terça-feira, 12 de dezembro de 2017

[CRÍTICA] Os Últimos na Terra (Z for Zachariah) - o que de humanidade permanece

Trabalhamos com possíveis spoilers! Estou presumindo que você viu o filme!



Em seu quarto longa, Os Últimos na Terra (Z for Zachariah), o diretor Craig Zobel trabalha com as variadas tensões que envolvem a humanidade que resta (realmente, no sentido residual) em três sobreviventes que se encontram após um desastre nuclear que, ao que tudo indica, trouxe consigo o fim da espécie humana.

A premissa da fita é simples. A indolente Ann (Margot Robbie) é uma jovem de 16 anos que se vê sozinha (no mundo) após seu pai e irmão saírem em busca de sobreviventes algum tempo depois da grande hecatombe. Morando num pequeno condado, segue com sua vida de maneira aparentemente resignada, até que um estranho perturba a água parada de seu cotidiano: trata-se do engenheiro John Loomis (Chiwetel Ejiofor), que, sem saber, surpreende Ann numa estrada para, momentos depois, ser surpreendido por ela ao banhar-se numa cachoeira radioativa. O primeiro contato entre os dois promove uma boa ilustração sobre como o evento nuclear alterou radicalmente a dinâmica no reconhecimento do outro, servindo, pois bem, de prólogo para o desenrolar da narrativa, indicando que tudo é suspeito, até que se prove o contrário. Vencida a desconfiança, Ann recebe Loomis em sua casa, e, num primeiro momento, naturalmente os dois trocam seus registros sobre a tragédia, dos respectivos pontos em que suas vidas estavam. Transcorrido algum tempo, durante uma sondagem pelos campos que circundam sua propriedade, Ann cruza com outro sobrevivente, Caleb, (Chris Pine) também levando-o para casa e oferecendo-lhe abrigo até que decida que destino seguirá. 

Para além do cuidado do roteiro de Nissar Modi em não deixar muito claro em que momento se deu o desastre, a nebulosidade também recai sobre a psique dos personagens, em contraposição com a luminosidade por vezes ostensiva dos planos abertos do filme. Pouco se sabe sobre eles, e a informação a que temos acesso é contada na ausência: de certa maneira, cabe ao espectador um trabalho paleontológico. O mais flagrante destes exemplos se dá quando Ann encontra John Loomis bêbado, num velho posto de conveniência. O diálogo (bem, o monólogo) é uma pista sobre a importância de se aprender a refinar uma leitura sobre um Outro com tantos buracos na configuração pós-antropocênica que propõe Zobel.

O filme não oferece um protagonista, mas a julgar que, na ordem de surgimento dos personagens, a primeira é Ann, e sobretudo porque ela é a única (a última?) mulher entre dois homens, há um orbitamento concentrado em sua figura. Como dito, Ann é uma adolescente (fato não-explicitado no texto do filme, mas em sua sinopse e nas espinhas em seu rosto) cristã, o que a coloca diametralmente oposta a Loomis, um homem da ciência. No entanto, provavelmente por conta do contexto de destruição colocado, os dois assumem uma convivência pacífica e complementar, apesar de povoada de embates sutis e muito bem construídos nesse sentido, que não caem nas armadilhas do lugar-comum. A cena da discussão sobre a capela, além de provocadora, é brilhante no comedimento do pingue-pongue ideológico dos personagens. Essa cena, aliás, é o único momento do filme em que temos um crepúsculo, como se o próprio embate entre fé e razão estivesse experimentando, em si, um definitivo anoitecimento: não há mais a certeza opulenta de antes em nenhum dos lados.

No segundo terço da projeção, Zobel faz um jogo engenhoso, preservando - e ressaltando - resíduos que misturam o comportamento humano e animal, quando entra em cena o terceiro personagem, Caleb. Em uma única, e quase imperceptível fala, é explorado o fantasma do racismo experimentado por Loomis, que mesmo diante do fim da civilização, permanece rochoso enquanto herança histórica, e sensível ao afeto do homem negro ante à possibilidade de ser preterido a um homem branco (por uma mulher, que fique claro, também branca), como se todo o mal da doutrina racista fosse, de fato, o mal que Drummond chama o produto quintessente de um laboratório falido. De novo, resíduo: o que está por baixo, o que fica por último. Ainda, acontece aqui uma tensão de gênero que percorre a disputa testosterônica velada entre Loomis e Caleb, e Ann está no centro dela. Loomis, que chega antes de Caleb, assume uma postura machista em relação à Ann exclusivamente quando sente seu território ameaçado: antes disso, seu personagem havia estabelecido com a moça uma coexistência afetiva que, apesar das investidas de Ann, segundo seu julgamento ainda tinha o que amadurar. Aqui está a imbricação homem X animal: se por um lado é possível apontar o machismo de Loomis, (e o machismo está na humanidade, não na natureza) por outro, diante das condições extremas dadas, ele parece entrar num modo de defesa característico dos leões diante de um possível macho beta.

É sobre Caleb, inclusive, que pairam as maiores interrogações do filme. Ele é o personagem que menos tempo dura em exibição, o que nos fornece menos informação, e que acaba funcionando como o gatilho desestabilizador do trio, até o momento em que o filme se encerra com um final ambíguo. Seu personagem é mesmo calcado na ambiguidade: apesar da escassez de informações sobre Ann e John Loomis, o roteiro lhes reserva alguma confiabilidade (talvez por contar com o instinto de preservação da espécie do espectador, que irresistivelmente cogitará a união amorosa desse par), enquanto a Caleb destina uma luz densamente cinzenta. Em algumas críticas sobre o filme, a propriedade na qual Ann vive é associada a um Éden, quer pelo isolamento, quer pela quietude, quer pela beleza da natureza que estranhamente não parece ter sido afetada pela radiação - e, obviamente, pela presença de uma única mulher, que passa a dividir seu espaço com um homem. Isto posto, poderia a presença de Caleb ser a representação da serpente? É tentador que uma investigação sobre o filme ganhe a via do religioso. Todos os personagens têm nomes bíblicos. Ann, por exemplo, é uma variação de Anna, que na bíblia é uma profetiza que antevê o nascimento de, entre outros personagens, Jesus, Zacarias e... de João. (Qual é mesmo o primeiro nome de Loomis?) Ela ganha uma representação antiga na figura de uma mulher idosa, visionária, íntegra. Para além disso, é um nome que começa com a letra A, numa contraposição radical ao título original do próprio filme, Z for Zachariah (Z de Zacarias, que obviamente seria um fiasco em termos de recepção com uma tradução dessas). Zacarias, personagem também bíblico afinal. Aliás, há uma cena discreta que faz uma referência com o nome original do filme por meio de um paralelo. 

Com uma bela curadoria musical, Heather McIntosh traz em seu órgão o tom preciso do luto, solidão, incerteza, e acima de tudo a sensação de esfacelamento que atravessam os personagens de Os Últimos na Terra, equilibrado com o som fanhoso e familiar de uma velha vitrola que tempera a desesperança com lampejos de uma serenidade menos pessimista. O longa guarda, ainda, uma surpresinha apetitosa para os fãs de Tarkovsky. Se em seu filme o russo adiciona uma cor sobrenatural à inocência, - ou à corrupção dela - Zobel tende a um pragmatismo desencantador em sua referência. Sua mensagem, então, parece mais clara, e porque não dizer, mais direta: o fim de tudo é apenas mais um inevitável dia como qualquer outro.

domingo, 10 de dezembro de 2017

Deixa o meu silêncio dizer nada

meu silêncio quer andar chutando
latas pela cidade
assobiando baixinho
uma composição instantânea
ele quer
cheirar sacolas de lixo
sem se importar com os diamantes

meu silêncio não tem
disciplina pra iluminação

meu silêncio vai fumar um cigarro
e encher os pulmões despreocupados
porque não tem amor algum
meu silêncio quer fugir dos paparazzi
descendo o alto da boa-vista
equilibrado numa bicicleta sem freio
sem as mãos
em franca disparada

meu silêncio é isso: ele não se preocupa
com nada

ele não é como o
silêncio de vocês um silêncio
úmido e tão robusto
e tão inchado
de tantas coisas que pode ser
coisas graves, tamanhas
a súplica das entranhas
os temores do mundo
as lágrimas invisíveis
explicação da explicação da explicação
meu silêncio
não pediu interpretação

meu silêncio está cansado dos
seus abraços das suas perguntas
seus olhos pintados de vermelho-vivo
ele não é nenhum ponto turístico
para te receber

deixa o meu silêncio dizer nada
isso é tudo o que ele quer dizer.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

[TRADUÇÃO] Partida - Cecil Day Lewis



Dezoito anos no tempo, quase o dia -
Um dia ensolarado, as folhas mudando,
As linhas laterais no chão recentes - desde que te vi jogando
Seu primeiro jogo de futebol, e então, como um satélite
Arrebatado de sua órbita, se afastando

Atrás de um grupinho de meninos. Posso ver
Você se apartando de mim em direção à escola
Com a experiência de criatura quase crescida solta
Na natureza, a marcha daquele
Que não acha o caminho onde caminho deveria haver.

Aquela figura hesitante, partindo em espirais
Feito pequena semente alada, de seu caule perdida,
Tem uma coisa que nunca consegui expressar
Isso da natureza dar e tomar - o pequeno, abrasivo
Expiar em fogo de um irresoluto barro.

Já tive as piores despedidas, mas nenhuma que tenha
Mastigado minha mente tanto assim. Talvez seja muito grosseiro
Dizer o que Deus por si poderia perfeitamente exibir -
Como a individualidade começa com uma partida,
E o amor se prova quando deixamos ir.

WALKING AWAY - Cecil Day Lewis
Tradução: Ana Líbia Fernandes, 04/12/2017

original disponível em: http://www.storiesspace.com/forum/yaf_postst748_Poem-of-the-day--WALKING-AWAY--Cecil-Day-Lewis.aspx

Do sol

do sol
não posso dizer porque
não posso ver porque
ele não me deixa
besta fera estúpida
mas
sei dele

que esteve aqui e
quanto tempo ficou
no reflexo no estrago no consumo
da cor que havia
nas bolhas da pele e nas dobras onde
mil criaturas abomináveis estão
pacificamente assentadas
há meses
tomando a gordura quente da matéria
por estômagos impossíveis

o sol foi passando na vida

trouxe a luz a velhice o escurecimento
queimou
minhas fotografias e hipnotizou
as plantas da varanda
nem todas as luas são cheias
mas o sol
como um rio
- ele disse assim -
seu curso é fixo

o sol é branco é laranja é vermelho é
amarelo
o sol é amarelo no jardim da infância
manga fresca e descarnada
fossem possíveis dois verões
na mesma sala

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Oasis party

Guardo um estoque pisciano de lágrimas pra você
debaixo
dos meus grossos óculos escuros
redemoinhos de poás
Enquanto na piscina você banha
seu corpo de glória, cloro e sol

A festinha tá animada e as
cores das frutas trocam de lugar
com as dos balões as meninas
comem as cores dos bikinis

não um cão, mas um pavão
passeia tímido entre os copos

A pedidos
eu entro na selfie dos outros
uma fabulosa coleção de dentes disputa
os limites dos rostos

Procuro o seu no quadro azul mas você
não está
talvez tenha cavado um buraco
para ver o mar

derrubaram vinho branco na Bianca
se ela estivesse sóbria reclamaria
que vinho branco também mancha
irreversíveis de verdade
só as manchas que só nós vemos

já você não foi ver o mar, ao contrário
está de pé
nas mãos
um drink elegante
nas pernas
o exército de gotas que se agarra na corda fina e difícil
dos teus pêlos
quantas baixas enquanto andas!

nenhuma guerra é mais assimétrica
que a que acontece aqui

uma força puxa meu pulso e
entro novamente na selfie dos outros
uma fabulosa coleção de lentes
milita
pela manutenção dos sorrisos
limites desistem aos poucos debaixo
das águas venenosas de um dia de sol

a música independente que estoura a caixa
indiferente aos comportamentos
surda e disforme
cria um fio elétrico do meu corpo ao seu
tenta nos dizer alguma coisa via espasmo
mas você contempla pasmo a bunda da Renata
eu espero uma abdução e as minhas encomendas no Ali

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

[TRADUÇÃO] O fim da solidão - William Deresiewicz



O que o eu contemporâneo deseja? A câmera criou a cultura da celebridade; o computador está criando a cultura da conectividade. Conforme as duas tecnologias convergem - redes sociais expandindo a teia de uma interconexão sem precedentes - as duas culturas traem o impulso comum. A celebrização da vida privada e a conectividade são duas maneiras de se tornar conhecido. Isto é o que o eu contemporâneo deseja. Ele deseja ser reconhecido, deseja estar conectado; ele deseja ser visível. Se não aos milhões, no Survivor ou na Oprah, então às centenas, no Twitter ou Facebook. Esta é a qualidade que nos valida, isto é como nós nos tornamos reais para nós mesmos - sendo vistos pelos outros. O grande terror contemporâneo é o anonimato. Se Lionel Trilling estava certo, se a propriedade que baseava o eu, no Romantismo, era a sinceridade, e no Modernismo era a autenticidade, então no pós-modernismo se trata da visibilidade.

Vivemos exclusivamente em relação com os outros, e o que desaparece das nossas vidas é a solidão. A tecnologia está levando nossa privacidade e nossa concentração, mas também está levando nossa habilidade de ficar sozinhos. Embora eu não deva dizer "levando". Nós estamos fazendo isto conosco; nós estamos nos livrando destas riquezas o mais rápido que conseguimos. Fiquei sabendo, por um parente seu mais velho, que uma adolescente que conheço tinha mandado 3.000 mensagens de texto no último mês. Isto quer dizer 100 mensagens por dia, ou mais ou menos uma a cada 10 minutos, manhã, tarde e noite, finais de semana e finais de semana, na hora da aula, na hora do almoço, na hora da lição de casa, e mesmo na hora de escovar os dentes. Então, em média, ela nunca fica sozinha por mais de dez minutos. O que significa que ela nunca está sozinha.

Uma vez perguntei aos meus alunos sobre o lugar que a solidão tinha em suas vidas. Uma admitiu que achava a ideia de ser só tão perturbadora que ela se sentaria com um amigo mesmo quando tivesse um artigo para escrever. Outro disse, "por que alguém gostaria de ficar sozinho?"

Para esta notável pergunta, a história oferece um número de respostas. O homem pode ser um animal social, mas a solidão é, tradicionalmente, um valor social. Em particular, o ato de ficar sozinho vem sido entendido como uma dimensão essencial da experiência religiosa, embora restrita a um eu cautelosamente selecionado. Através da solidão de raros espíritos, o coletivo revigora sua relação com o divino. O profeta e o ermitão, o andarilho e o praticante de ioga saem em busca de suas visões, convidam a seus transes, no deserto, na floresta, ou na caverna.

Ainda, vozes discretas falam apenas no silêncio. A vida social é um amálgama de questões pequenas, um atropelo de interesses cotidianos, e instituições religiosas não são exceção. Você não pode ouvir Deus quando as pessoas estão conversando perto de você, e a palavra divina e seus anseios, não obstante, se turva ao descer entre o monarca e o sacerdote. A experiência comum é a regra humana, mas o encontro solitário com Deus é o ato sublime que renova a norma. (Sublime, porque homem algum é profeta em sua terra natal. Tiresias foi condenado antes de ser absolvido; Teresa interrogada antes de ser canonizada.) A solidão religiosa é um tipo de mecanismo social de autocorreção, uma maneira de extinguir o mundano do hábito moral e do costume religioso. O visionário retorna com novas tábulas ou novas danças sua face brilhante com a velha verdade.

Assim como outros valores religiosos, a solidão foi democratizada pela Reforma e secularizada pelo Romantismo. Na interpretação de Marilynne Robinson, o Calvinismo criou o eu moderno focando o interior da alma, deixando-o ao encontro de Deus, como o profeta do velho, em "profundo isolamento". Em sua enumeração de Calvino, Marguerite de Navarre e Milton como captaneadores do eu moderno inicial, nós podemos acrescentar Montaigne, Hamlet, e até Dom Quixote. O último nos alerta ao papel essencial da leitura nesta transformação, a imprensa impressa se prestando à uma função análoga no século XVI e nos subsequentes como a televisão e a internet no nosso próprio. A leitura, como Robinson coloca, "é um ato de grande introspecção e subjetividade." "A alma encontra a si mesma na resposta a um texto, primeiro em Gênesis ou em Matheus, e então em Paraíso Perdido ou Folhas de Relva." Com o Protestantismo e a impressão, a busca pela voz divina se tornou disponível, e no limiar, quase obrigatória, para todos.

Mas é com o Romantismo que a solidão atinge seu ápice de saliência cultural, se tornando tanto literal quanto literária. A solidão protestante ainda é apenas figurada. Rousseau e Wordsworth a tornaram física. O eu agora é encontrado não em Deus, mas na Natureza, e para encontrar a Natureza é preciso ir à ela. E ir à ela com uma sensibilidade especial: o poeta desloca o santo como visionário social e modelo cultural. Mas por conta do Romantismo ter herdado a ideia de empatia social característica do século XVIII, a solidão Romântica existe numa relação dialética com a sociabilidade - se menos para Rousseau, ainda menos para Thoreau, o solitário mais famoso de todos; e então certamente para Wordsworth, Melville, Whitman e muitos outros. Para Emerson, "a alma se cerca de amigos, que talvez entrem numa autoconsciência maior ou solidão, e ela segue só, por uma temporada, que pode exaltar sua conversação ou sociedade.”


O modernismo dissocia esta dialética. Sua noção de solidão é mais dura, mais adversa, mais isolante. Como um modelo do eu e suas interações, a empatia social de Hume abre caminho para a espessa parede de personalidade de Pater e ao narcisismo de Freud - a ideia de que a alma auto-encerrada e a inacessibilidade aos outros não escolhe outra coisa se não ficar só. Com exceções, como Woolf, os modernistas tentaram evitar a amizade. Joyce e Proust desdenharam dela, D.H. Lawrence estava fatigado dela; e as duplas modernistas - Conrad e Ford, Eliot e Pound, Hemingway e Fitzgerald - todos juntos muito mais descolados que seus contrapartes românticos. O mundo agora era entendido como um assalto do eu, e com uma boa razão.

O ideal romântico da solidão desenvolveu, em parte, uma reação à emergência da cidade moderna. No modernismo, a cidade não só é mais ameaçadora que nunca; ela se torna inescapável, um labirinto: a London de Eliot; a Dublin de Joyce. A plebe, a massa humana se acotovela. O inferno são os outros. A alma é forçada a voltar-se para dentro - daí o desenvolvimento de uma forma mais austera, mais combativa de auto-validação, a "autenticidade" de Trilling, onde a relação essencial se dá apenas do eu consigo mesmo. (Assim como há poucas boas amizades no modernismo, há também poucos bons casamentos.) A solidão se torna, então, mais do que nunca, a arena do auto-descobrimento heroico; uma viagem pelos reinos interiores tornados vastos e aterrorizantes pelos insights nietzcheanos e freudianos. Alcançar a autenticidade é olhar por sobre estas visões sem vacilar; o exemplo de Trilling aqui é Kurtz. A auto-examinação protestante se torna análise freudiana, e a cultura do herói, uma vez o profeta de Deus e então o poeta da Natureza, é agora o romancista do eu - um Dostoievsky, um Joyce, um Proust.

Mas nós não estamos mais numa cidade modernista, e nosso grande medo não é a submersão pela massa, mas o isolamento da manada. A urbanização deu lugar à suburbanização, e com isso, a ameaça universal da solidão. O que as tecnologias de transporte exacerbaram - nós podemos viver mais e mais separados - as tecnologias da comunicação compensaram - nós podemos ficar mais e mais próximos. Ou, pelo menos, assim imaginamos. A primeira dessas tecnologias, o primeiro simulacro de proximidade, foi o telefone.
“Vá além e alcance alguém”. Mas ao longo dos anos 70 e 80, nosso isolamento cresceu. Os subúrbios, se alastrando progressivamente, se tornaram exúrbios. Famílias se tornaram menores ou se estilhaçaram; mães deixaram as casas para trabalhar. A lareira eletrônica se torna a televisão em cada sala. Mesmo na infância, e certamente na adolescência, nós estamos presos dentro de nossos casulos. (Gráficos da violência vão às alturas, e ainda mais nitidamente, os de pânico moral, colocando as crianças longe das ruas.) A ideia de que se pode ir lá fora e dar uma volta pela vizinhança, um dia questionável, agora se torna impensável. A criança que cresceu no contexto da segunda guerra mundial como parte da extensão familiar dentro de uma comunidade urbana extremamente fechada se tornou a avó do garoto que se senta sozinho em frente a uma enorme televisão, numa casa enorme, dentro de uma propriedade enorme. Nós nos perdemos no espaço.

Dentro destas circunstâncias, a Internet surge como uma bênção incalculável. Nós nunca devemos esquecer disso. Ela possibilitou às pessoas isoladas se comunicarem umas com as outras, e às marginalizadas se encontrarem (...). Mas conforme a dimensionalidade da Internet se expandiu, ela rapidamente se tornou boa demais para ser verdade. Há dez anos atrás nós escrevíamos e-mails na área de trabalho dos computadores e os enviávamos via conexões discadas. Agora mandamos mensagens dos nossos celulares, postamos fotos em nossos Facebooks, e seguimos completos estranhos no Twitter. Um fluxo constante de contato mediado, virtual, nocional ou simulado, nos mantém ligados a uma colméia eletrônica - apesar de "contato", pelo menos contato em via de mão-dupla, parecer estar sendo deixado de lado. O objetivo agora, ao que parece, é simplesmente se tornar conhecido, se converter numa espécie de minicelebridade. Quantas pessoas estão lendo o meu blog? Quantas buscas o meu nome gera no Google? A visibilidade assegura a nossa autoestima, se tornando um substituto para a conexão genuína. Não há muito tempo atrás, era fácil se sentir só. Agora, é impossível ficar sozinho.

Como resultado, nós estamos perdendo os dois lados da dialética romântica. O que a amizade significa quando você tem 532 "amigos"? De que maneira esse dado aumenta meu senso de proximidade quando meu feed de notícias no Facebook me diz que Sally Smith (que eu não vejo desde o ginásio, e que não era tão próxima assim de mim mesmo naquela época) "está fazendo café e contemplando o vazio"? Meus alunos me disseram que têm pouco tempo para intimidade. E é claro, eles não têm tempo algum para a solidão.

Mas ao menos a amizade, senão a intimidade, ainda é algo que eles desejam. Tão chocante quanto essa nova dispensa pode ser para as pessoas na casa dos 30 ou 40, o problema real é que isto se tornou absolutamente comum para adolescentes e pessoas na faixa dos 20 anos. Os jovens, hoje, parecem não ter qualquer desejo pela solidão, nunca ouviram falar nela, não conseguem imaginar o porquê de tê-la. Na verdade, o uso que fazem da tecnologia - ou, pra ser justo, o uso que fazemos da tecnologia - aparenta envolver um esforço constante de prevenção da mera possibilidade da solidão; uma tentativa contínua, conforme nos sentamos sozinhos em nossos computadores, de manter a presença imaginária dos outros. Há muito tempo atrás, lá em 1952, Trilling escreveu sobre "o medo moderno de ser cortado do círculo social mesmo por um instante." Agora nos equipamos com os meios afim de prevenir que este medo jamais se materialize. O que não significa que demos um fim a ele. Muito pelo contrário. Lembre-se da minha aluna, que não conseguia nem escrever um trabalho sozinha. Quanto mais mantemos a solidão à margem, menos conseguimos lidar com ela e mais aterrorizadora ela se torna.

Ao que me parece, esta é uma analogia com a experiência da geração anterior ante ao tédio. Essas duas emoções, a solidão e o tédio, são estreitamente alinhadas. Ambas são características modernas. As primeiras citações no dicionário de Oxford de cada palavra, pelo menos no sentido contemporâneo, datam do século XIX. A Suburbanização[1] pela eliminação do estímulo, bem como a socialização da vida urbana ou interiorana tradicional, exacerbou a tendência de ambas. Mas a grande Era do Tédio, acredito, vem com a televisão, precisamente porque a televisão foi designada como paliativo a esse sentimento. O tédio não é necessariamente uma consequência de não se ter nada pra fazer; é apenas a experiência negativa deste estado. A televisão, por evidenciar a necessidade de aprender como fazer uso da falta de atividade, radicalmente impede as pessoas de descobrirem como aproveitá-la. Na verdade, ela alimenta uma noção de temor sobre essa condição, seu prospecto intolerável. Você fica apavorado com a ideia de ficar entediado - e então você liga a televisão.

Falo com propriedade. Eu cresci nos anos 60 e 70, a era da televisão. Fui treinado para ficar entediado; o tédio era cultivado em mim como valioso produto. (Já foi dito por aí que a sociedade de consumo deseja nos condicionar ao tédio, uma vez que é ele quem cria o mercado do estímulo.) Levei anos para descobrir – e meu sistema nervoso nunca irá se ajustar totalmente a essa ideia, eu ainda preciso lutar contra o tédio, estou permanentemente corrompido quanto a isso – que não ter nada pra fazer não necessariamente precisa ser algo ruim. A alternativa ao tédio é o que Whitman chamou de ociosidade[2] : uma recepção passiva ao mundo.
E assim é com a experiência da geração atual em ficar sozinho: este é precisamente o reconhecimento implícito na ideia de solidão; que é para a solidão o que a ociosidade é para o tédio. Solidão não é a ausência de companhia, é o sofrimento sobre a ausência. Uma ovelha perdida está só; o rebanho não está sozinho. Mas a Internet é uma máquina poderosa na produção da solidão como é a televisão na manufatura do tédio. Se seis horas de televisão por dia criam aptidão para o tédio, a inabilidade de ficar consigo, uma centena de mensagens de texto por dia cria a aptidão para a solidão, a inabilidade de ficar consigo. É de se esperar algum grau de tédio e solidão, especialmente entre pessoas jovens, dada a forma com a qual nosso ambiente humano tem se amortizado. Mas a tecnologia amplifica essas tendências. Dava pra ligar pros meus colegas de classe quando eu era adolescente, mas não dava pra fazer isso 100 vezes por dia. Dava pra curtir com meus amigos quando eu estava na faculdade, mas não dava pra fazer isso sempre que eu quisesse pelo simples fato de que não era possível sempre encontrá-los. Se o tédio é a grande emoção da geração da TV, a solidão é a grande emoção da geração da Web. Nós perdemos a habilidade contemplativa, nossa capacidade para a ociosidade. Eles perderam a habilidade de ficarem a sós consigo, a capacidade para a solidão.          

E ao perder a solidão, o que eles perderam? Primeiro, a propensão à introspecção, aquela avaliação do eu que os puritanos, os românticos e os modernistas (e Sócrates, portanto), situaram no centro da vida espiritual – de sabedoria, de conduta. Thoreau chamou isso de pesca “no lago de Walden das (nossas) própria naturezas”, “arma(ndo)nossos anzóis para (com) a escuridão.” Perdida, também, está a tendência para sustentar a leitura. A internet trouxe o texto de volta ao mundo televisual, mas o fez em termos ditados por este mundo – ou seja, por seu remapeamento, nossa atenção se fragmenta. Ler, agora, significa dinamizar e compactar ao extremo; cinco minutos na mesma página é considerado uma eternidade. Esta não é a leitura conforme descreve Marilynne Robinson: o encontro com o segundo eu no silêncio da solidão mental.

Mas nós não acreditamos mais na mente solitária. Se os românticos tinham Hume, e os modernistas tinham Freud, o atual modelo psicológico – e essa constatação deveria surgir sem surpresas – é o da mente interligada ou mente social. A psicologia evolucionária diz que nossos cérebros se desenvolveram para interpretar sinais sociais complexos. De acordo com David Brooks, o índex do zeitgeist social-científico, cientistas cognitivos dizem que “nossas decisões são poderosamente influenciadas pelo contexto social”; neurocientistas, que nós temos “mentes permeáveis” que funcionam, em parte, por um processo de “profunda imitação”; que “nós somos organizados por nossos afetos”; sociólogos, que nosso comportamento é afetado pelo “poder das redes sociais.” A mais refinada das implicações é de que não há espaço mental que não seja social (a ciência social-contemporânea se encaixando aqui com a crítica teórica pós-moderna). Um dos fatos mais impressionantes sobre o modo como os jovens se relacionam hoje é de que eles não parecem acreditar mais na existência da escuridão proposta por Thoreau.

A página do MySpace, com sua tipografia gritante e imagens apelativas, tem substituído o jornal e as letras afim de criar e comunicar a essência do eu. A sugestão não é apenas que tal comunicação seja feita ao mundo ostensivamente em detrimento de si mesmo ou às pessoas íntimas de alguém, ou graficamente mais que verbalmente, ou performaticamente mais que narrativamente, ou analiticamente; mas também de modo que isto possa ser feito completamente. Os jovens de hoje parecem sentir que podem se tornar completamente reconhecidos uns pelos outros. Parecem não ter noção de até onde vão suas próprias profundezas, e o valor de manterem-nas escondidas.

Se eles a tivessem, entenderiam que a solidão possibilita assegurar a integridade do eu bem como explorá-la. Poucos demonstraram isto de maneira mais bonita que Woolf. Pelo meio de Mrs. Dalloway, entre suas andanças pelas ruas e a organização da festa, entre o amálgama urbano e o amálgama social, Clarissa ascende, “como uma freira se retirando”, ao seu quarto no sótão. Como uma freira: Ela retorna a um estado que ela mesma considera como um tipo de virgindade. Isto não significa que ela seja uma puritana. A virgindade é, tradicionalmente, o sinal externo de uma inviolabilidade espiritual, de um eu imaculado pelo mundo, uma alma que preservou sua integridade por meio da recusa ao se rebaixar ao caos e à autodivisão através de relações sociais e sexuais. É a marca do santo e do monge, de Hipólito, de Antígona, de Joana d’Arc. A solidão é tanto a imagem social deste estado quanto os meios pelos quais nós podemos nos aproximar dela. Em Mrs. Dalloway, a imagem suprema da dignidade da solidão em si é a velha a quem Clarissa observa de sua janela. “Aqui havia um quarto”, ela pensa, “ali, outro.” Não somos seres meramente sociais. Nós também existimos em separado; cada um, uno, cada um sozinho em nosso quarto, cada um milagrosamente existindo em nosso eu único e misteriosamente encerrado nesta individualidade.

Pra lembrar disto, manter-se à parte da sociedade é começar a pensar o caminho para além dela. A solidão, diz Emerson, “é para o gênio o amigo austero.” “Aquele que deve inspirar e liderar sua raça deve privar-se da companhia das almas de outros homens; de viver, respirar, ler e escrever na cotidiana algema comum de suas opiniões.” É preciso proteger a si mesmo da corrente do consenso moral e intelectual – em especial, Emerson acrescenta, durante a juventude. “Deus está sozinho,” disse Thoreau, “mas o Diabo, ele está longe de estar sozinho; ele vê grande proveito na companhia, ele é legião.” A universidade era para ser apreciada, Emerson acreditava, apenas se proviesse seus custos com “um quarto individual e uma lareira” – o espaço físico da solidão. Hoje, claro, as universidades fazem tudo quanto podem para privar seus estudantes de ficarem sozinhos, para que não perpetrem atitudes autodestrutivas, e também, talvez, pensamentos antiquados. Mas nenhuma excelência de verdade, pessoal ou social, artística ou filosófica, científica ou moral, pode surgir sem solidão. “O santo e o poeta buscam a privacidade,” Emerson diz, “para encerrar o mais público e universal.” Nós nos voltamos à figura do visionário, buscando sinais para o futuro, em esplêndido isolamento.

A solidão não é fácil e não é pra todo mundo. Indubitavelmente, nunca fora o território de mais que uns poucos. “Acredito,” Thoreau diz, “que homens, de modo geral, ainda têm um pouco de medo do escuro.” Teresa e Tiresias sempre serão exceções, ou por assim dizer, em termos mais relevantes aos jovens – e eles ainda existem – que preferem vagar e olhar pra dentro, que cantam enquanto andam à batida de um baterista diferente. Mas se a solidão fenece enquanto valor e ideia social, será que mesmo as exceções permanecerão possíveis? Ainda, o indivíduo não tem o poder de reverter o curso da cultura. O indivíduo pode salvar apenas a si mesmo – e tanto faz o que aconteça, ele ainda poderá sempre fazer isso. No entanto, isto custa a apatia de ser impopular.

A última coisa a considerar sobre a solidão é que ela não é muito elegante. Thoreau sabia que a “ambiguidade” que a solidão cultiva, a habilidade de dar um passo para trás e observar a vida de forma desapaixonada, é capaz de nos tornar um pouco desagradáveis aos nossos companheiros; não dizer nada e, na ofensa implícita, evitar a companhia deles. No entanto, ele não se preocupou muito quanto a ser cordial. Ele nem mesmo gostava de ter que falar com as pessoas mais de três vezes por dia, durante as refeições; imagine só o que ele teria feito das mensagens de texto. Nós, entretanto, fizemos da genialidade – o sorriso fraco, o interesse educado, o convite falso – uma virtude cardinal. A amizade pode ser escorregadia ao nosso controle, mas nossa amistosidade é universal. Não é á toa que “gregário” significa “parte do coletivo.” Mas Thoreau entendeu que salvaguardar a própria autonomia custava pequenas mágoas. Provável que ele tivesse enxotado vizinhos, mas ao menos era seguro de si. Aqueles que pretendem encontrar a solidão não devem ter medo de estarem sozinhos.

William Deresiewicz escreve ensaios e críticas para uma variedade de publicações. Lecionou na Universidade de Yale de 1998 a 2008. Esta é uma versão compacta de um artigo publicado na The Chronicle Review, em 30 de janeiro de 2009.

[1] No contexto americano, os subúrbios são bairros afastados dos grandes centros urbanos nos quais as classes mais abastadas localizam-se, diferentemente do Brasil, por exemplo.

[2] idleness. conceito abundantemente explorado por Whitman, Thoreau, Emerson e outros. "Contemplação" é uma boa alternativa à palavra "ociosidade", mas dentro do texto torna-se ruidosa.

O texto completo pode ser encontrado em http://chronicle.com/article/TheEnd-of-Solitude/3708

Tradução: Ana Líbia Fernandes, 09/11/2017



segunda-feira, 6 de novembro de 2017

[CRÍTICA] [TRADUÇÃO] Ela (Spike Jonze) - o cinema e problemas de tradução de títulos


 Certa vez, no meio de uma conversa, um amigo compartilhou comigo a estrofe de um poema brilhante de Carlos Drummond de Andrade para ilustrar uma consideração a cerca da tradução. Parte da estrofe do poema em questão, Procura da Poesia, assim seguia: "Penetra surdamente no reino das palavras./ Lá estão os poemas que esperam ser escritos./ Estão paralisados, mas não há desespero,/ há calma e frescura na superfície intata./ Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário./ Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.[...]". Meu amigo valeu-se da expressão contida no quinto verso, estado de dicionário, para colocar um dos maiores problemas da tradução. É justamente esse problema um selecionador de tradutores. Para efetuar uma tradução no mínimo competente - uma vez que a tradução perfeita é uma ilusão - é preciso compreender que, no texto escrito, as palavras já deixaram o estado de dicionário no qual se encontravam antes; estão despetrificadas. Traduzir, portanto, é acompanhar o movimento que realizaram no deslize textual, aprender a andar com essas palavras, respirar fundo e humildemente pedir licença para replicar a trilha feita pelo indivíduo que pensou o argumento fundamental, transpondo-as para outro território, outro lugar, com uma leitura que, de preferência, ainda estabeleça uma conexão possível com o original. Entre muitos outros poetas, Ferreira Gullar também já ruminou a complexidade da tradução em Traduzir-se, 1980, poema no qual empresta à construção de duos a condição de corda-bamba na qual a tradução permanentemente se situa.

Se no meio literário a tradução configura um problema prolífico, a velocidade de distribuição do cinema, especialmente o comercial, aterra as possibilidades de teorização sobre a tradução em embalagens prontas e rápidas para o consumo de massa, o que dá origem a traduções de títulos que variam de mal-efetuadas a preguiçosas; de imprecisas a estapafúrdias. Às vezes, no entanto, há filigranas que reforçam ainda mais a intradutibilidade de certos exemplos.

É o caso de Her, ou como foi chamado no Brasil, Ela, de Spike Jonze, 2013. Mas a tradução não confere? A resposta para essa pergunta é o que diretamente retroalimenta questões da tradução: sim e não. O caminho mais curto para se entender - jamais solucionar - esse problema é se voltar justamente ao corpo do filme.

Her é um filme que se passa em um tempo distópico, no qual a singularidade já foi atingida por máquinas com propósitos aparentemente benignos, e um homem na casa dos trinta e poucos, Theodore, adquire um sistema operacional com o qual começa a se relacionar. O sistema operacional tem um nome e a promessa de interagir naturalmente com ele, baseando-se em todas as suas informações levantadas num escaneamento feito em alguns segundos, vasculhando suas memórias como um amigo de longa data. Na escalada do filme, Theodore e Sam, o sistema, desenvolvem uma amizade que parece dar acalanto aos anseios do homem, e tendo o sistema a voz feminina mais sensual do cinema contemporâneo - ninguém menos que Scarlet Johansson - a amizade esperadamente evolui para o envolvimento afetivo.

Spike Jonze, então, desenrola com classe o fio de sua narrativa, explorando de maneira rica e criativa as possibilidades de interação entre orgas e mecas, termos usados em outro filme que também trabalha a questão da inteligência artificial. Acontece que as (i)limitações trazem complicações que a fita espiraliza em seu terço final, e mesmo assim o filme não entrega um panfleto direto sobre as consequências da inteligência artificial. Mas já que este texto não é uma crítica de cinema, nos voltemos a outros aspectos.

Her recebeu a melhor tradução que poderia, e ainda assim, entre o título original e o título brasileiro existe uma grande, e ao mesmo tempo sutil lacuna, que na verdade representa o filme todo, em um patamar que está além da gramática, da sintaxe, da semântica, da própria palavra. Em inglês, her serve a dois propósitos que em português são impossíveis, atuando tanto como adjetivo possessivo feminino quanto pronome oblíquo feminino. Em português, ela é um pronome pessoal do caso reto. Na ordem oracional convencional, o pronome encabeçador é o pronome pessoal, que em inglês tem sua versão feminina em she.

Existe uma razão para que o filme tenha sido chamado Her, e não She. Apesar da tradução ser exatamente esta, ela desconsidera uma instância crucial de hierarquia existencial entre os sujeitos; hierarquia esta que determina a passividade e a ação dos atores na narrativa. Mesmo sendo uma máquina de raciocínios sem competição, Sam, a priori, existe em função de. Lhe falta uma subjetividade inalcançável, que se reflete em seu permanente estado de coisa, de instrumento. Ela não é um indivíduo com agência, e o palpite aqui é que seja esta fundamental falta de agência o que relega a ela o título de obliquidade, o lugar do outro, da dependência para ser; enquanto Theodore, por mais ordinário que se mostre, um homem como todo mundo, tem a provável última coisa que o legitima enquanto ser humano: um pronome pessoal e intransferível. A hierarquia existencial está aí: ele independentemente existe, ele está sobre ela. E não importa que ela seja o objeto de seu afeto, o que o colocaria em alguma posição de vulnerabilidade, porque não é disso que se trata. Ela ainda é justamente isto: objeto. Um objeto que está subordinado a Theodore; sintática, e - por que não - existencialmente.

sábado, 30 de setembro de 2017

Todas as Quinas de Todas as Coisas

na ponta
do mito
o fato
no limite
falta
o ato
céu de muito
muito alto
no limite
átrio
no fundo
solo
à distância
um só
salto

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Funções

daqui me resolvo com meus projéteis
russa subequatorial
ainda que não seja a lua branca um
alvo
exatamente fácil

mais sorte têm os cachorros
que por qualquer motivo
que por qualquer distúrbio
indefinível aos homens
disparam a latir
em uníssono
depois se segue um silêncio aterrador
é o tempo que o ar leva
para arrefecer as mensagens cifradas nos latidos
levá-las
aos ouvidos da lua

faltei quase todas as aulas de matemática
também as de física
mas ainda me lembro da imagem das funções
é pisando na memória
um pé de cada vez
que daqui me resolvo com meus projéteis

na rússia há baleias brancas
sob a luz que não adentra aqueles mares
inconquistáveis
vivendo imperturbáveis
na placidez bicentenária
uma vida sem títulos
indiferentes à inveja dos arpões

na lua há pegadas desajeitadas
gozo de adolescente de doze homens que lá estiveram
que não eram russos
e os russos devem ter ficado
bem putos nessa época
porque pensaram
daqui nos resolvemos com nossos projéteis

no leite o segredo
coalha
exponencialmente -
eis a função da cor
me resolver com meus projéteis
em crise, às duas da manhã
é função que sei de cor


sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Sem título

promoção de queijo no guanabara sol
de outono espirra frio cor lenta
sobre os sobrados descascados
cerveja sol não ilumina e aumenta
a gastrite
a menina grita vai rasgar a bolsa
mas o irmão não pode segurar direito
com seus braços de 6 anos sim
vai rasgar a bolsa
quem não é capaz de conviver com rasgos
que já fiquem claras as lições do mundo aos 6 anos
camaleão esquizofrênico entre o ipê
roxo e os frangipanis e a culpa oculta
é do paisagista
eles dizem
no subúrbio eles gostam assim
colorido e excessivo
e mais nunca é demais
é consenso
tiro de moto tow tow tow e sempre
uma senhorinha se assusta o juramento é selado e ali do lado
garotos espertos riem
massa apertada de pânico arrastão
na c&a do carioca
multidão formiga consome a pressa
segurança interessa
a noite não é de flores mas há motoqueiros em uniforme e patrulha autônoma
levam e trazem botânicas soluções
três horas um sumiço um início
discussão aberta em casas parcialmente fechadas
maria odete tá grávida
não vai dar pra fechar o mês
carlinhos foi promovido a gerente
promoção de alcatra no supermarket aproveita e leva também o peixe
meio sorriso no suor amarelo do copo americano
é sexta-feira na américa do sul.

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Trilha branca/ Sonho 01/08/17

dizem da neve
a branca pele
que cobre e esquece
a carne podre das árvores
como aquelas que encontramos
guardando dentro os presentes
de outra estação

havia lá dentro uma
degeneração
um caroço
uma invasão na linha
do tempo
donde jorrava outro tempo
um ser humano com
duas colunas vertebrais rígidas
cheiro sensível ao faro
do cachorro

cólera permanente

dizem da neve
que nela cala o tempo e
acalenta cadáveres

em que trilha nos perdemos?

havia na degeneração
um ser humano com
cheiro de cachorro e
um caroço
donde jorravam colunas vertebrais rígidas
podre a carne do tempo
de cheiro sensível ao ralo

cólera permanente

dizem da neve
grande sinuca de medo
e alvoroço
mar pastoso sobre a água
adormenta e dorme estações

perdida a coleira do cachorro
havia no cheiro uma coluna
de carne rígida
uma invasão degenerativa na
linha dos olhos
cadáver dentro do ser humano
feito sequelas daquele tempo

cólera permanente na trilha onde nos perdemos.


para herberto helder/ lars von trier

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Corda Frates

Essa foto foi tirada no aniversário da Andressa, tu lembra? Aquela menina da nossa rua, quando fez 15 anos. Geral pobre, né, não foi igual aquelas festas de 15 anos, com vestido, essas coisas, mas teve muita cerveja e uma churrascada que durou dois dias, o sábado e o domingo. Olha aqui aquela prima dela, metida a patricinha só porque morava no Pedro Lopes. Nunca gostei dessa garota, e olha que ela sempre aparecia nas férias pra passar uns tempos com a Andressa. Tu lembra? Sempre janeiro, o que acabava caindo perto do aniversário da Andressa. Esse 15 anos foi bonzão, mó calor e a cerveja rolando solta. A gente era mais velho que a Andressa um pouco, devia ter uns 18 anos, mas já bebia há muito tempo. Ih, olha essa aqui. A gente saindo do Maraca depois que o Flamengo foi tri. 2001. A gente ficou tão louco no Bebeto que tu perdeu a linha, pegou a mulher do Madeira e a gente teve que sair voado, hihihi. Nessa foto você tinha 9 anos e tinha quebrado os dois dentes quando caiu da rede disputando comigo quem balançava mais alto na casa do tio Jorge, lá em Maricá. Eu ainda morro de rir dessa foto porque seu tombo foi engraçado, mas quando eu te vi chorando e sem os dois dentes fiquei preocupado. Se tivesse quebrado um pouco antes, só alguns anos antes, eles cresceriam normalmente e papai não ia ter gastar aquele dinheiro pra ter que resinar teus dentes. Moleque burro. Hihihi.

Você me perguntou do trabalho, né. Lá tá tudo na mesma. Eu continuo fudido mesmo. Mercado é uma coisa que faz dinheiro o ano todo, nunca vi. Eu queria ser dono de mercado. É Páscoa, é Natal, é Corpus Christi, é feriado, é dia santo. Todo santo dia tem gente. É por isso que no grupo do zap os vagabundo ficam mandando foto das festa que seu Arthur dá. Mó mansão, tem uns dois andares, mó piscinão, uma mulher mais gostosa que a outra, parece até clipe, sabe. Você chegou a conhecer o seu Arthur. Ele não aparece sempre, mas eu me lembro que um dia tu apareceu lá pra comprar num sei o que pra mãe, eu tava lá e a gente se falou rápido, e foi nesse instante que ele passou e eu apontei. Tu lembra sim, como que não vai lembrar? A mãe? A mãe num tá muito bem não. Ela já não tava bem antes, depois que o pai foi embora. Doeu em todo mundo, você sabe. Todo mundo já sabia que ele ia, e que nem ia demorar, mas a gente vai se agarrando nesse fiozinho, tipo galho podre de árvore em encosta de valão, pouco antes de um temporal. É horrível, é fraco, mas a gente se agarra ali, reluta, não sai, e do nada é acertado por uma onda de merda e é apartado dele. Acho que a mãe foi a que sentiu mais. Tamara já tava morando com o Matheus, já tinha alguns meses que eles estavam morando juntos nessa época, não é que ela não tenha sentido, mas não foi ela quem ficou na casa vazia depois, vendo a mãe chorar todo dia. Eu queria proibir algumas pessoas de morrer.

Eu não penso, não. Ter filho? Tá maluco! Olha só as coisas que a gente já fez! A mãe ficando doida levando Tamara pra cima e pra baixo por causa daquela parada, perguntando um e outro como que consertava aquela situação. Lembra de quando o pai foi buscar a gente na delegacia? Hahahahaha, eu cheio de medo da porrada que ia cantar lá em casa e você rindo de nervoso, a gente sempre foi muito diferente mesmo. Apesar de gêmeo. Univitelino né, sempre achei essa palavra engraçadona, lembra que eu ficava te chamando disso depois que aprendi que era o que a gente era? Depois eu parei, e aí você que deu pra me chamar assim. Até na escola os garoto começaram a chamar a gente assim, até porque era mais fácil, ninguém sabia quem era quem mesmo. Às vezes nem o pai sabia. Já tomei umas boas porradas por tua causa. Quero ter filho não.

Venho pra cá porque era onde a gente gostava de ficar vendo a noite cair. Pô, o melhor pico da zona norte inteira, né. Era o que você achava. Foi do que você me convenceu. Mas agora tá mais difícil por causa do trabalho todo dia, aquela encheção de saco, e nem é só o trocadilho; pega bolsa, bota uma bolsa dentro da outra, caralho, parece infinito, às vezes eu fico pensando se essas bolsas todas não vem de um grande buraco negro e talvez lá, onde ninguém consegue botar a mão, talvez lá exista um botão pra parar de fazer as bolsas brotarem. Às vezes eu sonho que tô caindo dentro de uma bolsa, e depois essa bolsa cai dentro da outra, e assim por diante. Às vezes eu sonho que preciso fugir delas, e nesses sonhos elas estão molhadas, mas é um molhado viscoso, tipo azeite, óleo de sardinha em conserva quando estoura. Eu escorrego nisso, caio. Não consigo fugir. Também tem vezes que elas são paraquedas enormes com garras de pássaro nas pontas, e eu fico correndo em ziguezague pra que não me peguem. Também não consigo fugir. Mas é só às vezes mesmo, quando eu tô muito estressado, que eu sonho essas maluquices. Outras vezes eu sonho com você. Quando você tava aqui eu detestava sonhar com você, principalmente porque você sempre me acordava com essa sua cara boba e fazia um peido com a boca, eu ficava com a sensação de desperdício, tipo, com tanta gente pra sonhar eu tinha que sonhar logo contigo? Pra acordar com você fazendo aquelas vozes pequenininhas de robô, imitando beat vox? Era engraçado. Era idiota, mas era engraçado.

Olha, hoje eu fiz uma besteira. Eu não sei quanto tempo vou ficar aqui sem que alguém apareça, mas é porque eu não tenho forças pra lidar com isso. Não foi fácil te trazer aqui. Não tenho coragem de abrir o caixão porque eu tenho medo de olhar pra você e me ver depois de morto, entre outras coisas. Tenho medo de abrir e não te reconhecer. E se eu não te reconhecer, eu não sei como vai ser quando eu tiver que olhar no espelho de novo. Tenho medo do cheiro que você possa ter. Mas eu precisava te trazer. Todo mundo passou o último ano me falando, ah, ele tá num lugar melhor, ah, foi melhor assim, você não ia querer que ele sofresse. Mas eu sou egoísta, irmão. Eu queria você aqui porque agora é como se eu não estivesse nem aqui nem aí, onde você tá. Eu fiquei em lugar nenhum. Não sei mais de nada. Como a gente faz pra saber o caminho, a saída, de lugar nenhum? E como eu conserto isso, de não saber mais as coisas que tô fazendo? Não sei o que me deu hoje. Eu simplesmente passei lá, fiquei olhando um tempão, não tinha ninguém e eu abri, abri a tumba sim, te ajeitei na garupa da bicicleta e vim. Tem dias que fico quase melhor, mas tem dias que é insuportável e eu fico tão pequeno que seria fácil entrar e ficar esquecido dentro de uma sacola de mercado infernal daquelas que eu vejo todo dia. Eu sei que você pode me ouvir, mas nós não somos mais dois moleques idiotas que ficavam brincando de adivinhar o que o outro tá sentindo. Agora sim você sabe de tudo, mas eu não posso saber de volta. Isso sim  é mais egoísta que eu.

Ei, olha lá. Daqui tô vendo que tem viatura subindo a rua. Não sei se eles estão procurando por você, ou por mim. Não sei se por aqui é tão comum passar viatura, mas pelo jeito, acho que estão procurando alguém. Quem? Vou me preocupar com isso depois. O que eu posso ter feito de tão errado, afinal? Pelo menos daqui dá pra ver que tem sim um desenho muito doido na lua. Será que é você me olhando de volta?

domingo, 14 de maio de 2017

Fundura

todos os dias minha mãe 
lançava e içava o balde no poço
muitas vezes até haver
água

repetição cadenciada

encher o filtro
lavar as roupas
cuidar da casa

não confiava na qualidade
da água encanada

procedimento antigo, mãe
desde os artesianos
água saloba
de poço
esforço
costume

muitos anos depois e minha mãe em ossos
era eu quem furava poços
no coração branco da antártida
com a obscura função de vasculhar às cegas 
vestígios de outro tempo

minha mãe de lenço na cabeça nos fundos da minha memória
tinha mais braços do que me lembro
e me mantinha tão limpa
e tão indefesa
me punha em tantas águas
manuseando com cuidado meu corpo de criança

caço de mãos submersas
resposta na desertidão dos sais
onde a cor da vida não vai

não há sob a luz da vida
procedimento velho demais



sexta-feira, 5 de maio de 2017

adeus ao coração continental

toda a américa pôde ouvir o infinito som do seu coração trincando e se rachando, um duelo de justas esquizofrênico no seio do isolamento, sem testamento, sem pronunciamento, sem platéias. nunca precisara delas estando confortável, tendo o que comer, onde dormir e um lugar pra recostar as incertezas. foi um som infinito para um coração infinito.

do lado de fora da cabana, uma revoada de pássaros. os pássaros foram as últimas imagens dos seus olhos antes de se voltarem eternamente pra dentro, e deve ter achado bonitos os pássaros. talvez tivesse pensado em escrever uma carta para alguém que não via já há muito tempo, ou cozinhar um ovo quando dali se levantasse, jogar bola no gramado ainda fresco do sereno da noite anterior. tudo o que fica por acontecer é sempre pleno de hipóteses. e ainda assim, nenhuma delas vale mais do que o fato, assim crêem as madres dos colégios, os advogados de porta de cadeia, os homens com hepatite nos botequins. as donas-de-casa assistindo programas vespertinos ou ouvindo rádio, elas não. elas estão obstinadamente agarradas a tudo quanto for acontecível, e não espanta que elas sejam as criaturas mais fascinantes. fora uma dessas que o havia abrigado, bem quentinho, lá no ventre. antes de seu tempo humano começar a se contar.

ficou uma flor de água no chão da cabana onde seu coração se rachara. foi essa água que entranhou, macia, os confins da terra e invisivelmente sacudiu cada pedra de uma américa bem gasta, mas pisciana de sonho e desrazão.

quarta-feira, 22 de março de 2017

Trinca

os ossos estalam contra o sol
a carne não é tão dura assim
se os letreiros de neon dos ônibus
pudessem
fazer desenhos íngremes na linha
das vistas
tapeando o azar, o excesso
de lucidez
se os sinais de trânsito fossem todos
verdes
tivessem todos infinitos tons
de verde
se no meio da vida
um escândalo
ah
mas obrigações de plástico prendem
a circulação
e verdes quase e só
as green machines os dedos da mão
o cinto filantropicamente estrangulando
os estômagos
e um estrondo despencando
dentro dos bueiros para alimentar
a loucura copulativa das baratas

não fomos nós quem dissemos
inspire e respire devagar
sessenta vezes
enquanto usinas explodem em ilhas
longe daqui
inspire e respire devagar
o que são duas horas de espera
diante do suor das correntes

em casa, automática
a xícara de café quente
uma linha horizontal férrea na boca de alguém
onde um dia houve um sorriso
abaixo do solo
os mortos
as baratas
a beleza
em putrefação
descondicionada do visível aos olhos
independente
como jamais seremos

o cinto cai no chão do banheiro
deixa marcas lá e aqui como
pequenos dentes e a urina
explode com cheiro de dia seguinte

não desperdice o café quente.

sábado, 11 de fevereiro de 2017

conselho de pai II

quando eu tinha 28 anos
e um eclipse lunar me tirou o sono
fui ter com meu pai nas alturas
da cabana que construiu para si

lá encontrei uma rede
meu pai me convidou a deitar nela e me ensinou
detalhadamente
como havia lhe fabricado -
algo sobre cavaletes, idas, vindas
precisão e paciência

aquele que havia lhe ensinado
homem de pele mais morena e dedos mais finos
meu pai me disse
esta rede ele faz em 3 horas,
mas eu levei 5 dias

me deitei sobre a rede
- e meu pai continuava me explicando -
esta rede começa com uma matriz
invisível a você
em sua primeira fase dá origem a 28 cruzamentos
pronta, totaliza 56, e você pode ver como
eu puxo, repuxo
e ela não se altera

de fato, meu pai acariciava a rede
como se fosse uma harpa

é preciso atenção, filha,
onde a gente entrelaça os fios
cruzamento em lugar errado desanda a trama
todos precisam estar na mesma direção

meu pai não sabe que do alto
dos meus problemas com números
me pus a fazer contas
mentais
com 56 anos
as minhas pernas
outrora musculosas aos 28
tendo como herança lógica a artrose
de minha mãe
suspensas e doloridas n'alguma rede outra
que não passara pelas mãos de meu pai
28 cruzamentos

pai, às vezes as tramas
são tão confusas.

cerimônia

a noite era de lua cheia mas no quarto não havia janelas. farida se movia pelo pequeno espaço, chamando a meditação que não vinha: fingindo a penumbra para si para abafar os próprios monstros, todos ali, todos com ela. era cheia a lua, e ela sabia nas marés do corpo, na suscetibilidade da pele em contato com as próprias unhas, todos os pequenos pêlos de seu nariz farejando a memória da carne no barro abafado do quarto. engole a saliva quente como se se aconselhasse. aqui não. inspira com vontade, educando o caos.

dahaya está lá fora, o tacho cheio de olhos e sementes começaria a ferver em poucos minutos. a chama ainda não crepitava e os insetos não davam sossego à pequena samira, que estourava as bolhas que o sol havia acumulado em sua pele. samira, traz pra mãe a cuia preta. com uma tinta vermelha dahaya tingia os antebraços, as gravuras escorregando por eles como veias antigas e maculadas. tomando para si uma outra cuia, próxima a seu corpo, contendo uma tinta preta, com a ajuda de um pincel criava linhas arredondadas no rosto, que ia espalhando pescoço e colo abaixo. onde as linhas formavam redondos labirintos pingava pequenos pontos pretos, circundando estes de pontos pretos ainda menores.

farida parecia ter reconciliado o corpo, a mente e a calma até sentir nas narinas o cheiro bruto da mistura que vinha do tacho. sentia a boca encher duma água quente e rugosa, como se debaixo de sua língua houvesse um sapo. um tremelique correu por seus olhos, derrubando lágrimas nervosas pelo seu semblante. havia 3 dias ela estava encarcerada lá dentro, sem receber visita alguma que não fosse para deixar-lhe uma jarra de água que lhe descia pelo corpo com gosto de terra. era sua condição, auto-imposta, sua resposta pra si. precisava se limpar. mas nada lhe afastava o cheiro perturbador da mistura, podia se ver contando os passos, e até mesmo os dos joelhos, fosse o caso de ir até o lugar onde dahaya estava, engatinhando. podia sentir o cheiro da própria dahaya, o manuseio de alguma pasta, e sentia os olhos virando para dentro do corpo enquanto começava a sentir a nuca quebrando sobre os ombros e as funções lhe deixarem.

com um óleo feito de ervas, dahaya untou os pés e as mãos, e pediu à samira que se retirasse. a menina se levantou do chão sacudindo os joelhos, como se houvesse sido perdoada. a mulher encouraçou o tronco com uma grossa cinta, onde guardou uma adaga de prata, confeccionada com marfim e pedrarias que brilhavam à luz daquela lua tão cheia e pavoneada, além de um bastão de madeira em cuja ponta pendia um guizo, também de prata. cobriu a cabeça com uma rede feita da mais escura das jutas. entoando cânticos numa voz rouca e distorcida, mas enérgica, e sacudindo com força uma argola cascateando em chocalhos de conchas e dentes, percorreu alguns metros até chegar ao quarto onde farida se desencontrava da própria matéria, num trânsito intenso de botar medo. num grito que provocou uma revoada dos pássaros que perto dali dormiam, dahaya bateu com o guizo no ferrolho enferrujado, e abriu a porta.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

na rua paul celan

na rua paul celan nós
fomos perseguidos
primeiro pelo som
perturbador dos tambores
depois os soldados desceram os morros
mas encontraram as ruas vazias
no que foi uma escola de samba
no século 20
nós enfiamos pés e mãos e narizes
e o que desse pra esconder
dos nossos membros visíveis
suspensos choro e respiração
uma TV zumbi fotografando nossas caras
dentro do seu vidro podre
e analógico
nossas caras
como se registrasse
um pedido de ajuda
boletim de recorrência
nós enfiamos nosso corpo em espaços impossíveis e eles
eles vasculhavam a área e suas armas
sentiam nosso cheiro
de caça.
na rua paul celan nós
fomos perseguidos
pelos tambores perturbadores
do nosso coração.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

maikin

atacadãoshoppingmetrôpenhamadureiralobo juuuuuuuuunior. com ritmo. apesar da velocidade, tudo é ritmo. passa o troco rápido, bruto o dinheiro, líquido e vivo, as notas de dois azuis membranas de peixe se misturando aos dedos encardidos, dedo e dinheiro quase uma coisa só. do troco passado rápido nas dobras dos dedos o talento bruto pro raciocínio rápido-rapidinho, pra distância, pro tempo, pra maldade. maldade era coisa que só se aprendia, e tinha que ser rápido, se demorasse, se desse mole, se vacilasse, perdia passageiro perdia dinheiro ou tomava o vento frio na nuca duma porra duma glock insuspeita guardada na mochila magra de um vagabundo ou outro que subia na maré. com ele só tinha acontecido uma vez e ele tinha 12 anos e tava há dois meses na van, a mãe do primo falou maikin não vai mais na van não, mas foi ele mesmo quem teimou com a tia, insistiu pra voltar, falou que precisava do dinheiro. voltou.

o expediente começava sempre umas dez horas da noite, hora que quem mora pelo itinerário da van tá saindo pra rua. não fica fazendo nada de bom em casa, janaína, deixa ele ir, ganhar o dinheiro dele, daqui a pouco já tá um homem, não vou ficar sustentando burro velho a vida toda, mas ele tem que estudar, janaína, tu sabe que ele não quer estudar. ele fica com um olho no dinheiro, outro em quem sobe, outro em quem desce e outro nas meninas de minissaia, coisa mais fácil do mundo é botar o olho dentro da calcinha delas, porque a van é apertada e elas ficam sem posição pra sentar direito, porque elas não tão nem aí, porque algumas até gostam de saber que estão sendo olhadas na calcinha. moça, adianta a passagem, por favor, ele se acha educado quando diz isso, muito educado e profissional e o primo já tinha até falado, moleque, tu vai fazer teu dinheiro rápido.

dependendo do horário não sobe passageiro quase nenhum e ele fica olhando o caminho um pouco mais calmo desdobrando na frente dele. a noite e as avenidas se parecem conforme o primo dirige dentro delas, ele acha que fizeram as ruas e as avenidas na cor preta pra que ficassem parecidas mesmo, uma continuando a outra. tem umas coisa que se emendam naturalmente. será que seria mais caro fazer as ruas de outra cor? uma vez perguntou ao primo, o primo riu e disse que não sabia e que aquela era uma pergunta maluca, quer as rua tudo colorida, haaaan bichona, ele riu de volta, sai fora porra, eu sou espada.

esse ano ia fazer dois de van. a maior parte das viagens ficava quieto, gostava de ouvir o que os passageiros iam falando na ida e na volta do caminho mas na volta era sempre mais engraçado. tinha mina bêbada falando que pegou cinco no baile, às vezes subia crente e o primo tinha um pé pesado, os crentes ficavam rezando de olho fechado pra não morrer de acidente e ele ria quietinho. tinha dia que subia um mulão de moleque chapado contando uma mentira atrás da outra porque em que mundo que um moleque feio e duro daquele vai pegar três mina no baile numa noite só, tinha as patricinha também, algumas falavam mais baixo mas tinha outras que também perdiam a linha que nem as da favela, e ele sabia mais ou menos onde todo mundo morava. esse ano ia fazer dois de van. no fim da semana tirava pra ele uns oitenta reais, mais ou menos, e ia juntando alguma coisa, mais pra ele que pra ajudar em casa. o primeiro dinheiro da van ele gastou com uma cerveja geladinha que comprou dizendo ser pro primo, estranhou o amargo e fez uma careta, mas bebeu toda. depois comprou um pacote com três camisinhas pra ver como era. por que é melado assim?

uma vez o primo mostrou pra ele uma revista que guardava no porta-luvas. ele ficou com as imagens na cabeça por muitos dias.

hoje a gente vai rodar até uma certa hora e depois vamo pra uma missão, o primo falava com um mistério na voz, ele foi ficando curioso, que missão, na hora você vê, respeitou a assertividade do comando. admirava o primo em silêncio, especialmente quando ele levantava poeira em cima dos outros motoristas fazendo pega depois do viaduto. queria dirigir como o primo um dia, queria saber beber como o primo, e pegar mulher que nem o primo. o whatsapp dele não parava nunca, toda hora uma voz melosa chamando pra ir pra algum lugar. mas hoje eles iriam pra uma missão. que missão era essa? ele pensou, hoje é quarta, o movimento não é igual quinta e sexta, pra onde a gente vai?

rodaram até mais ou menos 2:30, não fizeram tanto dinheiro naquela noite, por mais rápido que ele fosse ou que o primo dirigisse. a van tomou um caminho diferente pra ele e o primo estacionou. bora beber, moleque, bora, tava cheio o lugar, luzes coloridas piscando. chegando no balcão tinha uma mulher gorda com uma pinta engraçada na testa que recebeu o primo com dois beijos, oi meu coração, mas tá sumido, beijo, tô nada dona valéria, beijo, só muito trabalho mesmo, hm, sei, e esse aí que eu nunca vi aqui, é meu primo dona valéria, maikin, tá trabalhando comigo, mas tão novinho, dedé, ah, a senhora saaaabe como é, moleque tá crescendo... hoje é mais diferente as coisa, a gente veio beber uma!

a mulher sorriu e foi pegando uma garrafa bem gelada, serviu os dois. fica aqui, vou falar uma coisa com ela rapidinho, e levantou, deixando o menino sozinho na mesa. não demorou dois minutos, voltou, que mulher feia, primo, essa era a missão, o primo riu, hahahahahaha num viaja moleque, você ainda vai me agradecer, e os dois ficaram ali bebendo, o primo falando com um e outro que passava pela mesa deles. o menino bebia forçando goladas cada vez maiores, e as luzes pareciam entrar no copo às vezes, molhadas lá dentro. mais ou menos uns vinte minutos depois uma moça com uma saia coladinha e a boca molhada de vermelho sentou no colo do primo, então hoje você trouxe seu primo, tá vendo, trouxe sim, olha o tamanho do garoto, a moça riu um sorriso sem vontade, aí maikin, bonita minha amiga né, é, é bonita, vai lá ensinar ele a dançar suzy, vem maikin.

passou um tempo. uma hora? ele foi deixado no mesmo lugar onde dançava com o rosto todo borrado dos beijos da moça, ainda sem entender muito bem o que havia acontecido, enquanto ela sumia por uma porta escura. o primo bebia com outros três homens, um deles o menino conhecia. ae rapaziada, cria da suzy. todos riram, o menino sorriu, tonto. vou levar a peça pra casa, sipá volto depois.

o menino estava em disputa com o sono ao longo da viagem pra casa. costume, o estado de vigilância é quem não dorme. quantos anos ela tinha? encosta aí moleque, pode dormir hoje. no rádio zeca pagodinho dizia que nunca tinha feito amigos bebendo leite, e com a boca meio mole ele acompanhava a letra; ainda era bem escuro, aquela escuridão que mistura a noite, o asfalto e a porta pela qual a mulher havia entrado guardando alguma coisa dele, enquanto ele pousava, vagarosamente, as pálpebras sobre os olhos.


para rafael simeão

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Guirlanda

primeiro há que unir as uvas
nos seus volteios esguios
a safra da vida
dá-se corda no rabo espiralado
das lichias
doces
macias
apesar de sua robustez de réptil
menos doces os morangos
também compondo o arranjo
sucessivos cachos vermelhos alinhavados todos
em apurado rigor estético
pendendo costeletas
é preciso jeito com as ameixas
e sua carne tenra a arrebentar a força
também é preciso jeito
com a altivez monárquica dos pêssegos
que pesados têm vontade própria
as acerolas são doces e fáceis
podendo ser encaixadas quase em qualquer lugar
onde haja alguma ausência
como as cerejas, mas essas
estrangeiras,
não se prestam a qualquer posição

por questões dimensionais
as maçãs se tornam disfuncionais

alguma beleza na paciência
de tecer com os dedos uma guirlanda
pequeno ritual a todo dionísio dentro
nas noites em que o sonho vai à varanda.



para julya