso.
Como é que é mermão, abre logo essa porra!
Flávio gaguejava, pedindo para que o infrator aguardasse. Não ordenava seu medo. Lucinho gritou e ele finalmente abriu a porta do carro.
Olha só mermão, se tu me enrolar eu te mato aqui mermo.
Calma cara, só ficar calmo que a gente acerta tudo.
Acerta é o caralho. Tu vai passar tudo o que tu tiver, começando por aquela mala ali.
Mala? Que mala?
Aquela ali atrás do banco, tá achando que eu sou otário? Lucinho acerta a cabeça de Flávio com a pistola, e o carro sofre um movimento brusco. Dirige essa porra.
A mesma sensação espinhosa que entrara pelos ouvidos de Flávio no momento da abordagem de Lucinho agora se intensificava. Flávio não contava com um assalto. Não naquele dia. Não podia ser. Todo aquele dinheiro, aquele dinheiro dos cinco meses. A mala no banco de trás, que Lucinho havia notado estava recheada com muitas cédulas. Cédulas de um suado processo que Flávio movimentara, coisa de três dias antes. Com um pequeno detalhe.
Flávio estava desviando da conta de Yolanda Pereira dos Reis, aposentada e viúva, a pensão que seu falecido marido lhe concedia mensalmente. Yolanda, já idosa e sem recursos tanto financeiros quanto físicos de recorrer à justiça, tinha como opção única aceitar o fato de ser lesada por um adevogado de gravata e postura acima de quaisquer suspeitas. Flávio, por um instante, viu-se diante da possibilidade impensada de perder, deliberadamente, para alguém do mesmo nível intelectual de Yolanda, todo o dinheiro conseguido às custas de tramóias, insubordinações, falsas petições e tudo o mais que tão comum é no ramo do direito. E que direito era aquele de Lucinho, de arrebatar-lhe seu sítio no interior do Rio? Sua renda extra, o lazer de suas lindas Marcela e Juliana, às quais havia prometido um pônei? Não. Aquilo sim era uma injustiça. Uma agressão ao inalienável direito à propriedade. Lucinho, trincando os dentes, jogava a pistola no nariz de Flávio, ameaçando sujar o vidro e todo o painel do carro de uma massa disforme de sangue e ossos. Flávio sua. Pensa na mulher. Pensa em Yolanda. Lucinho o ameça, enquanto debocha de sua condição. Por que não havia depositado a merda do dinheiro quando teve tempo?
Vai caralho, vai!
Apesar de ter sido sempre o mestre das muitas situações que lhe surgiam, Flávio se viu pertubadoramente acuado naquele momento. Lucinho falava o tempo todo em matá-lo, e ele não duvidava de suas palavras por ver crack em seus olhos.
Desce.
Mas cara... meu carro!
Desce agora porra! Quer morrer?
Flávio desceu do carro aos solavancos, tão abruptamente quanto havia entrado. Ainda processava tudo o que havia lhe ocorrido. A pistola na cabeça. Aquele moleque nem vinte anos tinha. Mas não poderia denunciar Lucinho. Apesar de estarem social e diametralmente opostos, havia algo em comum entre eles. Ambos estavam atrelados a crimes. Eram diferentes criminosos, comungando da impunidade sob a qual se ancoravam. Uma estranha interdependência. Um desconcerto de mundo que faz tudo andar.
O homem, então tão indigente quanto Lucinho, faz seu caminho de volta a pé. Com o bem mais precioso que o ladrão lhe deixara: sua história. Sua vida. E, principalmente, sua memória.
Post dedicado à minha avó, Yolanda Pereira dos Reis.
E pelo fim da impunidade dos crimes de todas as espécies neste país.
sábado, 20 de junho de 2009
A preguiça de olhar
Não sei se isso ocorre com mais alguém além de mim. E é justamente querendo saber que me proponho a escrever este post.
Os meus olhos são dois mundos castanhos ligados involuntariamente em 220 o dia inteiro. Não sei se já mencionei isso, mas eu sou algo como o Tyler do Clube da Luta de saias: se esses mesmos olhos que reporto se fecham por mais de 6 horas seguidas, têm-se um recorde. Não quero falar de insônia, não é isso. Meus olhos são dois buracos-negros não pensantes, alimentados de luz, bytes e novidade. Inutilidades? Muita. Faz parte, não importa o quanto eu tente me desvincilhar delas. Acontece que sofro de um fenômeno, que julgo raro - porque nunca ouvi ninguém falar que tem.
Tenho preguiça de olhar.
Não pense que é de ler. Tipo quando um amigo nos oferece um texto e dizemos que estamos com preguiça de olhar. É preguiça de olhar mesmo. É um cansaço visual que eu não sei explicar. E você pensa que fecho os olhos quando isso acontece? Nada disso. Eu os descanso, mas não com óculos. Desfoco-os completamente, e isso me abraça com uma sensação de desligamento parcial que é tão boa que me reintegra. Às vezes - acontece muito - estou diante de um vídeo, que pode até ser do meu interesse, mas aí bate a tal preguiça exótica. E preciso desfocar. É no desfoque que hidrato minhas retinas.
Meu leitor, não pense que eu minto, apesar disto poder lhe parecer um bocado absurdo. O desfoque funde as cores, as texturas, as luzes, em um grande liquificador, potencializado pela necessidade de fugir do turbilhão informativo ao qual estou exposta que se derrama sobre mim como uma chuva ácida. É uma lisergia particular. Ele uniformiza. Dura uma média de 10, 15 segundos; mas já ajuda. Depois dele, quando a visão normal me retorna, parece que ganhei novas córneas.
Não sei porque tenho a preguiça do olhar. Eu posso aqui supor que ela é fruto de um monte de coisas, mas não vou achar um eixo de exatidão pra sua causa. Encaro essa preguiça como algo saudável, instintivo e repositor. Como o ouvido exaurido que chega da rave pedindo silêncio. Como a boca, cuja língua é músculo tentacular, que precisa repousar deitando-se entre os dentes. Essas danças todas são equilíbrios vitais dentro de um sistema maior, e precisam atingir sintonia, senão desandam. E isso - eu acredito - não vale só para o corpo humano, mas como para tudo o que está fora dele e além. É uma lei secreta que rege todas as coisas. Uma metáfora de vida.
Paro por aqui. Acho que já me fiz entender.
(Mentira. É porque estou com preguiça.)
Bom sábado!
Os meus olhos são dois mundos castanhos ligados involuntariamente em 220 o dia inteiro. Não sei se já mencionei isso, mas eu sou algo como o Tyler do Clube da Luta de saias: se esses mesmos olhos que reporto se fecham por mais de 6 horas seguidas, têm-se um recorde. Não quero falar de insônia, não é isso. Meus olhos são dois buracos-negros não pensantes, alimentados de luz, bytes e novidade. Inutilidades? Muita. Faz parte, não importa o quanto eu tente me desvincilhar delas. Acontece que sofro de um fenômeno, que julgo raro - porque nunca ouvi ninguém falar que tem.
Tenho preguiça de olhar.
Não pense que é de ler. Tipo quando um amigo nos oferece um texto e dizemos que estamos com preguiça de olhar. É preguiça de olhar mesmo. É um cansaço visual que eu não sei explicar. E você pensa que fecho os olhos quando isso acontece? Nada disso. Eu os descanso, mas não com óculos. Desfoco-os completamente, e isso me abraça com uma sensação de desligamento parcial que é tão boa que me reintegra. Às vezes - acontece muito - estou diante de um vídeo, que pode até ser do meu interesse, mas aí bate a tal preguiça exótica. E preciso desfocar. É no desfoque que hidrato minhas retinas.
Meu leitor, não pense que eu minto, apesar disto poder lhe parecer um bocado absurdo. O desfoque funde as cores, as texturas, as luzes, em um grande liquificador, potencializado pela necessidade de fugir do turbilhão informativo ao qual estou exposta que se derrama sobre mim como uma chuva ácida. É uma lisergia particular. Ele uniformiza. Dura uma média de 10, 15 segundos; mas já ajuda. Depois dele, quando a visão normal me retorna, parece que ganhei novas córneas.
Não sei porque tenho a preguiça do olhar. Eu posso aqui supor que ela é fruto de um monte de coisas, mas não vou achar um eixo de exatidão pra sua causa. Encaro essa preguiça como algo saudável, instintivo e repositor. Como o ouvido exaurido que chega da rave pedindo silêncio. Como a boca, cuja língua é músculo tentacular, que precisa repousar deitando-se entre os dentes. Essas danças todas são equilíbrios vitais dentro de um sistema maior, e precisam atingir sintonia, senão desandam. E isso - eu acredito - não vale só para o corpo humano, mas como para tudo o que está fora dele e além. É uma lei secreta que rege todas as coisas. Uma metáfora de vida.
Paro por aqui. Acho que já me fiz entender.
(Mentira. É porque estou com preguiça.)
Bom sábado!
domingo, 14 de junho de 2009
Carta de amor
Uma carta de amor não se faz, necessariamente, de puro desejo. De espasmo erótico, de asfixia existencial quando a outra metade está in absentia. A carta de amor de verdade abriga em suas linhas um bocado de cansaço. Uma decodificação, automática e meio sem graça sobre a mínima expressão gestual da metade.
A carta de amor, quando madura, é quase um relato, tão pouco envaidecida de metáforas e impregnada de cotidiano. É essa espécie de diário de bordo duma embarcação que navega-se parcialmente às cegas, onde reencontramos o fosco conceito de amor que só existe nas novelas e em contos infantis. Uma carta de amor que se preze conhece cada defeito, cada pinta, cada peculiaridade do caráter da metade, e não admite acobertá-los sob uma colcha de qualidades duvidosas.
Para conceber uma carta de amor, o primordial é ser sincero. É não omitir nem ronco nem dedo no nariz. É velar, com discrição e uma ponta de encantamento, um pedacinho de pele, de olhar. É, depois de todo esse tempo, ainda ser louco por alguma coisa que a metade faça.
Particularmente eu ainda não sei escrever tal carta, eu apenas a teorizo. Porque esse tipo de carta é tão absurdamente complexo e simples, pela facilidade de se tropeçar em centenas de clichês e de simplesmente descarregar sobre a inocente folha de papel tudo aquilo que se sente. Logo, é meio ridículo, tanto quanto improvável tentar amarrar-se (a) parâmetros na construção de tão difícil documento.
Bem verdade, a carta de amor reflete a dificuldade que existe na própria conceituação de amor. Essa praga barroca, impossível e necessária. Então, amantes de todo o globo, escrevam suas cartas, e ignorem os meus vãos preceitos, que uma boa carta amorosa está sempre embotada de loucura e é tão abstrata e subjetiva quanto o próprio sentimento que é dela objeto; mas ainda assim é uma boa tentativa de eternizar tal sentimento.
Passando-o a limpo.
Feliz dia dos namorados. (Post para 12 de junho de 2009, com um atraso justo porque viajei)
A carta de amor, quando madura, é quase um relato, tão pouco envaidecida de metáforas e impregnada de cotidiano. É essa espécie de diário de bordo duma embarcação que navega-se parcialmente às cegas, onde reencontramos o fosco conceito de amor que só existe nas novelas e em contos infantis. Uma carta de amor que se preze conhece cada defeito, cada pinta, cada peculiaridade do caráter da metade, e não admite acobertá-los sob uma colcha de qualidades duvidosas.
Para conceber uma carta de amor, o primordial é ser sincero. É não omitir nem ronco nem dedo no nariz. É velar, com discrição e uma ponta de encantamento, um pedacinho de pele, de olhar. É, depois de todo esse tempo, ainda ser louco por alguma coisa que a metade faça.
Particularmente eu ainda não sei escrever tal carta, eu apenas a teorizo. Porque esse tipo de carta é tão absurdamente complexo e simples, pela facilidade de se tropeçar em centenas de clichês e de simplesmente descarregar sobre a inocente folha de papel tudo aquilo que se sente. Logo, é meio ridículo, tanto quanto improvável tentar amarrar-se (a) parâmetros na construção de tão difícil documento.
Bem verdade, a carta de amor reflete a dificuldade que existe na própria conceituação de amor. Essa praga barroca, impossível e necessária. Então, amantes de todo o globo, escrevam suas cartas, e ignorem os meus vãos preceitos, que uma boa carta amorosa está sempre embotada de loucura e é tão abstrata e subjetiva quanto o próprio sentimento que é dela objeto; mas ainda assim é uma boa tentativa de eternizar tal sentimento.
Passando-o a limpo.
Feliz dia dos namorados. (Post para 12 de junho de 2009, com um atraso justo porque viajei)
terça-feira, 9 de junho de 2009
Ao Rio
Rio. Rio.
Eu amo o Rio. Ele me é vital, e pulsa em cada um dos meus vasos sangüíneos. O Rio é mais que lindo, é mais que isso. É alguma palavra outra que ainda não inventaram, dada sua propriedade difícil de ser comportada. E sobre tudo isso, o Rio é.
Eu amo o Rio. O Rio dos estigmas. Rota 1 da prostituição internacional. Da violência ocular das calçadas, das meninas cuca-fresca de Ipanema; o Rio que não parece tão Rio de Duque de Caxias. O Rio, que só é bonito e só é Rio em sua totalidade.
O Rio é o maior caldeirão cultural do Brasil. Sei que soa por demais presunçoso isso de minha parte - visto que eu não conheço todos os Estados do Brasil - mas dada a sua complexidade espacial, me sinto confortável de apontar assim. Você anda pela Presidente Vargas e consegue identificar praticamente todos os retalhos da sociedade brasileira, ali dispersos em sutil sinergia. Chega-se à Lapa e a explosão regional que se descortina às retinas é sem dimensão, tragando todos os estilos, todas as esferas, englobando as pessoas numa tribo onde todo mundo é cada um e cada um são todos, louca e simultaneamente. O Rio é uma tribo de prazeres. Infandos, infindos.
O Rio é um deleite. Gosto de bradar, a plenos pulmões, minha carioquez, com um "x" bem arrastado no final, por favor. É bom olhar pras praias cariocas. Sentir maresia. O Rio é pluralista, desde sua concepção histórica até os dias de hoje. Há tempos que toda sorte de gentes vem desembocar aqui, constituindo o retrato da cidade como um todo, um mosaico de caras, de peles e de bocas sincrônico, embebidos de sua cultura que se costura à história do Rio. E isso é bonito demais, único demais. Se o Brasil é um país legitimadamente miscigienado, o Rio é a cidade que melhor reflete esse fenômeno - apesar de que preciso reconhecer que São Paulo, quanto a isso, não fica muito atrás. Mas é no Rio que isso se dá com maior plenitude, com maior repercussão.
E é esse Rio que eu quero. Um Rio de Janeiro cheio de máculas, de espinhos, de funk e bossa que só existe de verdade em suas esquinas com cheiro de mijo, cópula e carnaval. Minha amada cidade, paisagem-alvo de escritores, artistas, cantores e compositores que a imortalizaram em versos e sonetos apaixonados, afinal, o Rio é uma paixão pra vida inteira. Uma paixão que se imprime na pele, na ginga, na memória. O Rio é de todos que moram nele, e que o levam para onde quer que vão no recôndito do olhar.
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro... saravá!
Eu amo o Rio. Ele me é vital, e pulsa em cada um dos meus vasos sangüíneos. O Rio é mais que lindo, é mais que isso. É alguma palavra outra que ainda não inventaram, dada sua propriedade difícil de ser comportada. E sobre tudo isso, o Rio é.
Eu amo o Rio. O Rio dos estigmas. Rota 1 da prostituição internacional. Da violência ocular das calçadas, das meninas cuca-fresca de Ipanema; o Rio que não parece tão Rio de Duque de Caxias. O Rio, que só é bonito e só é Rio em sua totalidade.
O Rio é o maior caldeirão cultural do Brasil. Sei que soa por demais presunçoso isso de minha parte - visto que eu não conheço todos os Estados do Brasil - mas dada a sua complexidade espacial, me sinto confortável de apontar assim. Você anda pela Presidente Vargas e consegue identificar praticamente todos os retalhos da sociedade brasileira, ali dispersos em sutil sinergia. Chega-se à Lapa e a explosão regional que se descortina às retinas é sem dimensão, tragando todos os estilos, todas as esferas, englobando as pessoas numa tribo onde todo mundo é cada um e cada um são todos, louca e simultaneamente. O Rio é uma tribo de prazeres. Infandos, infindos.
O Rio é um deleite. Gosto de bradar, a plenos pulmões, minha carioquez, com um "x" bem arrastado no final, por favor. É bom olhar pras praias cariocas. Sentir maresia. O Rio é pluralista, desde sua concepção histórica até os dias de hoje. Há tempos que toda sorte de gentes vem desembocar aqui, constituindo o retrato da cidade como um todo, um mosaico de caras, de peles e de bocas sincrônico, embebidos de sua cultura que se costura à história do Rio. E isso é bonito demais, único demais. Se o Brasil é um país legitimadamente miscigienado, o Rio é a cidade que melhor reflete esse fenômeno - apesar de que preciso reconhecer que São Paulo, quanto a isso, não fica muito atrás. Mas é no Rio que isso se dá com maior plenitude, com maior repercussão.
E é esse Rio que eu quero. Um Rio de Janeiro cheio de máculas, de espinhos, de funk e bossa que só existe de verdade em suas esquinas com cheiro de mijo, cópula e carnaval. Minha amada cidade, paisagem-alvo de escritores, artistas, cantores e compositores que a imortalizaram em versos e sonetos apaixonados, afinal, o Rio é uma paixão pra vida inteira. Uma paixão que se imprime na pele, na ginga, na memória. O Rio é de todos que moram nele, e que o levam para onde quer que vão no recôndito do olhar.
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro... saravá!
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