terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Amargo

Beijei teu ventre, e fiz-te cócegas
Velei tuas cóleras, trouxe de outros mundos
flores para a sua curiosidade.
Caí contigo sobre chuva pesada.
Eu vi você sorrir, em algum lugar que está tão distante
em algum lugar cujo caminho não lembro.
Nos engalfinhamos, tantas vezes,
como cão e gato
como gato e rato
como Rússia e Estados Unidos
só para tanto nos demorarmos
em longos beijos e abraços incontidos.
Esse é um tempo que parece estar a tantos mares de distância
em algum buraco de fechadura da minha infância
mas que eu ainda gosto de revisitar.
Tantos conselhos te dei
e tantas vezes errei
tantas, tantas vezes não te vi chorar
enquanto você crescia,
crescia,
crescia,
enquanto você se foi por lugares que não sei.
Um dia, num amargo surto cronológio, se foi a menina roliça que usava cachinhos.
E foi essa a pior morte que experimentei.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Sei que é verão

Sei que é verão
no suor das costas das moças
nas crianças descalças pela rua
no céu imenso de luas.
É verão!
Sei de sua chegada no samba quente das esquinas
Na cadência mole da noite que chega arrastada
às oito,
em hidrantes jorrando água para o alto
enquanto cachorros se sacodem inteiros.
Sei que é verão
quando senhoras fofoqueiras poem cadeiras à porta
e vão tecendo fios de assunto pelos muros
quando ouço o burburinho duma cidade inteira
no abafado que lateja sobre a pele
no tilintar dos ventiladores ruins.
Denunciam o verão
as promoções, os varejos humanos pra lá e pra cá,
as pipas no alto, o cheiro do churrasco, bronzeador,
chuva quente de fim de tarde.
É verão!
Tão suado e tão latente,
Tão vermelho e de repente
Que melhor mesmo é se molhar.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Se é amor, imbecilize

    De nada me valeriam as palavras mais re-buscadas do dicionário, aquelas de jeito forçoso, que parecem ter sido despertadas dum longo sono para serem deitadas, desconfortavelmente, nas linhas duma folha fria que se pretende carta de amor, na tentativa de chegar ao seu coração por essa via tão tortuosa. Essas palavras, inúteis e mudas, posto que não te dirão nada: só são velhos vocábulos vítreos e blindados. Nada sentem.
    Se é amor, não há cerimônias. Não há formalidades, laços, gravatas ou nós bem feitos; se é amor de fato, então a pieguice aí se impõe como a maior prova de que esse amor realmente existe. Porque o amor é brega. Brega, cafona, kitsch e pintado dum vermelho-escarlate que o anuncia no olhar paspalho dos que o carregam sem se dar conta. Mas esse é um luxo do qual só os amores verdadeiros podem se ufanar. Esse amor, tão fácil e tão simples, que não se identifica com etiqueta e franze a testa para os minimalismos, intelectualismos, teorias e definições pós-modernas, bla bla bla filosófico de gente que, oras, nunca amou direito, dada sua preocupação em academizar o amor.
    É que o amor gosta das coisas assim, extremadas. Gosta das provas de amor exageradas, de canções banais que qualquer Bon Jovi ou Steven Tyler possa compor depois de um homérico pileque. Identifica-se o amor pela sua incontinência - porque mesmo os mais sóbrios denunciam o amor que os afeta em qualquer invonluntariedade que evidencie-lhes os dentes.
    Meu amor fala a língua das flores. A língua da língua lânguida que escorrega sobre a outra, em movimentos líquido-circulares. O que sinto é tão seu que acredita ser a tua nuca o perímetro de pele mais delicioso de todos; e quando minha cabeça se permite emergir naquela pequena ilha de pêlos do seu colo, até acredito ser a pessoa mais protegida e feliz que já viveu.
    De toda essa e outras breguices que compõe-se o amor. Seja ele o amor de 5 ou 50 anos: se é amor, dispensa-se a razão, confia-se no instinto, pretere-se o bordão à estética. Fernando Pessoa sabia, e eu, agora que tenho você morando nas minhas linhas de expressão, também sei.
    Se é amor, imbecilize-se. E seja o imbecil mais feliz que conseguir.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Figueira do inferno

 A caneta vai, tonta, vomitar borrões inúteis na folha que se destina a ser mais um dos meus fantásticos romances. Com livros publicados, conquistei algum prestígio nos circuitos literários cuja única função é inflar o ego e as pseudocertezas duma gente tão perdida quanto a mulher que encontro despenteada no espelho pelas manhãs. E essa cidade é tão pequena e asfixiante que me provoca longos bocejos.

 Eu queria ser outra pessoa.

 Queria não ser tão densissimamente melancólica e branca como o medo calmo do vazio. Queria ser só mais uma daquelas mulheres negras e miseráveis que encontro no caminho de volta pra casa, com o pesar de todo um dia nos olhos. E queria aquilo que viria, tão redentoramente, como chuva pesada a ser bebida por cada fenda árida do meu sertão: um filho. Um filho que sairia de mim para o mundo. Um filho para dar um nome, abraços intermináveis e uma manta, grossa e quente para proteger. Mas o que para as miseráveis negras que moram nas proximidades do fétido canal que circunda a minha casa parece ser tão inerente à condição daquela que porta cromossomos em cruz, pra mim não vai além de um espesso e endometrioso muro de sangue.

 Não se trata esterilidade. Havia até um namorado, havia até muitos namorados. Mas existe um pequeno demônio infanticida em mim que repele o crescimento dos fetos e os converte em discretas e lacrimosas manchas de sangue na roupa que me descem pelo sexo. Que diabo de mulher sou eu que não consegue carregar uma criança no ventre? O que vejo, quando olho pra dentro e não vejo nada mais que uma criatura oca, cujo ovário podre não estende à mão à vida que vem de fora?

 Os inúmeros abortos espontâneos me fragmentaram em mil mulheres que gritam dentro de um véu, e cada uma dói mais que a outra. Eu só queria um filho. Um filho que viesse pra comer cada livro inócuo que eu escrevi. Que viesse salgar a placa uterina que me impede de experimentar o gozo duma criança que não vai me chamar pelo nome, mas de mãe. Mas certas mulheres não foram feitas para a maternidade. Certas mulheres nunca saberão o que é sentir a respiração quente de uma criança no peito. São eternas tias das filhas das amigas, são pedagogas de sucesso, são velhinhas bondosas que são avós de todo mundo e não são avós de ninguém. Vagam por labirintos de surdez. Sem irmãs ou irmãos, o que vai me restar é a poeira carbônica que vai me consumir. E todos esses livros vão sucumbir junto comigo, vão formar as paredes da cova úmida que vai me abrigar pelos milênios seguintes, porque eu não dei ao mundo um filho. Eu não contribuí para a posteridade, eu não pude.

 Existem muitas mulheres por aí felizes e sem filhos, e sua felicidade não é falsa. Mas não estou entre elas.

 Serei responsável pelo fim da minha linhagem. Meu filho não vai contar a minha história e nem vai dizer "minha mãe escrevia livros", porque meu filho não existe. 

 Voltar à origem tão vazia quanto as folhas de papel cuja brancura não maculei traz um sentimento de vazio impreenchível. Telas brancas podem ser perturbadoras.

 Mas não é para mim. Eu sinto que não é. Para as mulheres escolhidas, a prole. Para as outras, grandes e felpudos gatos brancos.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Grain of salt

Eram felizes em sua pequena bolha de sorrisos. Estavam confortáveis quando se entreolhavam e conseguiam ver, além do seu amor refletido na córnea do outro, o amor que transbordava de dentro do olhar alheio. A rotina nunca havia sido tão deliciosa: só o fato de estarem juntos seria o bastante para um dia nada menos que fantástico; seria o equivalente àlguma viagem para o lugar que eles tão bem já conheciam: a bolha de sorrisos fáceis. Ele era tão atencioso; ela era tão compreensiva, e quem quer que os fitasse de longe poderia facilmente imprimí-los num filme tão à Doris Day. Talvez tenha sido isso.
 Um dia ele acordou com dúvidas. Perguntou a ela coisas que ela havia dito no dia anterior, num descuido de atenção; algo que disse na infeliz tentativa de soterrar uma lacuna em uma frase. Ela esclareceu, nada passou de uma colocação mal feita e sem propósito, e de volta à bolha de sorrisos. Mais tarde, ela sentiu a ponta traiçoeira do ciúme. A ponta que não dilacera e nem queima, mas cujo incomodar lento o inconsciente perfura e se espraia pelo sangue, feito um maldito câncer.
 Viu, numa gaveta onde velhas palavras inofensivamente dormiam, um pretexto estúpido para que a dúvida - agora, sua - a invadisse sem esforço. Conforme revirava a gaveta, revisionava o que sentia. Leu sobre felicitações dos amigos dele sobre um noivado proposto antes que ela entrasse na vida dele, antes, muito antes, quando ele tinha outra vida e uma outra moça. Pondo a confiança à prova, vasculhava incessante, como quem deseja que a mente, de tão cega, comece a ver o que não há. E afundando-se naqueles papéis avulsos, contestou seu amor. Fez a indecência de contestá-lo, apenas por experimentar na língua fria a onda nauseante e amarga do ciúme, e pior: um ciúme do passado; do que não volta. Um ciúme que ela estava exorcizando, com esses fantasmas irrequietos que nascem nas paredes da consciência que não está tranquila, afinal. Ciúme. Do que ficou.
 Ela então fechou a gaveta, mas acabou trancando o pé do lado de dentro. Amava-o demais, e aquelas considerações em nada abalariam o caminho que eles dois estavam trilhando juntos. Ficou alguns momentos pensando sobre o que havia feito, devassando, assim, a intimidade daquele que amava. E não sentiu culpa; só havia sido tomada de um medo fútil e efêmero que quiçá desaparecesse com a voz dele dizendo para ela exatamente o que desejava ouvir. Passou, está no passado. Não há motivo pra se preocupar. E então encontraria novamente o ponto por onde havia se enviesado nessa trama escura de fotos, de cartas, de detalhes cujo tempo, para o bem ou para o mal, havia conservado nessa gaveta de Pandora que sua curiosidade a levou a investigar.
 Voltou à bolha de sorrisos com o calcanhar ferido.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Manifesto do homem medíocre

 O homem medíocre é suas roupas. Seu carro do ano, seu I-Phone, seu apartamento de frente pra praia e sua voz sobre as outras. O homem medíocre chega ao trabalho, se senta na ponta da mesa, enquanto divaga dentro de uma sala que é pouco menor que o seu umbigo, para uma meia dúzia de outros homens medíocres que ficaram cadavéricos de tanta informação. O homem medíocre se parece com outro homem medíocre, e quando olha pra ele, se reconhece.

 O homem medíocre é, assim como esse medíocre texto, repetitivo. Foi, um dia, crivado de sonhos. Quem saberá? Mas agora é só mais uma estátua em sua sala de estar decorada por um alemão que é o último nome em design. O homem medíocre tem bons hábitos. É ponderado, tem boa educação, bom vocabulário e provavelmente até boas fezes. Fez alguma dezena de testes vocacionais para finalmente se encontrar em empreendedorismo e é adepto das grandes novidades. Está trancado em sua pequena corte de Versailles enquanto lá fora estouram mil revoluções das quais permanentemente se abstém, ou mesmo nunca ouviu falar. O homem medíocre é um robô de lata nos pântanos da modernidade.

 Costuma agradar-se irrefletidamente daquilo que o níquel reflita. O homem medíocre é uma erva daninha que pode se dar em todo e qualquer lugar. O homem medíocre almoça oxigênio e arrota fois gras. Transita em ambientes que lhe são de todo estranhos, não fosse sua ambição para ascender na escala da mediocridade. O homem medíocre muitas vezes se envergonha de onde veio.

O homem medíocre não veio pra brincar. É possível que desconheça essa palavra. Não afrouxa o cinto, nem o suspensório, nem descontrai a mão. O homem medíocre está bem-casado e recorre às putas que vão coroá-lo, porque ele pode pagar. Não franze uma sobrancelha de preocupação para com qualquer outra coisa que não orbite necessariamente em torno dele. O homem medíocre está disperso dentro de si.

 A vida do homem medíocre termina como se nunca houvesse existido. Porque um homem medíocre não imprime lembranças nas pessoas. Sua presença é esquecível, sua pertinência é contestável; ele é um oco onde se bate e se encontram as traças, dormindo de barriga cheia.

 O homem medíocre é um eterno desatento. Ambiciona, e então corre. Está correndo, mas pra chegar a lugar nenhum. Ele está em desencontro com as coisas mais bonitas, anda em círculos orientados por sua bússola nasal. Tem uma grande debilidade em nutrir sentimentos profundos, porque não se liga, porque não se liga. Assina cinco revistas diferentes por mês e, com as notícias que lê, também limpa seu cu.

 O homem medíocre passa longos minutos do seu dia contando dinheiro. Seja em notas de dez, em notas de cem. É alheio às flores que estão trancadas do lado de fora de sua janela de vidro, ao sol teimoso que vai nascer, aos gritos de socorro que escuta de si mesmo e dá de ombros.

O homem medíocre é uma criança de olhar perdido num velho retrato.

Oi, gente!

Tô voltando, depois de um tempo ausente. Sim, ausente por opção. Por opção à não-pensância, ao ócio voluntário, às longas horas olhando pro teto sem fazer nada. Venho com cinco novos títulos fresquíssimos, mas não prometerei nada por enquanto porque tenho problemas com prazos, mesmo quando eles são de mim para comigo mesma. Então, vamos. Me dá o seu olhar que eu te dou as minhas palavras.
Mas pisemos devagar, devagarinho. A graça está, também, na malemolência desse se-dar derramado feito mel.
Derramadinho.

domingo, 27 de junho de 2010

Encontros paralelos


Era um dia cheio, e tudo que ele queria era ir pra casa. Começava a ventar mais forte, há minutos o jornal noticiava que havia a possibilidade de um temporal. Ele deixaria seu trabalho em pouco menos de meia-hora, um escritório-ilha onde depositava um terço de uma vida vivida pela metade. Cabível, num mundo cheio de limitações que ditam respeitabilidade. Digitava automaticamente o fechamento de um relatório. Havia uma foto de Júlia na escola, havia outra de Júlia com o cachorro, e também uma de Lúcia com ele numa viagem. Mas os ponteiros giravam.
 Quando ele deixou o prédio, o vento fazia espirais com os jornais de ontem no chão da rua. As pessoas corriam buscando marquises, os carros avançavam sinais. O céu havia se fechado como há muito ele não prestava atenção: era um cinza de uma beleza diferente. Seu carro estava estacionado em outra rua, o que o faria andar um pouco. Num cruzamento, sinal vermelho. Ele, que odiava esperar. Mas foi justamente naquela espera que não duraria tanto, justamente naquela espera que não iria além de sessenta segundos; que ele perdeu os olhos num ventre de mulher proeminente, que abrigava uma criança. Quando levantou o olhar, o choque: Ana. Ana. Trinta segundos. Ana do outro lado, tentando pôr os cabelos atrás da orelha; Ana com a mão direita a sustentar a parte inferior da barriga. Vinte segundos. Ana atende um celular e sorri, enquanto busca algo dentro da bolsa. Cinco segundos; Ana olha para a luz do sinal que iria mudar. E enquanto as pessoas engolem o cruzamento, como um vazamento d'água que correu para a superfície, ele se reteve por dois segundos para seguir o fluxo, afinal. E quando Ana o reconheceu, quando ele reconheceu o estrago que haviam feito ao apodrecer seu corpo com sêmen ali injetado, um sêmen que não era dele num ovário que havia sido dele; quando ela esboçou um sorriso doce, que devolvia à memória dele os contornos que ela tinha aos dezoito anos de idade, quando ele se deu conta de todo esse universo que morava dentro de um segundo, sua covarde reação foi de sorrir, e acenar para aquela Ana que era outra, que hospedava uma criança que ele amaldiçoou com o olhar; uma Ana que teria sido sua se suas vidas fossem outras, se Ana não passasse de uma maldita puta infeliz que deixava-se governar pela leviandade de um par de calças ou se não fosse tão intensa. E ele a perdeu no meio da multidão, bem como a havia encontrado.
 No outro dia, ele tinha 19 anos, e um monte de chamadas não atendidas de Janaína, Beatriz, Mariana, Letícia. Estava atrasado, enquanto a mãe o despachava da cama com traulitadas de cinto. "Vai trabalhar, moleque! Some daqui! Olha a hora, Pedro! Corre, ô infeliz!" Ele vestiu a primeira camiseta amarrotada que achou no meio do armário, escovou os dentes e olhou-se no espelho. Voltou ao quarto. "Garoto, você ainda não foi?! O que tá faltando?!" "Mãe, que patrão vai me admitir com uma camiseta do Sexy Pistols? Não dá!". A mãe riu, enquanto ele, ainda descabelado e trocando de roupa, deixava a casa às pressas.
 Esperava pelo ônibus, olhando o relógio, tenso. Mariana mandara uma mensagem. "Adorei a noite de ontem. Me liga, beijos." Ele sorriu pra si, enquanto olhava com desconfiança e irreverência para as outras pessoas que também esperavam por condução. Chega o ônibus, e ele se afunila para tomá-lo. Senta-se nas poltronas do meio, quando nota, na primeira poltrona, uma mulher que lhe chama atenção. Nem magra, nem gorda, nem bonita, nem feia, nem isso, nem aquilo: apenas diferente; dum tipo que não admite categorizações conhecidas. De perfil, boca e nariz grandes, cabelos caindo pelo ombro, e um jeito estranho no olhar, como se se insinuasse, quando talvez não fosse isso. Ela conversava com uma amiga que estava sentada na outra poltrona, e ficou um bom tempo observando a maneira como falava. Bem pontuada, gesticulativa, passava a língua nos lábios para umedecê-los muitas vezes. Em uma ocasião, suspendeu os cabelos e fez um coque, o que permitiu que Pedro notasse um símbolo que desconhecia tatuado em sua nuca. Aquilo havia assaltado seus sentidos, e ele havia ficado absurdamente atraído por aquela mulher. Não conseguia parar de olhar para ela; queria conhecê-la, queria conversar com ela, queria pagar-lhe uma cerveja, e queria, acima de tudo, devorá-la quando a noite chegasse, beber cada gota do seu suor numa transa que não acabaria nunca. O trânsito em total congelamento. Um acidente na Perimetral, diziam. Mas Pedro não queria saber de nada disso. Por ele, que assim ficasse, que ele teria mais tempo de contemplar sua musa que não tinha nome. Ela parecia ter uns vinte e dois anos. Era morena, morena duma morenice amazonense que a gente não vê todo dia. Mas era cruel. E expressou essa crueldade quando abortou o prazer ocular do estranho que a fitava quando levantou-se, anunciando para a amiga que desceria no próximo ponto. "Tchau, Bete, muito bom te rever, menina! Me liga pra gente combinar de sair!" "Vamos sim, Ana! Pode deixar que eu te ligo! Fica com Deus!". Ele havia descoberto seu nome. Ana. Será que era composto? Como em Ana Cláudia, Ana Clara, Ana Maria? Mas ele não sabia. E nunca saberia. Então ficava uma "ana" que podia funcionar de sufixo pra um monte de coisa. Profana, insana, leviana, tirana. A observou descer, e quando conseguiu olhá-la nos olhos, ela o olhou e sorriu discretamente. Ele quis quebrar os vidros naquele instante para trocar apenas duas palavras com ela, mas sabia que não estava em nenhum filme de Tarantino. Seguiu seu caminho, com os grandes olhos castanhos colados no vidro, sem nada observar além do próprio.
 Duas semanas atrás, Pedro fez sessenta e cinco anos. Foi uma festa incrível. A neta, Carolina, trouxe o bolo nas mãos pequenas, os netos maiores encheram bolas coloridas por toda a casa. Havia toda uma alegria que até o incomodava, ranzinza que era, no fundo. Não gostava de festas. Mas ao ver os esforços da família em iluminar-lhe um pouco as rugas, fingiu que estava tudo bem. Soprou as velas sem fazer pedidos. E ali estava ele agora. Acabara de correr pela ciclovia, ofegava, bebia água. Todos lhe diziam que ele estava muitíssimo bem e conservado, para a idade que tinha. O que ninguém sabia é que a aparente conservação era uma bobagem perto do rombo emocional que vinha alimentando desde que havia parado de trabalhar. Sentir-se inútil era confinar-se a uma prisão de inércia, e era assim que o velho Pedro se sentia. Não sabia ser devagar e não sabia depender de ninguém. Sentia que começava a contagem decrescente de tempo na dor nas pernas, nas vistas falhas, na respiração insuficiente, na memória débil. Mas havia coisas que ele não esquecia, e nem poderia.
 Enquanto fazia seu pequeno e introspectivo balanço pessoal, um grupo de pessoas se aproxima, com câmeras e aparelhos de filmagem. Deveriam estar produzindo algum filme. O velho alheio observa aquele movimento, mas sente seu coração parar por um milissegundo quando reconhece alguém de seu passado em frente a todas aquelas câmeras. Seus cabelos estavam brancos e mais ralos, o corpo havia ganhado adiposidades características da idade avançada, havia um singelo óculos sobre o peito, mas os olhos... ela tinha os mesmos olhos de antes! Ele não conseguia dizer nada, estupefato que estava depois de tantos anos perdidos para promissórias, mudanças, filhos, enterros, viagens. E agora sentia-se como um adolescente de treze anos diante do frescor de um possível primeiro beijo. Ele não poderia deixá-la ir, não agora.
 "Ana!", chamou-a de longe. Ela procurou a origem da voz, e o avistou.
 "Pedro... é você?" Ela mal acreditava naquilo. Que tipo de peça seria aquela? E se abraçaram longamente. Ela havia se tornado atriz aos inacreditáveis quarenta anos, e fazia toda sorte de filmes B com a entrega de uma atriz renomada. Ele estava se aposentando, involuntariamente, por recomendações médicas. Ela morou dois anos na Rússia, três na Inglaterra, um na Hungria e trabalhou na Tailândia. Ele não havia ido além do Rio de Janeiro pouco mais que duas vezes durante toda a sua vida. E ali estavam. O pessoal da filmagem recolhendo o equipamento e os dois conversando. Ambos bem-casados, com filhos bem criados, com netos, e com um disfarçável desejo por trás da postura recatada que traz a terceira idade.
Trocaram celulares. Se reencontraram, no mesmo lugar. Se reencontraram, muitas outras vezes. Sim. Estavam tendo um caso. Sem levantar suspeitas, sem grandes espectativas. Era um outro tipo de intimidade. Era um redescobrir o já descoberto, mas ainda assim era tão interessante. Afagar a pele enrugada. Beijar na boca e fazer sexo. Era a mais extraordinária experiência da vida dos dois. Com quarenta anos de atraso, mas viria justificar a lacuna como se essa não existisse.  
  Pedro acorda, assustado. Olha para a janela e vê o tempo fechado. Percebe que não irá enfrentar um trânsito fácil ao sair do escritório. Toma as chaves, e vai para casa. Júlia o espera para os deveres de casa.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Mas ainda não somos íntimos

 Sim, eu tenho o que contar sobre você. Posso contar das estrelas que você me ensinou a ver. Das noites em claro na praia, quando seu peito aquecia minhas costas, e eu, ainda bem, de nada sabia. Posso contar das nossas aventuras, das coisas mais impensáveis que nós fizemos juntos para, logo depois, rirmos um da cara do outro, e rirmos, e rirmos, e rimos. Que ordinária e barata felicidade. E você, que lançava conchas do mar na minha discreta caverna umbilical num fim de tarde qualquer; você que me levantava pelas pernas e me carregava, em meio aos meus pedidos de "me põe no chão!", como um troféu que pretendia levar pra casa.  Mas eu de nada sabia.

 É bom ter as memórias. É como se a gente vivesse um pouquinho de novo, mas por uma projeção em holograma, onde somos espectadores de nós mesmos. Como quando nós pseudofilosofávamos, longas horas, tarde da noite na rede. Eu anelava os seus cabelos e você, alisando minhas pernas. Ou o nosso segundo porre, porque o primeiro marcou a noite colorida na qual nos conhecemos. Foram dias paralelos.

 Acontece que eu acabei acostumando, falha minha. Estava fora de cogitação, mas me acostumei com sua maneira boba e incisiva de sorrir com deboche sobre as coisas, de fazer piada interna com tudo o que acontece e lançá-las no ar nos momentos que não me permitiam meu livre riso. Acordamos e dormimos juntos, durante dias. Você andou comigo de mãos dadas pelas ruas, conheceu minha família, e por um brevíssimo período ensaiou fazer parte dela. Mas ainda não somos íntimos. Pertencemos a universos bem distintos, e sabemos disso. Você e sua vida, do outro lado da cidade, e eu, com a minha; meus dias, meus anseios, minhas viagens, meus botões.

Nós dois tivemos a feliz coincidência de encontrar com o acaso, distraído, na mesma esquina. Depois, o que aconteceu é que cada um se devolveu ao seu mundo, como haveria de ser, como já era o esperado. Sem amor, sem medo. Acabamos criando um contrato inconsciente que delimitava até onde era seguro ir. E ficamos com o lado bom da história: tivemos as núpcias, as delícias, a despreocupação de uma vida inteira em quatro dias. Mas todo esse encanto que aflora dos meus olhos feito água bruta em foz quando eu escuto o seu nome, todo esse encanto só é preservado por um só motivo: ainda não somos íntimos. E provavelmente, nunca seremos.

Ainda bem.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Espartilhos modernos

Não posso deixar de pensar neste século como sendo um memorável período de grandes conquistas para a mulher; não posso ignorar as feministas queimando soutiens, a pílula, a nova jornada na vida das mulheres no mundo. Mas ainda sinto uma grande lacuna no tocante a algo que essa mulher, iconografia máxima de lutas, ainda busca: sua liberdade.
Por mais que os amadurecimentos na consciência coletiva sejam relevantes, ainda não é o suficiente. Nós, mulheres, ainda não somos livres. É um insulto, mas hoje, apesar de um significativo histórico de lutas, há um expressivo contingente de mulheres... machistas. Sim. As mulheres são tão machistas quanto os próprios homens, quiçá até mais.
Evidente que existe um contexto muito forte para que isso aconteça: nossa sociedade ainda é patriarcal, e o machismo encontra nessa condição o bojo perfeito para se dar, sem ressalvas. A menina cresce ouvindo da mãe conselhos que o pai também instrui, determinantemente, e isso molda o comportamento da criança, uma vez que se enraiza em sua visão de mundo, tendo reflexos por toda a vida numa cíclica machista perpetualizante. Mulheres de todo o mundo sofrem, todos os dias, julgamentos opressores de acordo com o comportamento que adotam.
A naturalização desses julgamentos é um fator comum entre os homens, entretanto também é entre as mulheres. É o que leva uma mulher a chamar a outra de "puta". Mas por que puta? Por que a então insultada administra seu corpo como lhe convém? Por que se sente dona de si, não se deixando abater por maledicências que - ela sabe - não a diminuirão? Por que é capaz de fazer sexo na primeira noite, sem deixar de ser uma mulher de valor aos próprios olhos?
As interrogações são inúmeras, e a extensão do tema é tal que geraria um dossiê, ou mesmo um livro. Com certa independência adquirida ao longo dos anos, somada ao aumento de seu espaço no mercado, a mulher se deu conta que também lhe é direito a autonomia das próprias escolhas. As pioneiras deste árduo processo encontraram fortíssimo rechaço, vide Leila Diniz, Pagu, e até elementos da literatura, como a Aurélia alencariana. Para mulheres que fazem uma leitura mais aprofundada de suas mensagens, nada foi em vão.
Muitos homens têm, na verdade, medo das mulheres que são independentes e seguras. Em uma comunidade machista, um homem que é sustentado por uma mulher ou menos bem-sucedido profissionalmente que ela é apontado como incapaz ou fracassado. Homens têm medo de comparações, e este é um pretexto muito oportuno para que, inclusive, difamem mulheres sexualmente livres. O ataque moral a essas mulheres é apenas um escudo que visa ocultar a latente fragilidade masculina de muitos. Se uma mulher faz sexo com a mesma freqüência que um homem, ela certamente vai julgar o desempenho de seu parceiro com aqueles que o precederam, e para boa parte dos homens, isso é um inconfessável pesadelo. O mesmo acontece na escolha das profissões. Quantas mulheres vemos em cargos de chefia? comandantes, empresárias; ou então, em profissões convencionalmente ligadas ao universo masculino, como motoristas de ônibus? Há uma cultura muito bem diluída de que certos ofícios ainda são restritos ao homem, mas pouco a pouco, a mulher vem mostrando que possui a mesma capacidade intelectual que eles e que pode, perfeitamente, ser designada para as mesmas funções.
Também é conveniente dizer que as mulheres liberais são vítimas da indústria, mas por vieses diferentes. A indústria moralizante apedreja; a da vendagem se apropria desse ideário para o lucro, daí uma grande proliferação de mulheres pseudo-liberais: assim o dizem por uma moda ditada por um elemento maior, e disso não se apercebem; bem como o bissexualismo pop que se alastrou entre os jovens por conta da influência midiática. Há realmente poucas mulheres que hasteiam a bandeira da liberdade e defendem, com base, o que vivem.
A ruptura com esse machismo anacrônico ainda se dá num lento gotejar. Eu não creio que estarei viva para ver uma mudança de efeito em termos globais, mas todas as grandes revoluções sempre começam como grãos.
Basta esperar para que o tempo os alimente.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Linguagem cromática

Moça de branco com flores sobre a fronte sorri nervosa. Cinema preto e branco emociona. Crianças em toga azul gargalham. Espanhola de vestido vermelho sapateia, esvoaçando. Senhora de trajes pretos pranteia. Mc Donalds grita sua verdade aos estômagos.
A bandeira branca pede. Bandeira vermelha avisa. Bandeira policromática alardeia (um musicar eletrônico). As páginas amareladas dum livro indefinem sua idade. Flores róseas anunciam que a primavera está viva de novo. A explosão colorido-difusa de 70. O verde nas fardas de 64. E o vermelho em cada esquina russa.
Acinzentado firmamento que traz a melancolia de fora para dentro; alaranjado, dissolve corações adolescentes em beira de praia. As cores de Kurosawa e as não-cores de Reisnais; as festas visuais de Hering a Warhol, máxima expressão do gênero. O manto azul de Fátima.
A tela em branco, muda.
A tela em cores, mundo.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Autópsia

Sinto um cheiro estranho que vem desse lugar gelado. Não um cheiro só; cheiros distintos, elementos químicos putrefando. Desconfio. Não me movo. Na imobilidade do meu corpo, nu, sinto a frieza da cama árida onde me encontro. Respiro, tentando encher os pulmões de ar. Não consigo. Mais uma vez. Não consigo.
Abro os meus olhos, tudo está escuro. Não, eu não me movo. Os olhos dançam esperançosos nas pálpebras secas, na tentativa de captar qualquer ínfimo ponto de luz que tente romper a barreira da escuridão. E fracassam. Meus olhos estão secos. E doem. Aparento estar tetraplégica, não tenho expressão, não tenho movimento. Todo meu falar mora nos olhos. Estou toda simétrica, aqui deitada.
O silêncio sempre me irritou muito, e agora, mais que nunca. Não há nenhum som neste lugar. Ai, que saudades sinto dos barulhos. Até dos barulhos mais aleatórios, ordinários. O riscar duma superfície em outra, uma campainha estridente, tic-tac de relógio. Um copo de vidro espatifando-se no chão me traria imenso gozo, me faria lembrar das minhas faculdades auditivas, que eram por mim tão bem quistas quando eu andava por lá.
Todas as minhas extremidades estão petrificadas. Dedos, sejam estes dos pés ou das mãos, boca, orelhas, ponta do nariz. Se eu tivesse uma cor, eu seria azul.
Sou uma boneca oca, cujo sangue estancou.
Mas, enfim! Ouço passos. Passos graves e pesados, crescentes. Alguém está chegando. Abre-se uma porta. Os passos diminuem de freqüência, e param. Escuto um estalar plástico, não entendo. De súbito, sinto meu corpo tremer, como se um tapete que outrora estava sobre mim estivesse sendo arrebatado com força por mãos fortes. Uma luz pontiaguda me invade as córneas, e ai de mim, inexpressiva, que não posso franzir sobrancelhas.
O homem toca o meu rosto, abre minha boca. Aproxima-se de mim sem o romantismo que cabe aos homens que se aproximam de mulheres completamente nuas. Minha boca permanece aberta, esperando o beijo que não vem. Ele tem olhos tão indiferentes, e mãos tão puramente analíticas.
A situação me incomoda tanto. Por que diabos ele assim me tortura? Eu, despida, um homem estranho com a crueza de um examinador. E permaneço inerte, que estupro consensual. Que gosto ruim esse das carnes podres da boca aberta; que sensação enojativa contemplar um homem de máscara branca que me devassa um corpo que ainda sinto ser meu.
Ele vira-se. Se eu pudesse levantar, o acertaria com alguma das ferramentas laminadas que ele depositou na mesa ao lado. Mas eu não posso. Me contento em observá-lo macular a minha pele, em rasgá-la. Ele parece fazer algumas anotações, não consigo ver ao certo. Ele se aproxima, olha para mim mais uma vez e eu o olho de volta. Ele então me empurra para trás, e me trancafia novamente na insuportável câmara onde eu não consigo respirar, onde sou privada da luz.
Eu não sei bem que complô é esse, eu não sei quem fez isso comigo. Só lembro de antes; de ter passado a noite numa casa que não era minha, e que tampouco era isso aqui. Disso aqui eu não lembro. Não sei como vim parar aqui, provavelmente me trouxeram. E não está agradável. Está frio, está escuro, mas eu não sinto dor alguma. Quero minhas roupas, quero fugir, preciso fugir. Não sei quanto tempo mais vou agüentar o marasmo de ser violada por um homem estranho. Preciso fugir.
Mas ainda estou aqui.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

A ilha da cabeça

Até onde um isolamento prolongado é seguro? Existe algum limite real de segurança aí estipulado? O que é preciso fazer a fim de não enlouquecer quando nos encontramos nus à merce duma devoradora câmara de espelhos?
Há mil maneiras de se pirar em sociedade. Tudo cosmopolitou-se num excesso aterrador, prédios e pontes ganharam poros, as pessoas têm suor nos olhos e essa eletricidade corpórea é um câncer do tipo contagioso. Mas há mil e uma maneiras de se surtar no isolamento. É que somos nocivos a nós mesmos, sabemos e muitos de nós temos um medo inconsciente disso. Quando ficamos sós por um longo período de tempo, nossa mente começa a trabalhar por dois, e possivelmente se volta contra nós.
Não é pessimismo. É estatístico. A solidão testa a sanidade; vide como corpus os náufragos, os ermitões, os escritores que sobem mais de mil e oitocentas colinas em busca do isolamento completo, os pêlos descuidados das barbas dos dementes. Por trás dos olhares perdidos ou afoitos dos loucos, que atingiram essa condição pelo desligamento integral com a dogmática da sociedade, houve homens sãos. E entre o são e o atordoado, houve um estiramento do juízo que cambaleou, gritou por socorro e atirou-se no chão, vencido. O jogo e a competição se parecem, mas não são a mesma coisa; sendo interdependentes.
Ninguém enlouquece assim da noite para o dia, vale ressaltar. É um processo custoso. Loucura se dá por metástase, entranhando aqui, ali; no escuro, no silêncio. Às vezes, é muito conveniente um retiro ou resguardo para que se renovem conceitos, idéias, sonhos, projetos; para que se faça um estudo à luz da razão sobre tudo aquilo que, imerso no ralo de caos dos dias, torna-se impossível de ser notado e perde-se. Isso pede atenção, mas apenas isso: alimentando a tensão sobre um problema, acaba-se por supradimensioná-lo.
Encontrar o equilíbrio entre a introspecção oportuna e a hora certa de pôr a cabeça para fora da areia não é nada fácil. É uma jornada solitária em busca do Santo Graal zeitgeistíco dos nossos mundos. De qualquer modo, é preciso coragem: a maior quantidade possível de percalços está sempre dentro de nós mesmos.

terça-feira, 30 de março de 2010

Do princípio defensável

Ryan é um oficial inescrupuloso e racista. Jean Cabot é uma mulher vazia, que não costuma criar laços com meros empregados. Hanson é um profissional competente e que honra seu ofício. Cada indivíduo, uma casca. E, por sobre as cascas, infinitas camadas. A quem soar familiar a descrição, sim, falo do filme "Crash - no limite", mas apenas para fins ilustrativos. No filme, há um constante 'encontrão' de pessoas na contra-mão. E aqui me destino a tratar da insustentável leveza em ser pessoa, da insustentável leveza em ser humano, em ter um coração.
As pessoas, estando elas inseridas aqui em contexto atemporal, são absolutamente não-lineares. É impossível definir com exatidão ou traçar um perfil exato delas, posto que somos mutáveis dadas as circunstâncias. Reações não são tão maquiavelicamente previsíveis. Pela lógica pré-definida, um homem racista não se ocuparia de salvar uma mulher negra de um carro capotado em chamas. Pela lógica pré-definida, uma mulher esnobe não afirmaria ser sua empregada sua melhor amiga. Por essa mesma lógica, que a essa altura já encontra-se imolada no amálgama de não ser, um profissional competente e responsável pela segurança pública não atentaria, à queima-roupa, contra a vida de um jovem desarmado para o qual ofereceu carona. E a vida, por mais que neguemos, é repleta dessas dualidades. O bem e o mal são conceitos caídos e sem força. Chame de 'fórmula do cult', se quiser: a desconstrução da dicotomia entre o bem e o mal. O que são estes, afinal?
Não há bem ou mal absolutos. Há estados de bem e estados de mal. Mesmo um nazista, elemento que parece ter atingido o salvo-conduto para a execração pública, pode se mostrar capaz de alguma ação redentora, o que prova que não há ninguém que seja absolutamente indefensável, por pior que aparente. Bem como Zilda Arns pode, algum dia, ter cometido alguma injustiça diplomática com alguém que não a tivesse merecido, entre tantos outros exemplos.
Especialmente na literatura, nos encontramos crivados de exemplos em que há uma completa corrosão das definições marcadas do mocinho e do bandido. O caráter mutável das pessoas - esse tão inexplicável quanto óbvio mistério - está justamente no fato de sermos humanos. E no sangue humano circula toda sorte de sentimento, indistintamente. Os sentimentos em nós dispostos estão em contra-mão, e como em "Crash", se atropelam, se trombam, daí nossa instabilidade. Essas trombadas nos conferem humanidade, e essa humanidade transparece em nós pela dualidade comportamental com a qual tratamos o mundo que nos rodeia.
É certo que há pessoas muito ruins e muito boas circulando por aí. Uma vida inteira de crimes não pode ser anulada se o criminoso ajudou um gatinho a descer da árvore, ou alguém que dedicou a vida ao próximo possa ter seus bons feitos contestados por ter cambaleado de bêbado ou socado o nariz de outrem - não é disso que estamos falando, visto que esses são grupos minoritários. O grosso de nós está sempre se equilibrando na tênue linha entre um lado e outro, e equivocamente se esforça em proclamar-se pertencedor dum só lado. Não somos só virtudes, e sabemos disso. Somos toda raiva e todo ódio, todo o amor e toda candura; só funcionando por inteiro quando enxergamos com clareza todo nosso multifacetado mundo.
Assumamos nossas cóleras, e também nossas glórias. Portanto, não lancemos ao limbo ou ao altar qualquer um de nós.

sábado, 13 de março de 2010

A ponte

No vai-e-vem
da Ponte Rio-Niterói
É sempre Natal.
No vem-e-vai
na Ponte Rio-Niterói
Há sempre Natal.
Lá, lá longe
Ela parece uma imensa,
tombada,
árvore na horizontal.
Pra quem vê
Do Caminho Niemeyer,
Dos olhos férteis,
Da janela da casa da Ana.
Cá, cá de perto
ela é só mais um monte de cimento e vigas
Que devolve às suas casas
cariocas cansados
em mais um dia suado
de suas vidas.

O mênstruo

Desce violenta em sangue e dor a rubra cascata que confirma o aborto. Desce galopando em flocos negros esse rio contido que vara o algodão que tinge o algodão. Desde descendo rolando doendo crescendo alternando sujando. Desce bravia feito navio sem comando e surfa nos recifes da renda da calcinha. Desce e desconforta e se evidencia porque deixa sua marca. Desce do estourar dum pequeno botão que se esborracha e chora e morre. Desce como a fluidez do mar. Desce enquanto navega por dentro das pernas buscando a foz que a liberte.
Desce, ruborizando as maçãs do rosto da moça.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Cabeça vazia



Oficina do cão? Acho que não.
É na cabeça vazia que levitam as idéias, as idéias que existem, líquidas, antes de existir. A placentária cabeça vazia as alimenta. Na cabeça vazia é que são formados os sonhos; nela é que engatinham as ilusões e os desejos ainda não materializados, que ainda não chegaram aos nervos.
A cabeça vazia é o caos de fúria onde tudo está fundido, disforme, flutuando. É a mais fiel imagem da criação; uma dinamite dentro. Tudo o que toma lume do lado de fora escorregou dessa infinda matriz, cheia de vales e trovões como num clipe de Lenine.
O universo que existe dentro da cabeça vazia é trancado pelo lado de dentro, e ninguém que lá habita, por mais incauto que seja, lhe dará a chave. É absolutamente impenetrável. Tudo o que aqui relato foi o que vi pelo buraco da fechadura. Lá não existe gravidade nem tempo; se assemelhando à imensidão sidérea simbolista de Cruz e Souza.
Me consola imaginar que a alcunha 'oficina do cão' - essa histórica injustiça com o umbigo dos pensamentos - tenha surgido na óbvia Idade Média, onde a criatividade, inventividade ou questionamentos à frente do tempo eram automaticamente associados ao mal e lançados às brasas do não-esclarecimento. Ocupar a cabeça com atividades braçais quaisquer, então, seria uma alternativa ao exercício da indagação, à tensão da psique entre o visível e o que não pode ser explicado. Ninguém me convence que gente como Montaigne, Da Vinci, Modigliani, Ferreira Gullar, Giordano Bruno ou Hamanujan não foram profundamente mergulhados no vazio de suas cabeças, onde acabaram por se encontrar.
Cabeça vazia é o ponto-morto da engrenagem mental. A batuta da orquestra em repouso. Como é que puderam, por tanto tempo, demonizar a mente aparentemente inoperante? Aparentemente, para nossas limitações. Lá dentro, tudo já estava pronto.
A cabeça vazia é a morada de todas as respostas.
A cabeça vazia, meus caros, é a casa de Deus.

terça-feira, 2 de março de 2010

Algumas coisas acontecem no meu coração

É fantástico o trepidante mundo dos volúveis. Entra-se pela boca, aquele canal que esconde um imenso vórtice de outros beijos moídos. Ao entrar, cuidado. Você precisa pisar devagar, para não topar nas lembranças. Não pisotear uma foto de um amor do passado. Volúveis valorizam os amores. Simplesmente levantar os ermos galhos das dúvidas abre N possibilidades, que o volúvel sempre cogita. E essa? E aquela? De repente, um grande hall: lá constam as maiores histórias, os mais incinerados amores, cinzas depositadas na urna dum sorriso de canto de boca, nostálgico. E assim, com muita sorte, ruma-se ao inatingível coração dos volúveis. Ou atingível. Atingibilíssimo, que de tão fácil, é varado de fora a fora, sem alcance. Não é que os volúveis não tenham coração. Eles têm é amor demais. Tanto que se enamoram rápido de olhares, de pernas, de risos alheios, como criança que se desmancha pelo brinquedo maior. Como gato que se enrola em novelos de lã.
Gente volúvel não se apega à dor. Mas sim, os volúveis também sofrem. Choram no escuro, como qualquer outra pessoa. Mas se desprendem com maior facilidade. Sabem que aquilo não é para sempre, bem como sabem que enquanto lamenta-se por uma perda, diminuem o tempo útil de ir em direção a outrem que mereça sua paixão. E é com o foco nessa lógica que nunca param de procurar. Têm a perene sensação de que perderam alguma coisa no caminho, e a materializam no próximo parceiro. Quando o encontram, que festa. Mas a intensidade que move os volúveis também é o que oxida seu relacionamento. E não. Não era o que se procurava. Foi bom. Até mais.
É espinhoso, mas os volúveis traem com uma facilidade maior que os não-volúveis. Eles traem quem os acompanha pela mórbida incapacidade de se traírem. São instintivos como animais: ignoram a razão por completo no zênite do desassossego, da falta de juízo. Destroem casamentos. Saem de casa. Batem porta, vão embora; e não há santo que traga de volta. A vida amorosa do volúvel é uma incerteza constante. É uma pré-disposição, uma doença crônica. Muitos dirão que os volúveis subtraem o compromisso pelo desgoverno, mas não é exatamente assim. Isso por conta do grau de paixão que ele alimenta: se o volúvel está realmente muitíssimo envolvido com alguém, ele fechará os olhos para outras possibilidades. Se entregará, e a entrega integral é uma marca dos volúveis. Isso requer exclusividade, não é um processo banal.
Há uma diferença crucial dos não-volúveis para os volúveis: volúveis não temem a dor. Não têm medo da brisa fresca do abismo debaixo dos pés, seja o abismo do amor ou do desengano. Se atiram sempre que podem, não hesitam. Colocam-se na posição dum velho Tritão de pedra no fundo do mar, que oferece morada a qualquer invasor que o acaricia enquanto também o devora. E que devorar recíproco. Volúveis são pouco vingativos. Perdoam, esquecem. A vida é só uma, para que importar-se tanto com o que não foi?
Os volúveis também amam. E respeitemos: justa toda forma de amor.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Saúde é tudo?



Cresci ouvindo, por todos os cantos, que saúde é tudo. Essa é a máxima da minha avó, da minha mãe, e de todos os outros. Realmente. Saúde é muito importante. Ela que permite que gozemos dos momentos com intensidade. Que nos desloquemos para cá e para lá, que corramos em busca do que queremos, ou mesmo qualquer coisa. Um corpo sadio e são é uma dádiva que passa despercebida todos os dias. Mas saúde é tudo?
Tenho lá minhas ressalvas quanto à essa afirmação. Há pessoas visivelmente saudáveis com péssima qualidade de vida, e não está aqui embutida qualquer menção à condição econômica das mesmas. Gente com a vida em frangalhos. Pessoas com cabeça, braços, pernas, pés e coração perfeito batendo à toa, isso dói. Renato não poderia ter sido mais preciso. Há milhões de indivíduos vagando por aí com 100% de saúde e 0 de perspectiva, não é difícil de ver. Portadores das piores patologias; gente doente de rancor, inveja, tédio, culpa, desamor, e com as veias, artérias e todo o inferno pulsando, como um búfalo selvagem, em excelente estado.
E o que dizer daqueles que não têm exatamente a saúde tinindo e são capazes dos maiores feitos? A história me ampara: Betinho, Henfil, Frida Khalo, Che Guevara, e tantos mais que apesar de razoáveis a dantescas limitações físicas, não deixaram de viver intensamente - e iluminar, e fazer diferença no mundo - a despeito mentirosas estimativas. Gente aos montes, que provam que o 'tudo' vai além de boa capacidade respiratória, boa condição metabólica, bons referenciais estatísticos emitidos anualmente pela OMS.
Saúde é tudo? E o que é tudo? O 'tudo' que se associa à saúde me soa muito pequeno e reducionista; uma visão conformista e empoeirada do que é a realidade e o que se deve fazer com ela. E, acima de 'tudo', está o medo: as pessoas que zelam excessivamente pela saúde têm pânico da idéia da morte. Esse tudo não me serve, não me veste. O meu tudo compõe-se de todas as dores, microorganismos e belezas que posso mordiscar do mundo. Pisar descalça um chão de lama, sorriso de neném, comer fruta do pé, um cigarro num fim de tarde chuvoso. E se eu tiver deixado minha carne algo antes dos 50, não haverá sido por falta de juízo, saúde ou aviso; mas por fome duma vida plena.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Tango cego de mãos

Mergulhou os dedos nos cabelos dele. Havia um estreitamento irrespirável entre suas costas, seu tórax e a outra parede, à frente do banheiro imundo, mas lá tudo se deu; sem explicação, sem motivo. Que esperar de dois bichos sedentos que se encontram no uivo da lua? O choque do desejo e da acidez, o confronto do reflexo da luz naquele material niquelado em seu anelar com a ereção daquele homem que ela mal lembrava o nome. Era Mário? Era Mauro? Ou Luís, quiçá?

O homem a beijava com violência, com saliva. Seu pescoço estava pegajoso do sumo que ele emanava pela língua, ela entranhava as unhas nas costas macias que ele tinha, "Para com isso!", ela tentava. E a velha dicotomia entre o certo e o errado era pouco a pouco sorvida pelo suor dos dois. A consciência lhe fisgou, seus mamilos tremeram. 'Pára, pára!'; ao que ele, numa atitude súbita, deu um inofensivo tapa em seu rosto. 'Calla-te!'

Foi quando ela se deu conta de que ele era argentino. Ou cubano? Tudo o que ela tinha em mente era apenas que aquele moreno saído de lugar algum havia chegado para lhe virar o juízo. Num brusco movimento, ele lhe arrebentou dois botões da blusa branca, e deu com a língua em seus seios. Não demorou-se lá. Ambicionava por trunfo maior, e desceu esse músculo incandescentemente voraz pela sua cintura, abocanhando seu umbigo. Ela se escorava nas paredes; apertava os olhos. Uma franja molhada caía sobre sua testa, teimava em se instalar entre o suor das suas linhas de expressão delirantes. Ele abriu com pressa o zíper do short dela, e na hora de despi-la da calcinha, arranhou-lhe as coxas.

Abriu suas coxas e devastou seu sexo com a língua, pesada, rápida e cheia de força. Revolucionava seus olhos com o movimento circular contínuo que arrasava a moça de cima a baixo. até o último pêlo do corpo. Ela se sentia fluida, suja, plena. Quando abria os olhos, dicernia mal a geometria estranha daquele ambiente. Bruscamente, puxou os cabelos dele, esfregando seu rosto em sua vagina. Ele agarrava suas coxas, mordiscava o pequeno pingente de carne dela, enquanto a moça emitia débeis sussurros e sons na escuridão.

Ela trouxe a cabeça dele à sua boca. Beijou-o; seu beijo tinha o seu gosto ácido e quente. Ele tomou-lhe o magro pulso esquerdo e virou-a para a parede e tratou de esfolar dentro dela seu membro, que urrava de vontade. Ela sentiu-o. Ele puxava seu cabelo com voracidade. 'Me dá seu puto'. 'La putana, la putana!'. Ela contraía todos os músculos do rosto em características expressões que a todos é comum na hora do sexo. Ele a pressionava, lambia sua nuca, apertava sua cintura. Ela gritava. Ele a calava com seu grande indicador.

'Puta que pariu vô gozar! Mete com raiva seu merda!' Ele não precisava entender português para compreender sua linguagem. Ele então derramou, junto com ela, o viscoso líquido que confirma a existência. Ela estava anestesiada pela culpa, pelo prazer, pela cocaína. Ofegantemente respirava. Ele fechou o zíper e abraçou-a; ela se sentiu sufocada naquele abraço, não entendeu, se perdeu ali.

Atordoada, pensava em Maurício, o noivo. Maurício, o noivo. Maurício, o noivo. Maurício, o noivo. Arregalou os olhos, não devia ter feito aquilo. Maurício, o noivo. Maurício, o noivo. Queria que um banho gelado. Maurício, o noivo, Maurício, o noivo, Maurício, o noivo, Maurício, o noivo. 'Maurício!' '¿Que pasa?'

Arrancou da bolsa um canivete e varou seu ombro esquerdo. O sangue pulou como gêiser. 'Hija de puta!' Ela correu assustada. Pra longe, enquanto ele gritava-lhe ruidosas ameaças. Ela continuou a correr, cada vez mais rápido; os saltos sem concatenar com os pés, com os passos. Caiu no asfalto da rua acima. Ergueu-se, correu mais: queria fugir de si.

Ela então tomou um ônibus. Sentou-se na última poltrona, abaixou a cabeça e começou a chorar.