sábado, 30 de agosto de 2008

Língua que se auto-devora

Já reparou como a gente encurta as palavras - principalmente nós, cariocas? - É medonho, mas já tá entranhado na gente duma tal forma que é irreversível. Não é preciso ir muito longe pra sentir isso. E sentir muito, com o perdão do trocadilho. Antes, a moda era falar lusitanamente, até pela nossa (infeliz) colonização. "Casar-hei, fazer-hei, "topar-hei". Mas a língua, voraz, abocanhou a letra "H" e o hífen com tanta força que as fez sumir, aglutinando todo o resto numa tão só, simples e moderna neo-estrutura: "casarei, farei, toparei". Mas isso também já está vencendo. Aliás, você não "irá gostar" deste blog; você "vai gostar" e acabou. Daqui a um tempo, vai ser só "arram" ou "ahn-ahn". E o gerúndio, coitado? Logo logo não haverá mais "D" (a língua e sua fome insaciável). É só "fazeno, dançano, cagano, moveno". E isso - pasmem! - não está errado. É só um bocado trangressão, mas errado não está.
As mudanças lingüísticas são tão sutis que às vezes faço a besteira de pensar que a língua está perdendo sua base de permanência. Mas não, não está. É só meu modo besta de pensar que é efêmero mesmo. Mas é gozado. Essas pequenas adaptações - afinal, é só isso o que elas são, adaptações, como uma puta que se adeqüa ao jeito de transar do cliente - estão aí para atender à necessidade de uma massa faminta por uma língua cada vez mais econômica, direta, que diga o que tem pra dizer e pronto. E seguindo esse vício, a língua corre também, a passadas largas, com medo de uma morte dolorosa que se chama desuso. A língua é um chicletão estatizado. Tá na boca de todos e todo mundo estica, puxa, enrola, faz o que quiser dela, alguns com um pouco de culpa e outros sem nenhuma. É assim mesmo.
A língua se auto-devora, é o maior dos origamis e se desdobra; é a escrava de uma massa cada vez mais frenética e que só sabe uma coisa: que quer falar, com uma agilidade de interpretação que beira o absurdo. Ela apenas reflete toda a cultura de um povo sedimentada nas suas costas cansadas. Mas tudo bem. Ela só existe com essa função mesmo, e não se queixa: vai estar lá, pronta pra servir e agradar a todo e qualquer um que queira utilizá-la.

Um comentário:

ROQUE RASCUNHO disse...

Bela incursão por esta língua que nos enrola e liberta, um belo ensaio. Se ele estivesse num livro de crônicas, contos e ensaios seus, eu bem comprava! bj!