quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Amores ficcionais

Sofia se levanta e contempla no espelho o inchado nariz ainda sob as faixas brancas. Boceja uma solução com flúor e confere as horas: 6:30. Em 40 minutos, ela deve estar linda e impecável num estúdio frio, no coração de uma Tóquio hostil com anoréxicas de 16 anos. Enquanto isso, em meio ao restante de sono, vê, difuso nas imagens débeis, o Bê. O Bê chegando para recebê-la no aeroporto. Para abraçá-la, aqueles braços forts contornando sua cintura esquálida, aquela voz gostosa no seu ouvido, acabou Sô, vamos pra casa.
Noutro canto do mundo, mlle Liz não sabe como conviver com o gosto fresco do sexo de Virginie ainda em sua boca. Ela queria, no seu íntimo, ser como a prima, a mlle Ceault, uma adorável libertina; mas o medo da guilhotina era muito maior. Era uma França de dias secos e despedaçados, e Virginie se casaria com o porco Willem, aquele maldito camponês que desconhecia seu corpo por completo. Ah, se mlle. Liz pudesse matá-lo; tão grande era sua devoção por Virginie! Ah, ignominioso ciúme! Ela, que tanto amava a indiferente e impossível Virginie...
Anoitece em Havana. Armandito sai de sua suntuosa residência para encontrar-se com Bea, ainda procurando razão para esta loucura enquanto o coração sambava em seu esôfago, sem compasso. O exército de Batista fuzilaría-os tranquilamente, se suspeitasse de qualquer coisa. Se descobrissem que Bea era uma das revolucionárias então, muito pior ficaria. O medo cresceu em Armando, dividindo espaço com seus poros, elevando seus pêlos. E ele voltou, e nunca mais viu Bea outra vez.
Jorge estava velho, e sabia disso. Sabia que estava se decompondo em sua gasta cadeira de balanço de palha. Dora, a filha, lhe fazia o café, preto como ele. Café forte, café cheiroso. Fumando um cigarro, ele despretensiosamente pousou os olhos numa foto da velha Marta, que em outro dia, num lugar do passado, fora só a Martinha. Aquela neguinha linda que sambava, tanto na Sapucaí quanto sobre seu indefeso coração. Ah, Martinha! Era Iansã encarnada. Aqueles olhos lodosos. Tuas curvas. Em 43 anos de casamento, a velha Marta não fora dele um só dia. E ele sabia disso tanto quanto tinha plena consciência do pouco tempo que lhe restava. Três anos antes, um AVC fulminou Martinha, deixando o velho Jorge mais seco, mais amargo, e ainda mais sozinho. Ruim com ela, muito pior sem ela.
Enquanto isso, a primavera explodia em Amsterdam. Os campos amplos dos moinhos coloriam-se em flores, dos mais distintos formatos, tamanhos, nuances. Seth desce as escadas correndo, aos tropeços. Beija sua mama, e sai em disparada para mergulhar na imensidão daquela pintura viva que se desenha na sua frente. Tragado pelas flores, ele vai coletando cada uma, até que bate à porta de Margot. Ela fazia 8 anos, e usava um vestido de lacinhos amarelos. Timidamente, entrega-lhe o buquê meio desajeitado que compôs, e ganha um pequeno beijo com gosto de maçã verde dos róseos lábios de Margot. Aquele seria o maior acontecimento na vida de Seth. Ou, pelo menos, daqueles 9 anos.
Todos os amores são absurdamente possíveis. Basta meia colher de surrealismo e uma dose a gosto de vontade.

Um comentário:

Fê Colcerniani disse...

''Todos os amores são possíveis''
O seu texto me provou isso! Ha!
Adorei seu blog!
Beeeijos