terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Amargo

Beijei teu ventre, e fiz-te cócegas
Velei tuas cóleras, trouxe de outros mundos
flores para a sua curiosidade.
Caí contigo sobre chuva pesada.
Eu vi você sorrir, em algum lugar que está tão distante
em algum lugar cujo caminho não lembro.
Nos engalfinhamos, tantas vezes,
como cão e gato
como gato e rato
como Rússia e Estados Unidos
só para tanto nos demorarmos
em longos beijos e abraços incontidos.
Esse é um tempo que parece estar a tantos mares de distância
em algum buraco de fechadura da minha infância
mas que eu ainda gosto de revisitar.
Tantos conselhos te dei
e tantas vezes errei
tantas, tantas vezes não te vi chorar
enquanto você crescia,
crescia,
crescia,
enquanto você se foi por lugares que não sei.
Um dia, num amargo surto cronológio, se foi a menina roliça que usava cachinhos.
E foi essa a pior morte que experimentei.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Sei que é verão

Sei que é verão
no suor das costas das moças
nas crianças descalças pela rua
no céu imenso de luas.
É verão!
Sei de sua chegada no samba quente das esquinas
Na cadência mole da noite que chega arrastada
às oito,
em hidrantes jorrando água para o alto
enquanto cachorros se sacodem inteiros.
Sei que é verão
quando senhoras fofoqueiras poem cadeiras à porta
e vão tecendo fios de assunto pelos muros
quando ouço o burburinho duma cidade inteira
no abafado que lateja sobre a pele
no tilintar dos ventiladores ruins.
Denunciam o verão
as promoções, os varejos humanos pra lá e pra cá,
as pipas no alto, o cheiro do churrasco, bronzeador,
chuva quente de fim de tarde.
É verão!
Tão suado e tão latente,
Tão vermelho e de repente
Que melhor mesmo é se molhar.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Se é amor, imbecilize

    De nada me valeriam as palavras mais re-buscadas do dicionário, aquelas de jeito forçoso, que parecem ter sido despertadas dum longo sono para serem deitadas, desconfortavelmente, nas linhas duma folha fria que se pretende carta de amor, na tentativa de chegar ao seu coração por essa via tão tortuosa. Essas palavras, inúteis e mudas, posto que não te dirão nada: só são velhos vocábulos vítreos e blindados. Nada sentem.
    Se é amor, não há cerimônias. Não há formalidades, laços, gravatas ou nós bem feitos; se é amor de fato, então a pieguice aí se impõe como a maior prova de que esse amor realmente existe. Porque o amor é brega. Brega, cafona, kitsch e pintado dum vermelho-escarlate que o anuncia no olhar paspalho dos que o carregam sem se dar conta. Mas esse é um luxo do qual só os amores verdadeiros podem se ufanar. Esse amor, tão fácil e tão simples, que não se identifica com etiqueta e franze a testa para os minimalismos, intelectualismos, teorias e definições pós-modernas, bla bla bla filosófico de gente que, oras, nunca amou direito, dada sua preocupação em academizar o amor.
    É que o amor gosta das coisas assim, extremadas. Gosta das provas de amor exageradas, de canções banais que qualquer Bon Jovi ou Steven Tyler possa compor depois de um homérico pileque. Identifica-se o amor pela sua incontinência - porque mesmo os mais sóbrios denunciam o amor que os afeta em qualquer invonluntariedade que evidencie-lhes os dentes.
    Meu amor fala a língua das flores. A língua da língua lânguida que escorrega sobre a outra, em movimentos líquido-circulares. O que sinto é tão seu que acredita ser a tua nuca o perímetro de pele mais delicioso de todos; e quando minha cabeça se permite emergir naquela pequena ilha de pêlos do seu colo, até acredito ser a pessoa mais protegida e feliz que já viveu.
    De toda essa e outras breguices que compõe-se o amor. Seja ele o amor de 5 ou 50 anos: se é amor, dispensa-se a razão, confia-se no instinto, pretere-se o bordão à estética. Fernando Pessoa sabia, e eu, agora que tenho você morando nas minhas linhas de expressão, também sei.
    Se é amor, imbecilize-se. E seja o imbecil mais feliz que conseguir.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Figueira do inferno

 A caneta vai, tonta, vomitar borrões inúteis na folha que se destina a ser mais um dos meus fantásticos romances. Com livros publicados, conquistei algum prestígio nos circuitos literários cuja única função é inflar o ego e as pseudocertezas duma gente tão perdida quanto a mulher que encontro despenteada no espelho pelas manhãs. E essa cidade é tão pequena e asfixiante que me provoca longos bocejos.

 Eu queria ser outra pessoa.

 Queria não ser tão densissimamente melancólica e branca como o medo calmo do vazio. Queria ser só mais uma daquelas mulheres negras e miseráveis que encontro no caminho de volta pra casa, com o pesar de todo um dia nos olhos. E queria aquilo que viria, tão redentoramente, como chuva pesada a ser bebida por cada fenda árida do meu sertão: um filho. Um filho que sairia de mim para o mundo. Um filho para dar um nome, abraços intermináveis e uma manta, grossa e quente para proteger. Mas o que para as miseráveis negras que moram nas proximidades do fétido canal que circunda a minha casa parece ser tão inerente à condição daquela que porta cromossomos em cruz, pra mim não vai além de um espesso e endometrioso muro de sangue.

 Não se trata esterilidade. Havia até um namorado, havia até muitos namorados. Mas existe um pequeno demônio infanticida em mim que repele o crescimento dos fetos e os converte em discretas e lacrimosas manchas de sangue na roupa que me descem pelo sexo. Que diabo de mulher sou eu que não consegue carregar uma criança no ventre? O que vejo, quando olho pra dentro e não vejo nada mais que uma criatura oca, cujo ovário podre não estende à mão à vida que vem de fora?

 Os inúmeros abortos espontâneos me fragmentaram em mil mulheres que gritam dentro de um véu, e cada uma dói mais que a outra. Eu só queria um filho. Um filho que viesse pra comer cada livro inócuo que eu escrevi. Que viesse salgar a placa uterina que me impede de experimentar o gozo duma criança que não vai me chamar pelo nome, mas de mãe. Mas certas mulheres não foram feitas para a maternidade. Certas mulheres nunca saberão o que é sentir a respiração quente de uma criança no peito. São eternas tias das filhas das amigas, são pedagogas de sucesso, são velhinhas bondosas que são avós de todo mundo e não são avós de ninguém. Vagam por labirintos de surdez. Sem irmãs ou irmãos, o que vai me restar é a poeira carbônica que vai me consumir. E todos esses livros vão sucumbir junto comigo, vão formar as paredes da cova úmida que vai me abrigar pelos milênios seguintes, porque eu não dei ao mundo um filho. Eu não contribuí para a posteridade, eu não pude.

 Existem muitas mulheres por aí felizes e sem filhos, e sua felicidade não é falsa. Mas não estou entre elas.

 Serei responsável pelo fim da minha linhagem. Meu filho não vai contar a minha história e nem vai dizer "minha mãe escrevia livros", porque meu filho não existe. 

 Voltar à origem tão vazia quanto as folhas de papel cuja brancura não maculei traz um sentimento de vazio impreenchível. Telas brancas podem ser perturbadoras.

 Mas não é para mim. Eu sinto que não é. Para as mulheres escolhidas, a prole. Para as outras, grandes e felpudos gatos brancos.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Grain of salt

Eram felizes em sua pequena bolha de sorrisos. Estavam confortáveis quando se entreolhavam e conseguiam ver, além do seu amor refletido na córnea do outro, o amor que transbordava de dentro do olhar alheio. A rotina nunca havia sido tão deliciosa: só o fato de estarem juntos seria o bastante para um dia nada menos que fantástico; seria o equivalente àlguma viagem para o lugar que eles tão bem já conheciam: a bolha de sorrisos fáceis. Ele era tão atencioso; ela era tão compreensiva, e quem quer que os fitasse de longe poderia facilmente imprimí-los num filme tão à Doris Day. Talvez tenha sido isso.
 Um dia ele acordou com dúvidas. Perguntou a ela coisas que ela havia dito no dia anterior, num descuido de atenção; algo que disse na infeliz tentativa de soterrar uma lacuna em uma frase. Ela esclareceu, nada passou de uma colocação mal feita e sem propósito, e de volta à bolha de sorrisos. Mais tarde, ela sentiu a ponta traiçoeira do ciúme. A ponta que não dilacera e nem queima, mas cujo incomodar lento o inconsciente perfura e se espraia pelo sangue, feito um maldito câncer.
 Viu, numa gaveta onde velhas palavras inofensivamente dormiam, um pretexto estúpido para que a dúvida - agora, sua - a invadisse sem esforço. Conforme revirava a gaveta, revisionava o que sentia. Leu sobre felicitações dos amigos dele sobre um noivado proposto antes que ela entrasse na vida dele, antes, muito antes, quando ele tinha outra vida e uma outra moça. Pondo a confiança à prova, vasculhava incessante, como quem deseja que a mente, de tão cega, comece a ver o que não há. E afundando-se naqueles papéis avulsos, contestou seu amor. Fez a indecência de contestá-lo, apenas por experimentar na língua fria a onda nauseante e amarga do ciúme, e pior: um ciúme do passado; do que não volta. Um ciúme que ela estava exorcizando, com esses fantasmas irrequietos que nascem nas paredes da consciência que não está tranquila, afinal. Ciúme. Do que ficou.
 Ela então fechou a gaveta, mas acabou trancando o pé do lado de dentro. Amava-o demais, e aquelas considerações em nada abalariam o caminho que eles dois estavam trilhando juntos. Ficou alguns momentos pensando sobre o que havia feito, devassando, assim, a intimidade daquele que amava. E não sentiu culpa; só havia sido tomada de um medo fútil e efêmero que quiçá desaparecesse com a voz dele dizendo para ela exatamente o que desejava ouvir. Passou, está no passado. Não há motivo pra se preocupar. E então encontraria novamente o ponto por onde havia se enviesado nessa trama escura de fotos, de cartas, de detalhes cujo tempo, para o bem ou para o mal, havia conservado nessa gaveta de Pandora que sua curiosidade a levou a investigar.
 Voltou à bolha de sorrisos com o calcanhar ferido.