terça-feira, 22 de novembro de 2011

Paraquedinhas

Sorte seria
Se eu tivesse um dia
Nascido dente-de-leão
Pois imagine viajar
Todo o mundo
Em dias de calor
E pairar delicadamente
Sobre testa de neném
Estante de livros
Carta de amor
e até a palma da sua mão
Inflado pela leveza
E pela beleza de ser
só um dente-de-leão.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Minuto



Para gozar
Pro dia surgir
Para fazer chorar
Para decidir
Para despencar do abismo
Para libertar
Para invadir
Para beijar
Para deixar quebrar
Para impedir
Para salvar
Para sair
Para ser capa dos jornais
Para pegar uma idéia que flutua
Para viajar dentro da mente
Para espiar a menina nua
Para o azar
E para a sorte
Para o nascimento
Para a morte
Para mostrar
Para explodir
Para enriquecer
Para falir
Para entender
Para cair em si
Para apaixonar
Para trair
Para confundir quem sabe
Para ruir o que desaba
Tudo num minuto cabe
Tudo num minuto acaba.

Possession

[Read it whispering]

When I touch myself
It's not me touching myself.
It's your hands
full of desire
Possessing my hands
Leading them down there
And turning them on
a demon of lust and fire.

For the one I love.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Novembro

Tenho um carnaval sobre os cílios, e cada um dos cacos de cor conta pequenos trechos da minha história.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Conselho

Há uma mariposa
que nunca pousa
Orbitando frenética
em torno da luz.
Me irrita
a sombra patética
que voando
ela produz.
Mariposa, mariposinha,
Para o seu próprio bem
Para com isso já
ou então esqueça.
Porque eu aprendi
que quem muito anda em círculos
acaba sempre
com uma grande dor de cabeça.

Delírio

Por detrás
das paredes dessa casa
Detrás do cimento
e da argamassa
Entre o concreto
e a madrugada
Há um coração gigante
que pulsa torto
e descompassa
e que não me deixa dormir.
Às vezes, quando me deito com meu homem
Penso em alguns outros homens
Que um dia já foram meus.

De uns, saudade - tornaram-se amigos, irmãos;
De outros, ponta de faca e de mágoa - saudade não trago não.
De uns fui rainha;
Outros me tiveram na mão.

Às vezes, quando me deito com meu homem
Penso em alguns outros homens
Que um dia já foram meus.

Dois de nós têm passados
E antes de nos toparmos, de outros fomos
embora, agora, um do outro somos.
Não é cruz ou estandarte
negar o capítulo à parte.

Às vezes, quando me deito com meu homem
Penso em alguns outros homens
Que um dia já foram meus.

Brancos, negros, morenos,
Toureiros espanhóis, enxadristas;
Soldados de Napoleão, escafandristas;
De Mercúrio a Marte, de sacros a putos
Que me tiveram ou por um beijo na mão
Ou por argumentos mais astutos.

Não é desejo ou falta
que me aproxima o pensamento dos outros homens.
É tudo produto de ócio e imaginação:
Imaginação para reinventar os dias que foram,
Lustrar a fronte de tais homens, feito troféus
velhos e empoeirados que estão
E de volta depositá-los na estante
Para não esquecer que os ganhei.

Às vezes, quando me deito com meu homem
Penso em alguns outros homens
Que um dia já foram meus.

Pensar em outro homem
É coisa de toda mulher insone
Depois de muito amar o homem a seu lado
E cansar de velá-lo a dormir.
Daí então os desenhos distorcidos
Feitos na escuridão
Daqueles que se viu chegar e partir
Que escreveram no leito
Linhas de história
E que nada hoje os liga a essas mulheres
Senão memória.
Homens que já não despertam paixão,
homens que já não as podem ferir.

Às vezes, quando me deito com meu homem
Penso em homens que já foram meus.
Daí me aninho no peito seguro e macio do homem com quem durmo
E para todos os outros homens
Boa noite e adeus.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Pássaros mortos

Valentina agora sabia contar o tempo de trás pra frente. Sendo o tédio um dos únicos a bater sua porta e, contra sua vontade, entrar; era também o único a lhe fazer companhia. Ela adquirira o costume estranho de fazer os relógios girarem em sentido anti-horário. Todos os relógios em sua casa sabiam fazer isso. Era um dom estranho que lhe havia sido dado. Como se a água que gotejasse da torneira fosse sugada de volta. Como se pudesse um ovo estalado na frigideira voltar à casca, íntegro. Como se um corte na pele se autossuturasse, e a pele fosse fechando sozinha no mesmo instante. Não, nada disso acontecia. Mas Valentina vivia imaginando situações assim. Pegava um cigarro do cinzeiro e, a iniciar pelo filtro, conforme fumava, as cinzas voltavam e o reconstituíam. Gostava de ficar sentada na varanda, mas na cadeira de palha. Odiava a outra cadeira. Uma vez, a jogara pela janela. Ela não tinha mais esperanças. Perdeu o juízo. Qualquer um perderia, diziam os antigos amigos. Apesar de contar o tempo de trás pra frente, não podia negar a soma dos dias. Olhava com nojo as marcas nos pulsos. Ria-se. Era uma conta estranha. Cada dia que somava, um a menos sabia que tinha. Ria novamente. Mal podia esperar.

Gente, alguém me ajuda, socorro! Socorro, Ariadne, Charles, alguém, pelo amor de Deus! enquanto gritava, Tarsila puxava a amiga para fora da banheira brilhando em vermelho. Valentina ostentava um sorriso triste, mesmo com os olhos fechados. Estava tão pálida que a pior idéia veio à cabeça de Tarsila. Talvez estivesse morta. Gritou. Ariadne!. Mas Ariadne não estava em casa. Nenhum som. Valentina não respirava. Deitou-a na cama, ensopada daquela mistura de água e sangue, discou alguns números, a coordenação lhe carecia. Chorava e tremia. Não era pra ter sido assim, não era pra ter sido assim. Charles? Charles, pelo amor de Deus, aqui é a Tarsila, eu tô na casa da Valentina e ela se cortou toda aqui, ela não tá respirando, eu tô desesperada, Charles, vem pra cá agora que ela vai morrer, Charles, corre, pelo amor de Deus!

Lucca? Lucca, você tá me ouvindo? Lucca... Lucca, não sobe. Lucca, eu não vou. Vamos só ver hoje. Por favor, Lucca. Me escuta, só dessa vez! O vulto parecia admitir várias formas conforme subia as escadas. Olhava para ela. Quando fazia isso, ela levantava os braços, tentando alertá-lo de todas as maneiras que fossem possíveis. Parecia hesitar quando a olhava. Lucca, não! Lucca, não! Quando ele saltava, desaparecia, e Valentina sempre acordava com o coração aos solavancos, sem conseguir discernir os planos. Ao cair em si, desatava num choro desesperado, interminável. As enfermeiras eram constantes em suas vigílias. Ela tentara, já no hospital, algumas formas de se prejudicar, sempre intercedidas pelas enfermeiras. Nunca mais teria um sono tranquilo que fosse naquela vida. Passava a mão sobre os cabelos. Estava confinada a uma gaiola de ferro sob os quartos. Não haveria de ser. Eles estariam errados, por certo. Todos errados. Ela faria os tratamentos, as fisioterapias, o inferno que fosse, mas não perderia as suas pernas. Voava também por elas.

Barulho intermitente e irritante, luz vermelha, macas. Sacolejos. Ariadne nos braços de Charles, desesperada, chorando, sem entender. O velho Pavel não tinha reação, não sabia onde errara. Amarrara bem todos os cabos, todas as cordas, tudo estava no lugar. Aquilo não era natural. Como tá o Lucca, Pavel? Ele tá muito mal. Dizem que ele não vai conseguir. E a Valentina? Eu ainda não sei dela. Tô muito preocupado com o Lucca. Tarsila se distancia. Pessoas saem apavoradas. Um tumulto muito grande ali. Carros de polícia também chegam, tentando apurar as versões contadas. Um acidente, os dois caíram lá do alto, o cabo soltou, COMO, meu Deus, minha amiga, seu policial, minha amiga, NÃO! Ariadne gritava com o policial, ao que Charles, o marido, tentava contê-la. Não havia como. Sacolejos. Os dois feridos encaminhados a um hospital próximo. No dia seguinte, Valentina abriu os olhos, Ariadne próxima à cabeceira. O que é isso tudo, onde eu estou? Perguntava, zonza, os olhos tontos. Você tá no hospital, Valentina. Cadê o Lucca, onde ele está? Amiga, você precisa ser muito forte, forte como nunca foi na vida. O Lucca morreu.

Na mesa, uma dose de vodka para todos. Era o ritual de Pavel para o bom espetáculo. E todos tomavam. Vê mais uma, Pavel! Lucca sempre gostava de provocar o velho. Já estavam todos fantasiados. As fantasias realmente transformavam os artistas. Ariadne e seu colant, quase uma segunda pele. Facilitava muito. O neoprene foi a melhor coisa que já inventaram. O pé vai na cabeça como se a gente tivesse nua, ô, maravilha. Charles gostava das palhaçadas dentro e fora do picadeiro. Tarsila o assistia, também com palhaçadas, além de suas outras funções. Marcellus e Marcel, os gêmeos mímicos. E Valentina. A favorita de Pavel, a preferida da trupe, a estrela. Valentina e Lucca eram os acrobatas, e seu número era geralmente reservado aos finais. Eles próprios eram o grand-finale. Executavam números difíceis, de arrancar longos silêncios de apreensão do público - a serem seguidos por grandes aplausos. Tinham alguma coisa que encantava as pessoas. Lucca adorava brincar com todos, embora Tarsila não cedesse facilmente às suas provocações e brincadeiras. Valentina era a encarnação de alguma ninfa, coisa que Pavel acreditava e difundia piamente. Magra, apesar de ter os ossos fortes, a pele firme, os nervos tesos. Lucca tinha o mesmo biotipo. E essa noite seria mais especial que as outras. Havia uma luminosidade estranha no olhar de Valentina e Lucca, com quê de surpresa que eles estavam guardando. Vocês estão escondendo alguma coisa. Abre o jogo, Valentina! Não, Ariadne. Só depois do espetáculo a gente vai falar. Isso não é justo! Há quantos anos eu te conheço, Valentina? Você nunca foi de segredos! Qual é! Dá uma dica! Não, amiga! Sorria; feliz, leve. Espera até o final do espetáculo que você vai saber.

Você sabia que eu amo você? Lucca beijava as costas nuas de Valentina, enquanto ela sorria para o espelho. Olha só como você é linda. Você é a mulher da minha vida, Valentina. Ela não respondia. Que mistério todo foi aquele de ontem? Não entendi... Lucca tornava a beijá-la, apaixonadamente. Você é a mulher da minha vida. Sorriu sarcasticamente. Não desvia o assunto, quero saber! E sobre eu ser a mulher da sua vida... nossa, que coincidência! Você, por acaso, também é o homem da minha vida! Ela esticava os braços para tocar sua nuca. Beijava-o. Por um momento, ele se deteve. O que foi? É que eu preciso ter uma conversa muito séria contigo. Ih, não tô gostando. Valentina desarmou o sorriso. Pode desembuchar, o que é? Andei pensando sobre nós. Sim, o que há nisso? Tomei uma decisão a nosso respeito. A verdade é que eu precisava falar isso.
Perto dali, Tarsila ensaiava. Gostava mesmo de praticar só, sem ter ninguém para incomodá-la. Irritava-lhe a bajulação em cima do casalzinho. Não suportava Valentina e todo aquele bla bla bla sobre suas performances no ar. Que morresse, a Valentina. Que fosse pro inferno. Odiava Valentina. Mas já não podia dizer o mesmo sobre Lucca. Lucca e seu sorriso largo. Suas brincadeiras irritantes, sua mania de falar com naturalidade sobre os complexos das outras pessoas e transformá-los em piada inofensiva. Entretanto, não imaginava uma vida sem isso. Sem Lucca por perto. Lucca, que nunca seria seu. Terminara o ensaio. Retirando as polainas, ia deixando o picadeiro, quando passara devagar pelo camarim de Lucca e Valentina. Casa comigo? Ela ouviu a frase que lhe gelara a espinha numa descarga elétrica de nojo e repulsa. Valentina sorrindo, sorrindo até com olhos, desgraçada, podia espreitar pelo fio de luz que a porta salientava. O abraço, os beijos, se amando no chão. Queria ficar feliz por eles. Mas nunca conseguiria. Não se sentindo em eterna desvantagem com relação à Valentina. Correu, quando passou pela grande rede de sustentação do espetáculo. Parou por uns instantes. Não. Foi embora.

Essas nossas "vernissages"... é tanta merda que sai... hahahaha. Ariadne gargalhava das piadas de Lucca. Charles enchia os copos na mesa, fazia piadas também. Valentina preparava tira-gostos na cozinha. Ariadne, cadê o soquete? Quero colocar um alho aqui! Essas mulheres... ô Valentina, tu nunca sabe onde fica nada, hein? Vem aqui há milianos e vou te contar! Valentina é maluca, Charles. Nem lá em casa ela sabe direito onde ficam as coisas. Outro dia, eu tava procurando uma cueca minha. Abri a gaveta e vi um tomate, não entendi nada. De tanto procurar, eu acabei deixando pra lá. De repente, deu até uma fome depois de rodar a casa toda, abro a geladeira e o que aparece? Hahahahaha, tá de sacanagem, Lucca? NÃO, cara! Pior que não! Aí eu fui perguntar por esse lugar no mínimo pouco usual pra colocar cueca e ela me disse que tava com um tomate na mão e a cueca na outra. Eu falo, essa mulher é doida! Hahahahaha. Valentina, isso aqui é sério? Pergunta Charles. Todos riem sem parar. Tudo é festa. Doida, mas te alimento, cozinho, passo, lavo suas caganças! Só sendo acrobata pra fazer tudo isso pra você! E você aí, me chamando de doida. É mole? Ela grita da cozinha. Linguicinha saindo! Valentina volta com um prato com pequenas fatias de pão e linguiça picada. É doida, mas é linda. Não é linda, gente? É a estrela! Pavel diz, com a admiração sincera de um pai. Um brinde, propõe Lucca. Um brinde a nós, um brinde à minha mulher linda que vai ficar mais linda ainda amanhã e ao maior espetáculo da terra que será protagonizado por nós. Valentina olha para Lucca, franzindo as sobrancelhas. O que ele quis dizer? Balança a cabeça. Ele finaliza: um brinde a tudo que virá. Um brinde ao maior espetáculo das nossas vidas!

terça-feira, 27 de setembro de 2011

O homem que matou a América

Fotografava pacientemente o externo dos seus olhos incansáveis. Sua vida, até então, se resumia a um contínuo movimento circular e uniforme, que compreendia os quarteirões da cidade por onde passava com seu carro. Detectava os tipos comuns. Filtrava-os, inerentemente filtrava-os. As vagabundas, os viciados, os negros, os sodomitas, os assassinos, os ladrões, os exploradores e toda sorte de gente que se vende por 15 dólares a hora. Olhava para eles com nojo. Escória. Escória do mundo. Porra.
Não encontrava nada interessante pra fazer. Gostava de olhar moças bonitas e limpas, de dançar, de passear no parque; mas isso era artigo de luxo numa metrópole tão viciada quanto os dados de Las Vegas. Então enfiava-se nos cinemas onde outras moças bonitas, porém sujas, mostravam a elasticidade de alguns de seus orifícios. Lá ele se camuflava.
Um dia, cansou de fazer parte da procissão dos desvalidos que mendigavam uma teta no seio da América. Mudou os móveis de lugar, mudou os hábitos alimentares, mudou o corte de cabelo e foi pra rua. Era um revolucionário só. Não havia insurreição nenhuma nas ruas escuras. Era só ele. Era um profeta do subúrbio cujas verdades só tinham sentido para si. Era ele próprio um carro desgovernado.
Adquiriu armas. Cada arma adquirida era um lance de escadas social que ele galgava e que o diferenciavam daquela multidão sem nome. Agora ele tinha um nome. Só precisava assiná-lo.
Saiu às ruas. A primeira vez que matou foi tão despreparada que foi quase acidental. Mas não foi. E o vagabundo merecera. Um preto ladrão. Merecera. Sentiu o gosto do sangue das pontas dos dedos, gostou daquilo de certa forma. Mas aquilo era só uma rubrica mal feita perto da sua premeditação. Tinha alvos.
Continuou andando pelas ruas. Ele era aquilo que se podia chamar de "perigoso" agora. Na porta de um bordel, um tiro. Uma merda de um cafetão inútil agora conhecia o gosto quente do seu revólver. Sobe as escadas, encontra o proprietário do local. Vara sua mão com outro tiro. A mão fica dilacerada, e o homem, colérico, xingando-o de muitos nomes e percorrendo-o conforme ele sobe ainda mais as escadas. Adentra um quarto que brilha com luzes vermelhas, e mata um homem nu. Sob ele, uma menina de doze anos grita, apavorada, fecha ouvidos e olhos. Mas um tiro lhe acerta. Ele cai num sofá, enquanto chegam policiais.
 Seu nome é Travis Bickle. E este homem matou a América.

sábado, 10 de setembro de 2011

O sonho da louca

Do lado de fora do carro, as árvores pareciam embriagadas. Não se acertam em suas posições. Parece que vai chover.
Silêncio absoluto. Ninguém falava. O percurso é tranquilo, mas me sinto tonta e o porquê não sei. O carro pára. Me puxam para fora dele.
À frente, uma fortaleza de cor cinza, com janelas pequeninas por onde o pavor espreita o mundo que há do lado de fora. Numa fachada, em letras coloridas, está escrito "Reino Feliz". Os homens que me conduziam no carro agora me tomam, cada um por um braço, e me carregam para dentro do lugar. E me despejam.
Assim que fecha-se a porta, começo a socá-la, em meio a desesperados pedidos de ME TIRA DAQUI!, quando, depois de um tempo, me dou conta de que é possível destrancar a mesma. Saio devagar e percebo do que se trata. É um hospício. Um hospício de quartos em cores berrantes onde, curiosamente, em cada um, havia um jogo eletrônico dos anos 80 que nos sugava para dentro conforme entrávamos no cômodo. Então, por exemplo, quem entrasse em determinado quarto, tornaria-se uma esfera amarela faminta, ou, num outro, haveria imensos blocos coloridos caindo sequencialmente uns sobre os outros. Em todos os quartos havia desses horrendos labirintos coloridos. Eu estava lá, e acreditem ou não, não havia real motivo para estar.
 De repente, num destes quartos, havia um emulador que transportava quem entrasse diretamente para a ação. Concentrando toda a força da minha mente, consegui passar incólume pelo jogo, e, num canto do mesmo quarto, descobri uma seqüência de portas igualmente coloridas. Abria-se uma, havia outra. Por trás delas, um lance de escadas, onde dois homens jogavam baralho. Um deles, gordo e usando roupas antigas, era o diretor da instituição, que se espantou quando me viu. Me ordenou que me afastasse, quando, no mesmo instante, puxou uma arma exótica de uma das gavetas da mesa onde jogava seu carteado.
Num movimento muito brusco, avancei sobre o homem para tentar arrancar de si a sua arma. Não consegui. Ele então apontou-a a mim, ordenando que eu me ajoelhasse. O outro homem apenas observava.
_ Como chegou aqui?
_ Pelas portas coloridas.
_ Você não teria como saber onde estão as portas coloridas.
_ Eu também não sei exatamente o que faço aqui. Mas sei de uma coisa: quero ir embora já!
_ Ah não, minha cara, minha caríssima. Quem entra no Reino Feliz só vai embora se for para os jogos. E desde então nunca houve resistência.
_ Pois desde... então!
Sem pensar muito, da posição de joelhos desferi uma banda no diretor. A arma caiu, o outro homem desapareceu e houve uma luta corporal para quem consegue alcançá-la primeiro. De posse da arma, corri atrás do gordo, que se atirou de um dos lances de escadas. Tentando acertá-lo durante sua queda, me dou conta de que não há munição, e a arma finalmente me parece o que antes eu não havia notado: um brinquedo.
Varando os corredores afim de encontrar a saída, há imagens de todo tipo. Entretanto, não há loucos. O que haverá acontecido aos loucos que chegaram antes de mim? É nesse instante que espio um dos quartos e ouço uma voz que vem de dentro:
_ Fuja pelo jardim que você vai encontrar a porta cinza.
Sem alternativas, começo a correr para encontrar o jardim, mas há três deles. O lugar é dantesco, distorcido e há risadas por todo canto. Minha cabeça já começava a doer quando me dei conta de que as risadas eram nocivas, e a loucura se dava pelo ar, pelo som. Abafando os ouvidos com as mãos, vaguei pelos três jardins. No último, a tal porta cinza.
Não conseguia abrí-la por nada. Bati, forcei a maçaneta, gritei, nada. Mas observei sua fechadura. Era estranha, grande e redonda. Então peguei a arma de brinquedo e encaixei seu cano lá. Era a chave.
Quando abri a porta, estava exatamente no centro de uma grande cidade. Mas ao olhar para trás, não havia nada. Tudo estava desfeito. Nenhum jardim, nenhum hospício, ninguém a me perseguir. Espantada, olhei novamente: tudo havia desaparecido. Nem mesmo a arma de brinquedo que eu portava estava comigo.
Caminhei aliviada. E, para sempre, confusa.

sábado, 27 de agosto de 2011

Esfacelamento

Passos. Lentos. A grande entrada para a Casa dos Mortos parece estar sempre aberta, como uma grande boca, numa ironia muito cruel e fina de que, em vida, só a morte é eminente. E democrática.
 Por todo canto, colunas brancas de um mármore velho e cansado. Logo à direita, uma placa onde se lê "embelezamentos, jazigos, promoções". A morte é mesmo um mercado rentável. Muito rentável. Funcionários batem um papo animado sobre o jogo do flamengo da noite anterior, porque o mengão, além de imbatível, é o outro feijão com arroz dos brasileiros. Também comentam sobre a vontade de sair pra namorar, porque é sexta-feira. Esperam o almoço.
Tédio por toda parte, especialmente acentuado pelas colunas brancas daquele mármore triste. Uma senhora, uns quarenta anos e um grande sinal ovalado na testa, vende biscoitos de isopôr amarelo que dão câncer e enganam a fome. Um vira-lata late. Nada digno de nota naquele dia. Tudo o que havia nas pequenas capelas era o cheiro discreto dos que passaram por elas e cascatas curiosas de cera, com uma grande variedade de formatos. Umas bem esdrúxulas. Uma outra parecia, com um pouco de imaginação ou fé, ter o rosto de uma santa sem nome.
Escadas. E uma rápida vista detecta um panorama singular de gavetas funerárias, marcadas com números e letras, tão impessoais. Em algumas, está grafado "saudades", com caligrafia mista de letras de imprensa e manuscritas; e em boa parte das demais gavetas estão depositadas flores desbotadas e sujas.
Passos. As lápides chamam atenção pela grande quantidade de fotos e datas, mas não pelas mensagens de despedida, tão impessoais quanto as gavetas funerárias. Maria Alberta Ramos Silva, 28 de abril de 1953 a 11 de outubro de 2005. Eu arriscaria que um câncer levara essa mulher. João Firmino, 12 de janeiro de 1887 a 20 de setembro de 1985. Um negro retinto, jeitão de recém-alforriado, deveria fumar uns cachimbos e ter visto tanta coisa. Morrera de velho, sem hesitação nem dor. Bruno Fernandes Lopes, 15 de julho de 1998 a 03 de maio de 2000. Que triste enterrar um bebê. Ou Andréia Santana Neves, 27 de julho de 1970 a 27 de julho de 1990. Datas redondas.
 Muitos têm medo de caminhar entre as catatumbas. É o peso das crendices. Mulher grávida ou menstruada não pode ir a funerais. Ao chegar de um, deixar os sapatos na porta e colocar toda a roupa de molho em água com sal. Não levar bebês.
Tais lendas não se dão à toa. O mundo que não vemos certamente desperta a curiosidade, e não há incréu ou ateu que não creia, por mais que o diga, pelo fato de ser humano. Humanidade pressupõe dúvida, dúvida pressupõe humanidade.
Há uma beleza estranha pelo lugar. Beleza inusitada, com uma sensação de não-pertencimento. Mas está ali. Mora na revoada de passarinhos e seu canto carpideiro sobre os que apodrecem, no coveiro que só enxerga de um olho e que - fruto de uma herança comportamental medrosa quanto às assimetrias humanas - parece a própria morte. Nas coroas prontas e um tanto cafonas de perfume enjoativo. Mora até nas colunas brancas de mármore triste, que inutilmente, também esperam pela hora da partida.
 Nem aos cemitérios escapa impetuosa poesia. 

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Um conto assustador

 Não podia admitir seu gênio, por demais condutor, para uma mulher. Ela era tudo demais: tinha um cabelo demais, umas roupas demais, um falar demais. Tudo demais para sua compreensão. Ele costumava se sentir um pouco menor perto dela, porque ela crescia e falava tanto que se sobressaía, naturalmente. Era seu fã. Não podia negar sua incredulidade, seus cílios grandes emoldurando seu olhar jocoso, aquele olhar de um instinto inquisitivo quase infantil, aquele seu famoso falar com as mãos; ela parecia ter três bocas. Mas era seu fã confesso. Era seu amante. Não invejava sua vivacidade, era apenas um admirador confuso e incorrigível de sua beleza atropelada.
 Acontece que seu signo se espelhava pela cama. Ela tinha umas idéias muio avant garde para o seu gosto provinciano. Ele nunca havia estado com uma mulher daquela. Ela parecia um homem. Transava com ele como se conduzisse um tango argentino bem compassado, mas opulento, aflito e sangüíneo. Tinha os olhos firmes e o sexo teso, feito lobo na estepe. Não era ruim, não tinha exatamente como ser; mas a sua potente testosterona era subtraída pelas suas mãos invasivas e escorregadias a desabotoá-lo a bermuda.
 Um dia, ele contou como se sentia. Era tão honesto quanto ela, e sentiu que precisava dizê-lo. Se bem pudesse, lhe colocaria uma sela para redomesticá-la dentro de sua fôrma moral inconstrangível - porque todos aqueles excessos; da cor de seu batom ao comprimento de suas saias, no fundo, o incomodavam. Por medo de sua reação, ele havia jurado para si mesmo que ela nunca haveria de sentir o peso de seus julgamentos. E ele estava certo. Certíssimo.
 Ele feriu mortalmente seu orgulho quando lhe confessou suas impressões. Ela não entendia como um homem poderia queixar-se de sua inabalável disposição sexual; ele não entendia como ela conseguia ser tão libidinosa. E fizeram, cada um consigo, um pacto de silêncio sobre aquele assunto.
 Precisava testar a veracidade daquele parecer; não podia crer que os homens gostassem das mulheres sonsas. Como? Acreditava tanto em suas convições que de, afiadas, a cegavam. Não admitia que depois de tanto soutien queimado ele simplesmente agisse com um comportamento tão risivelmente machista. Ele gostaria que ela se comportasse como uma inofensiva e dócil pinup, mas isso seria tão legítimo quanto enjaular pardal. Aquela verdade lhe atordoou. Foi dormir desejando acordar confinada à frigidez eterna.
 Um dia, ela chegou em casa com os olhos estuprados de uma expressão que nunca antes apresentara. Despiu-se lentamente, depositou as roupas numa bacia de alumínio, riscou um fósforo e queimou tudo. Observava o fogo, como se com as roupas, queimassem também seus demônios de culpa. Entrou no banheiro com um passo débil, e deixou a água cair, mas essa água não poderia ir por dentro dela, não podia lavar o sêmen de um de seus amigos lá dentro depositado. Simplesmente não saía. De repente, a água ficou pastosa e quente. Ela olhou para cima e constatou que estava sob a cascata de um esperma grosso que lhe saía dos orifícios imundos do seu delírio. Irrompeu num grito desesperado e o marido chegou, assustado, perguntando o que acontecera. Tudo estava bem.
 Deitou-se mole na cama, com os olhos bêbados de tanto piscar. Mas tudo estava bem. Ele dedilhou suas coxas e ela quis morrer. Cada beijo que ele dava pelo seu pescoço equivalia a chicotadas psicológicas por toda sua pele. Ele tornou a perguntar se algo havia, mas tudo estava bem. E penetrou-a, repetidas vezes; a escuridão, seu escudo, ocultando suas expressões de assombro e de dor, enquanto ele se satisfazia, derramando-se todo por sobre ela, tantas vezes, como nunca antes conseguira, como nunca antes fizera.
Acordou-a com um longo e apaixonado beijo. Ela finalmente compreendera o que ele dissera.
Ele havia tido a melhor noite de sua vida. Ela estava, pela primeira vez, fecundada.

terça-feira, 31 de maio de 2011

Curvilínea ruína


             _ Me fode, seu puto, fode, fode, fode, ai!
            O tom rouco, voraz e consentido de Alícia Delícia era música para os ouvidos de Mário. Era até mais provável que ele ficasse mais excitado com o timbre de sua voz que com toda a sua inacreditável capacidade vaginal. "_ Ai, seu puto, gosta da minha boceta? Me come, seu filho da puta!", ela gritava, por trás daquela tela ingrata que os separava. Mário revirava os olhos próximo à estante que, a essa altura, parecia mais um altar. O altar profano de Alícia Delícia, aquela interminável loura genérica a quem ele costumava dispensar todos os adjetivos com idéia de deleitosa grandeza, já que aquela moça era realmente merecedora deles. Ela merecia todas as homenagens pertinentes a mulheres do seu calibre numa bandeja para abocanhá-las, uma a uma, como se comesse cerejas.
            Quanto mais Mário lia e via sobre sua musa, mais perdidamente apaixonado ele ficava. Era uma paixão tão arrebatadora quanto as medidas da moça, e ele estava ciente de que aquilo era sério, que o estava consumindo. Não poderia ser normal o fato de uma atriz-pornô despertar algo nos homens além de um volume atípico nas calças. E Alícia Delícia era tão talentosa e tão multifacetada... Mário bem que gostava do fato de ter sido tão irremediavelmente fisgado pelos seus imensos olhos castanhos, porque ele conseguia ver no seu trabalho toda a sua arte. Nobre ou não, não caberia a ele julgá-la; mas algo era certo: ela o fazia com vigor. Já havia sido deusa de uma floresta perdida. Já havia sido náufraga numa ilha. Já havia sido uma stripper full-service. Já havia sido mulher do padre e de toda a sacristia. Alícia Delícia, que achado.
            Absurdo que fosse, a moça não poderia fazer idéia do sem-número de noites que já havia subtraído de Mário, ou de quantas vezes invadiu seu sono para acordá-lo com uma incômoda sensação de umidade. Ele se levantava, lavava o rosto e demorava para voltar a dormir. No dia seguinte, seu cansaço denunciava a noturna invasão da loira, mas nada que não pudesse disfarçar como sendo uma simples noite ruim.
            Por volta do décimo filme adquirido, Mário se cansou. Aquilo não era vida, ele precisava conhecer a dona dos maiores cílios e unhas que ele já havia visto. Encontrá-la não poderia ser a coisa mais difícil. E foi atrás disso com obstinação. Começou sua busca através do site da produtora Proibido Fruto. Mandou uma boa centena de e-mails sem resposta. Foi até a produtora, mas eles não forneciam informações sobre a vida privada de seus empregados. Agora havia ficado difícil. Como encontrar Alícia Delícia?
            Mário passou um bom tempo tentando fazer contato com a mulher via internet: seu tempo livre era quase inteiramente destinado a isso. Um amigo bem próximo, a quem havia contado a sua rotina e desejo por Alícia Delícia, estimulou-o a desistir, a procurar por alguém possível e, principalmente, de respeito, cara, tá maluco? Quer namorar com puta, porra? Bota a cabeça no lugar! Mas ninguém poderia entender que ele, de tão viciado na figura do bonde loiro, via nela além de uma mera atriz de filmes para adultos. Ela era uma mulher de carne, ossos e, provavelmente, também deveria ter ali no meio daquelas placas de poliuretano, um coração incompreendido e virgem. E Mário, talvez, fosse o único que estivesse consciente desse lado de Alícia Delícia.
            Depois de seus sucessivos insucessos na procura por ela, havia dias que chegava em casa e só ligava a televisão para que tocasse o áudio de sua voz toda maliciosa que só conhecia a linguagem dos palavrões. Não que ele definhasse. Não que não se permitisse conhecer uma moça ou outra e comê-las de vez em quando. Mas o platonismo em torno do umbigo de Alícia Delícia certamente o perturbava. Ele não podia expor isso como se fosse frustração plausível, não queria ser tachado de louco pelo trabalho e nos meios reais em que vivia. Gostaria de continuar a comer algumas mulheres, mas se elas descobrissem de sua tortuosa obsessão por aquela famosa atriz-pornô-loira-de-pentelho-preto-nojenta, iriam se espantar e fugir. Alícia Delícia era, portanto, um fantasma voluptuoso que o atormentava pelo lado de dentro, em um segredo inconfessável.
          Numa manhã comum, Mário abriu os olhos. Tomou banho, tomou café, tomou juízo, e foi trabalhar. Estava estranhamente bem disposto. Desceu as escadas do apartamento, girou a chave no tambor, saiu. Havia um tempo não se encontrava tão bem. Entre uma rua e outra, parou num lado da calçada, enquanto esperou pelo sinal abrir. Foi quando uma visão o desgraçou. Do outro lado da rua, uma morena com olhos perturbadoramente fundos e foscos, escondida por detrás de uma blusa branca sem decotes olhava para o céu. Seu jeito de mover a língua e seus olhares eram luxuriosos demais para qualquer mulher, mas não para aquela que devorava cada minuto da sua paz ignorante de tal fato. Por debaixo da camiseta branca, ele conseguia notar o redondo volume dos seios bem feitos, e podia até imaginar, com deleite, os detalhes em fita do soutien dela. Ela lambia discretamente os lábios para hidratá-los. Cada piscada de olhos da moça parecia eterna, porque ela o fazia tão languidamente que o que parecia era que estava revirando os olhos de um desejo que não tem nome nem tamanho. Num crachá, seu nome: Aline. Mas ele sabia muito bem de quem se tratava, e só poderia ser uma. No instante que se deu conta dessa terrível verdade, sentiu, num choque que lhe esquentou a pele, todos os fantasmas os quais pensava ter feito adormecer despertando violentamente, percorrendo seu estômago, laringe, peito, braços. Era Alícia Delícia. Era Alícia Delícia?
            O sinal de trânsito não estava aberto. Mas Mário correu em sua direção.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Onde estão os detetives?

     Apesar de não ser a maior fã de ficção noir, sempre achei interessante a atmosfera investigativa, e por esse motivo, passei a ler alguns artigos ligados a cyberpunk. Me surpreende a criatividade dos produtores do gênero, porque é preciso ter uma mentalidade fértil para engendrar boas tramas noir, afinal, não se constroem figuras folclóricas como Sherlock Holmes tão out of the blue assim. Por conta disso, Asimovs e Fawcetts do mundo já estão na minha listinha do que ler nos próximos meses.
    Há tempos imemoriais eles despertam paixões, porque as pessoas são naturalmente curiosas. E que bom que o são: a curiosidade é a mãe das descobertas. Me recordo de uma grande amiga me dizer, em tom confissional, que o pai era um detetive de verdade quando éramos crianças. Disse ter encontrado uma arma numa de suas gavetas, entre outros artigos que não pôde compreender. Dá pra imaginar o efeito disso - somado a todo o folclore em torno do assunto - na mente de uma criança?
    A simbologia desse universo tem um quê proibido que assusta e convida. Ruas escuras. Um tiro seco. Uma mulher que sabe demais. O detalhe distintivo numa evidência. Um suspeito que corre - ou seria uma vítima? Nuvens de nicotina e bolos sujos de dinheiro. A undergroundização desse estilo tem tantos adeptos não é a toa, mas, observando bem esse retrato, debruço a lupa da minha curiosidade sobre um elemento que não consigo encontrar.
    Por onde andam os detetives?
    Figuras tão emblemáticas quanto Poirot e dona Jill Munroe de loiros cabelos encascatados, por detrás de que sobretudo vocês estão? Até os anos 90, era muito comum a menção a esses personagens cujas existências duplas povoavam o imaginário coletivo com teorias mil. Mas parece que a aura misteriosa que os catapultou ao status de ícones de gerações acabou por fazê-los submergir na mesma; denso mergulho na escuridão das esquinas do ostracismo.
    A verdade é que eles desapareceram. Ganharam novos endereços, novos ofícios, novos nomes, estão bem aposentados pelos muitos anos de serviço prestados à brilhante imaginação humana. Não são mais reconhecidos pela indumentária dicktracyana e sua perícia perdeu o charme rudimentar de mitos como Basil da Rua Baker. Quem teve infância entenderá.
    Pode ter sido a internet a grande responsável pelo sumiço desses investigadores, já que, por meio dela, é possível vasculhar, sem muito trabalho ou estudo, todas as vidas que uma pessoa pode ter. Fazendo uso dessa ferramenta, o glamour que existia na precisão do instinto para farejar rastros do que podia variar de um pequeno deslize de conduta de um marido a um grande golpe corporativo foi reduzido, desmitificado. Talvez por isso a banalização de determinadas funções possa implicar na sua extinção.
    Tudo o que sei é que eles andam bem escondidos por sobre essa cortina de escombros e paetês pós-moderna. Proposital? Talvez.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Sem título

Minha melancolia é uma tímida senhora de bengala. E está pedindo licença. Não deseja incomodar quem passa.

domingo, 10 de abril de 2011

A formiga no espelho

Não desvie. Não esbarre. Não deixe cair o que se porta. Mantenha-se na fila. Acima de tudo, respeite a esteira. Respeite a seqüência. Respeite a ordem. Respeite o programa. Respeite a cadeia. A cadeia é segura. A prudência protege. Não subverta. Não insurja.
Não pare. Trabalhe, trabalhe, trabalhe.
Diga obrigado. Diga por favor. Diga com licença. Seja cauteloso. Zele pelo bem comum. Não olhe nos olhos da outra formiga. Não olhe além da linha. Cumpra prazos. Comporte-se. Respeite o perímetro do seu passo. Obedeça. A colônia é cada pata que se movimenta. A colônia é a marcha lenta e silenciosa dos dias. Seja o funcionário do mês da colônia. Você é a colônia. Mas se você morrer, a colônia ressuscitará nas patas da sua prole. Porque a colônia não pára.
Você é substituível. Você é dispensável. E não. Você não é substituível. Você não é dispensável. Você, você. Mas não diga isso para outra formiga, e para outra, e para outra. A colônia é sua mãe. A colônia é seu pai. Você nasceu nela e vai morrer nela. Você nasceu por ela e vai morrer por ela. Respeite a colônia.
Lave a cara. Abra os olhos.
Trabalhe, trabalhe, trabalhe.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Bicicleta

Sinto saudades de andar de bicicleta. Eu lembro que passei boa parte da minha infância e pré-adolescência sobre algumas. Gosto do movimento continuamente circular. A bicicleta faz a gente calçar as sapatilhas de Hermes. Eu lembro, com muita clareza, de que quando dava por mim, me sentia levantando voô em cima da minha Caloizinha, como se as ruas que cercavam a minha casa de praia fossem só minhas.
    Ah, bicicleta! Como é gostoso revisitar o prazer de se desprender do guidom, abrindo os braços pra abraçar e ser abraçada longamente pelo vento que chicoteava os cabelos, docemente, fechar os olhos e ver um mundo caleidoscópico pelas retinas. Me pintar numa aquarela bucólica, sobre uma bicicleta que atravessa uma rua sem nome, cheia de terra e cascalho fresco que a chuva fina da noite molhou, que o sol rascante do dia quarou. Bicicleta. Como pode uma única palavra suscitar lembranças tão lívidas em alguém? As pernas saudáveis movendo as roldanas bem lubrificadas, as duas peças esféricas que continham as marchas, toda a sua bela e magra anatomia; toda a orquestra barulhenta da corrente que se movia por através delas, e a então bicicleta cavalgava a fortes trotes sobre o chão de barro, meio animal, com uma vida quase própria.
    Longe dos olhares que repreenderiam, longe dos chamados para o almoço proferidos pela esganiçada voz de minha avó, mais longe que qualquer lugar que alguém conheça - por existir, saudosamente, tanto na memória quanto no meu peito -  eu e a minha bicicleta éramos uma só. Nós duas corríamos, caíamos, nos machucávamos. E meu pai cuidava muito bem de nós. Já no dia seguinte estávamos prontas para novas trilhas. Quando nos cansávamos, parávamos e campos amplos de vegetação vulgar, mas eram tão macios aqueles matos selvagens que cresciam impunes que ali passávamos longas horas sem nos dar conta, brincando com as dormideiras e sentindo as formigas fazendo cosquinhas por nossos pés e braços. Ccostumava adornar minha bicicleta com muitas dessas flores corriqueiras que encontrávamos pelo caminho, e ela ficava com cara de Havaí, coroada. Toda metida.
    Hoje, algumas idades e estações depois, ouvi o nome dela. Bicicleta. Veio duma boca apaixonada que ia andar não só sobre ela, mas, sobretudo, com ela. Essa pessoa parecia sentir o que eu sentia.
    E eu morri de saudade.

quarta-feira, 2 de março de 2011

O presente obsoleto

         Foi lançado, nos últimos dias, o último álbum da banda britânica Radiohead, "The King of Limbs". Particularmente, nada tenho contra o trabalho do dançarino Tom Yorke e companhia, tampouco admiro o som. Mas acontece que, ao saber de tal lançamento, pensei no meu namorado, ardoroso radioheadico, e cogitei comprar o álbum para presenteá-lo. Daí, parei por um instante, e voltei atrás: quem dá CD de presente nos dias de hoje?
         Eu ainda me lembro da época em que CD era presente. Presente muito bom, aliás. Era, inclusive, a época em que os móveis de sala-de-estar eram vendidos com aquelas colunas medonhas que pareciam o esqueleto de alguma criatura paleozóica, destinados a comportar os CD's. Mas, conforme passaram os anos, a década de 2000 engoliu este esférico artefato.
          Tive muitos CD's. E a sessão shame-on-my-past é extensa. Xuxa, É o tchan, Fat Family, Spice Girls, Ricky Martin, todos figuravam, felizes, entre os meus it-pertences. Outros tempos. Tempos em que o Google não me dava bom dia e nem me punha para dormir. Para ouvir as músicas novas das bandas que eu gostava, era preciso ouvir rádio. Quando não, dispor de fita cassete - metros, muitos metros de fita magnética para contar história. Não vou entrar no mérito, mas a internet facilitou bastante a vida das pessoas. Para o bem e para o mal. Me lembro que ouvia uma música incrível na rádio, e, por não ter como procurá-la para ouvir novamente, ficava muito tempo com seu refrãozinho tocando na minha cabeça. Hoje, com uma rápida pesquisa em tags, é possível encontrar o ano de lançamento, intérpretes, história; tudo. Não sei se é só uma impressão isolada, mas as músicas me soam muito mais cansativas. Esse processo acelerou a oxidação da música. Acabou-se aquela gostosa inquietação de esperar. Acabou a espera.
           Mas a estrela - ou seria, hoje, só uma anã-branca? - da postagem é o CD. Aquele elemento espelhado, com um furinho central, que já fez tanta gente sacudir o esqueleto dançar nos 90's, e hoje adorna, suspenso no ar por fios de nylon, a decoração de algumas festas prosaicas. E hoje, assim, sem mais nem porquê, me dei conta da silenciosa extinção do compact disc.
           Coincidente e ironicamente, me lembro da última vez que dei, de presente, um CD a alguém. Tem pouco tempo. Foi para um namorado old school que tive que, à época, ainda tinha em seu quarto um daqueles rádios com leitor para CD's. Tenho minhas dúvidas se ainda fabricam rádios assim. E você, leitor? Será que é capaz de se lembrar qual foi o último CD que deu para alguém, ou mesmo que tenha "se dado"? Na era D.G - leia-se Depois do Google -, isto é impensável.
            E fiz bem ao conter minha boa-intenção em agraciar meu namorado com tal peça. Ao interrogá-lo sobre o lançamento do novo álbum da banda em questão, ele me respondeu, prontamente, que já havia baixado. Lembrei, nesse instante, que foi justamente essa banda a pioneira na extinção da era-CD, disponibilizando o conteúdo de sua obra via download por um valor modesto.
            Fiquei quietinha. E economizei trinta reais.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

A história de jackson e a Moça do Outdoor

... até que um dia jackson se deu conta de que ela o observava insistentemente do alto dos cabos por onde estava suspensa. Entre um carro e outro que manobrava para abastecer, entre um moleque e outro que enxotava do posto, entre os trocos que entregava, lá estava ela, semi-imóvel, rolando na areia prateada duma praia cor-de-laranja, metida num vestido de tecido fino que, molhado, revelava toda a generosidade das carnes morenas cujo sol, eternamente poente e até então a única testemunha daquela visão, dispunha a iluminar estrategicamente os contornos da sereia bípede e solitária presa dentro daquele outdoor imenso que era só dela, só dela. Jackson foi ao banheiro, lavou o rosto, aquilo não podia estar acontecendo. A Moça do Outdoor não poderia estar olhando pra ele, porque se o estivesse, estaria fazendo-o, também, com cada um que ali passasse.
    Voltou para o posto, perturbado com a idéia de estar sendo visado por uma fotografia. Olhou para os lados, desconfiado de que alguém pudesse notar sua apreensão pelo seu olhar acabrunhado. Carros iam, vinham; os moleques de rua jogavam bolinhas coloridas para o alto, a fim de impressionar os donos dos carros, na esperança de ganharem alguma moeda. Filas se formavam para obterem GNV. Um homem saiu do carro para fumar um cigarro. Outro, para recalibrar o pneu traseiro. Uma mulher se maquiava no retrovisor, enquanto esperava, dentro do carro, pela sua vez de abastecer na fila do GNV. Mas jackson estava cada vez mais alheio ao movimento no posto, uma vez que a idéia crescente de que a Moça do Outdoor o estivesse fitando ficava clara em sua cabeça.
    Acabava o dia, e jackson deixava o trabalho. Em casa, encontrava o filho nos braços de sua mãe, já falando a língua da fome. Nada alentava o menino. A mãe reclamava das despesas geradas pelo neto, que a renda era pouca, que era bom que ele procurasse um lugar. Entrou no quarto com a criança, deitou-a na cama e, em seguida, deitou-se também. Com os olhos fixos no teto branco, pensou na Moça. Fechava os olhos, e ainda via a moça, engatinhando naquela areia toda, sozinha, gostosa, com mamilos que evidenciavam o desejo fruto de eras de solidão, por dentro daquele vestido que se confundia com a pele. A Moça vinha beijá-lo, aqueles milhares de beijos doces, com gosto duma fruta que ele não sabia o nome, cheios de ternura, cheios de lascívia. Ela era o melhor exemplar feminino que ele já havia visto.
    Mal jackson descansava dum dia, começava o outro, empurrando seu sono abruptamente, cheio da luz cortante que faz os sonhos sangrarem. O menino chorava. "Papai te ama, eu juro que um dia vou te dar tudo que você merece." "Bom dia, mãe". "Café tá na mesa, comprei mortandela." Jackson comia com rapidez, não podia se atrasar. No trabalho, os olhos não conseguiam ficar abertos, e atestavam isso pelos longos e intermitentes bocejos que jackson dava. "Jackson!", ele ouviu. "Jackson, eu estou aqui." Ele ouvia, olhava para os lados, olhava para os carros, mas não encontrava a origem da voz. Então, seguiu-se o pior arrepio que ele já havia experimentado. Hesitante, ele forçou as pálpebras e as levantou na direção que não queria: a Moça do Outdoor realmente estava falando com ele.
    "Por que você não acredita em mim, Jackson? Eu sei que você sabe que eu estou aqui, e que olho pra você o tempo inteiro." Jackson apertou os olhos, virou o rosto, respirou fundo. Ele não podia enlouquecer agora. Tinha um filho pequeno para criar sozinho. Tinha a mãe, que dependia do seu magro salário para sustentar a casa. Tinha alguns amigos com quem contar. Por que haveria de enlouquecer agora? "Jackson, olhe pra mim. Olhe pra mim, Jackson. "
    Jackson foi ao banheiro, colocou a cabeça debaixo da torneira, transtornado. Carlos, um amigo do trabalho, que entrava no banheiro no mesmo instante, deparou-se com a cena, espantado. "Que isso, jackson! Tá passando mal, cara?" jackson se levantou, com a água fria escorrendo pelo pescoço, e saiu sem responder ao amigo. Voltando ao trabalho, recebeu uma chamada de seu supervisor por sua distração na hora de entregar o troco a uma senhora. Arregalava os olhos para acordar, porque aquilo com certeza haveria de ser um sonho. Mas não era. Cerca de alguns instantes depois, furiosa com a rejeição, a Moça do Outdoor quis provar a jackson de que não era uma alucinação.
    Apoiando-se nas estruturas de ferro, desceu o pé esquerdo no chão do posto. Com cuidado, desceu também o pé direito. Sacudiu os cabelos, salpicados de areia e sal, e veio na direção de jackson. Já não havia ninguém mais no mundo.
     "Somos só nós dois. Acredita em mim agora?" jackson não conseguia responder. "Vem comigo. Nós nos amamos. Vem comigo, Jackson."
    Nesse instante, acontecia algo estranho à sua volta. As pessoas pareciam correr em câmera lenta, acenavam com os braços por ajuda. Mas jackson estava dormente, não conseguia entender. Ouviu uma explosão abafada, e viu mais pessoas correndo. Uma das colunas que sustentavam o posto veio ao chão, e ele finalmente entendeu o que se passava. Do outro lado da rua, transeuntes perplexos paravam para observar, impotentes.
    A moça segurou a mão de jackson, que, pela primeira vez, se sentiu alguém realmente importante. O medo havia ficado para trás. Ele não estava louco, estava mais lúcido que nunca. Estava caminhando rumo a uma vida nova, nova em folha; estava nadando para fora do útero urbano que tinha cheiro de óleo diesel, para nunca mais voltar. Estava ganhando uma certidão de nascimento. A cada passo que dava de mão dada com a Moça do Outdoor, Jackson pisoteava as algemas das contas de luz-água-telefone. Jackson estava indo embora. Ninguém viu, mas ele, de alguma forma, conseguiu entrar, junto com a Moça do Outdoor, no mundo crepuscular cor-de-laranja em que ela vivia. E desapareceu.    
 

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Jellyfish

Leve e fluida
Água d'água
sem memória
Livre e solta
Água adaga
A dança côncava de sua anágua
E seus cabelos d'água
Cortam e queimam
Sangram e morrem
Na beira da praia.