Infinitos símbolos de infinito. Pai e Mãe. Pai e Mãe. Pai e Mãe. Alianças de ouro grossas, finas, gastas; magros os dedos, grossos, peludos. Regina, Vania, Adalberto, Marquinho, Rosilene, Eu Amo Meus Filhos, Amor de Mãe. Do canto da testa ao queixo foge uma gota de suor do cara gordo que tomou um café da manhã ruim. Pronto. É o Adílson? Ele. Você tem uma antena pra reparar no seguinte endereço, às doze e trinta.
Difícil a passagem pela rua estreita pro carro. Ficou na rua anterior. Difícil de achar a casa também, todas parecidas. Campainha não tem, bairro humilde. Procura aí cara, vai que tem e tá escondida. Não porra, não tem. Dona Fernanda? Dona Fernanda? Aplaude a casa. Aplaude mais. Porra, odeio isso. Quem é? Oi, senhora, aqui é da SATELIGHT, Fernanda não chegou do trabalho ainda, quer deixar recado, fala que a SATELIGHT teve aí, brigado, vai com deus meu filho, brigado você.
Porra, perdi meu tempo vindo aqui. Teve mais alguma ligação aí? Não, telefone não tocou não. Ih, peraí, tá tocando. Ih, parceiro, depois a gente fala, tô meio enrolado aqui. Abre o porta-luvas, retira papéis. Vê aí qual é o próximo pedido. Ih mané, é lá em Jardim América. Porra, lonjão. Fica aonde Jardim América?
Trinta minutos dali, mas um carro varou uma moto no meio. Puta que pariu, que que tá rolando? Manuela e Fabiana talvez fizessem 18 anos em 2026. Agora, só ficarão os retratinhos na carteira do desesperado que gritava no meio-fio. Liga pra central e fala que o serviço vai atrasar. AS MINHAS MENINAS NÃO, AS MINHAS MENINAS NÃO, e a voz do homem ia sumindo conforme o carro ia transpondo o engarrafamento. Na cabeça, Adílson lembrou de um dia na favela, há um bom tempo atrás. Pisa no acelerador.
O lugar é esse aqui mermo, Dilso? Tá aí no pedido ué, deve ser. A casa é aquela dali. Interfone novinho. Quem é? SATELIGHT, senhora. Peraí um minuto que já vai descer, e segundos depois as pernas grossas da morena se revelam na escada aos olhos de Adílson antes de seu rosto, que é bonito também. Boa tarde, vamos subindo. Água? Não, brigado. Tudo bem? Tudo. Tô sem imagem desde ontem, a antena fica lá em cima, vou mostrar, ela sobe na frente, o short muito curto escapando o tecido da bunda imensa, Adílson ajeita a calça, quanto tempo não via uma mulher dessas na sua frente, Jardim América, quem diria, moço? sim, senhora, a antena. Não quer mesmo uma água? Aceito, sim. Do tempo que ela levou para descer e subir as escadas ele já havia feito o serviço. Agora a senhora testa lá pra ver se tá recebendo o sinal, um minuto e meio, mais um minuto e meio, tá sim, ah, que ótimo, bicho burro, poderia ter esticado o serviço um pouquinho mais. Tchau, senhora, qualquer coisa é só ligar que eu volto. Mentira, se ela ligasse, não seria ele quem voltaria, mas qualquer outro filho da puta mais sortudo, que às vezes a sorte escolhe os mais otários, e se despediu das suas panturrilhas ascendentes com o olhar.
MERMÃO, que mulher gostosa, tomar no cu, aquela dali eu como rezando, cala a boca, já entendi. Adílson era um cara muito sério mesmo. E agora, é pra onde? Pega aí a lista dos pedidos. Tá aqui ó, Andaraí. Que inferno, a água dela deu mais sede.
Um calor insuportável, o sol drenando as forças do corpo. Aquele uniforme quente e ridículo dos desenhos da SATELIGHT. Adílson não entendia o porquê do símbolo de uma galáxia no seu bolso, se a empresa mal dava conta das vizinhanças. Sentiu raiva do trabalho. Sentiu vontade de mandar o cliente tomar no cu. Boa tarde, senhor. Boa tarde. Tô sem recepção alguma de sinal. Já liguei diversas vezes pra SATELIGHT mas vocês não fazem nada. Espero que resolvam o problema e rápido, senão vou processar vocês. Sou advogado.
A casa do advogado é muito grande. Adílson é guiado pelo dono até a antena, mas o outro lhe puxa pelo braço. Você ouviu isso? Isso o que? Puxa sua manga e fala em voz baixa: isso. Adílson pensa ter ouvido sim, mas não dá resposta. Adílson, vamo embora, tem alguma coisa errada nessa casa. Você falou alguma coisa? Não, não senhor, só preciso saber onde tá a antena. É só subir essa escada.
É sério, Adílson, tem alguma coisa errada nessa casa. Você não ouviu uma menina chorando? Você tá é maluco, para de falar merda, não cara, não tô falando merda, se você é surdo problema é seu. Que papo é esse agora? Eu ouvi uma menina chorando. E daí se tiver chorando? E daí, que que tu vai fazer? Monitora a antena com um controle remoto, acerta os canais. Sei lá, cara, tem alguma coisa muito esquisita aqui. O SENHOR PODE IR TESTANDO A TELEVISÃO AÍ EMBAIXO, TÁ OK, VOU TESTAR. Um minuto. Dois minutos. Oito. SENHOR?
Não há resposta, Adílson desce as escadas. Vamo embora daqui, Adílson, na moral. Estuda a casa com os passos, desconfiado, onde está o advogado? Quando encontra a sala, encontra também o cadáver do advogado. MEU DEUS, SENHOR? SENHOR? Adilson pressiona as mãos contra o peito do advogado, reanimá-lo, senhor, não faz isso não. O que que aconteceu com ele? Morreu sozinho? Sei lá! Tá frio, não respira. Puta que pariu! Adílson... que foi? Eu ainda tô ouvindo a menina chorando. Para de falar merda, cara. Não, é sério. Tem uma menina chorando dentro dessa casa.
O homem frio não respira. Adílson pensa mesmo ouvir um som abafado pelo corredor. Morreu mesmo, o advogado? Tem mais alguém aqui? Realmente tem algo estranho na casa. Um quarto com a porta aberta, e o finado é um porco. Terno, gravata, e rabo. Adílson passa as imagens do computador, limpa as mãos na calça. EU FALEI que tinha alguma coisa fedendo a merda aqui. O som de choro insiste pela casa, mais alto.
A garota ainda tem as marcas das amarras no corpo todo. Adílson olha pra ela com pena, não teve muito tempo de pensar no que fazer quando a encontrou, nua e machucada. Ela ainda não disse nada. Espera que ele tenha morrido mesmo. O outro o deixou em paz, porque no carro só havia mesmo espaço pra dois. Pelo menos para alguma coisa nessa vida serviu. Mãos na cabeça, cotovelos no volante. E agora? Olhou mais uma vez pra ela, tão pequena dentro de uma camiseta do velho imundo. Tremendo, assustada, tadinha da menina. Aquilo era hora de criança estar saindo da escola.